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Abraham Lincoln não só tem sido escolhido pelos americanos, em sucessivos inquéritos de opinião, como o melhor presidente que os EUA tiveram, como construiu uma reputação de integridade que lhe valeu a alcunha de “honest Abe”, vinda do tempo em que exercia advocacia, antes de ter enveredado pela política. Não por acaso, uma boa parte das frases memoráveis de Lincoln versam os temas da integridade e da nobreza de carácter, o que, face ao radicalismo e à desonestidade intelectual que tomaram conta do seu partido, sobretudo desde que este se deixou enfeitiçar por Donald Trump, leva a que nos interroguemos sobre o que pensaria o “honest Abe”, se fosse vivo, sobre alguns dos políticos Republicanos do nosso tempo.
No que respeita a George Santos, uma das caras novas do Partido Republicano na Câmara dos Representantes, que tomou posse a 3 de Janeiro de 2023, na sequência das eleições intercalares de Novembro de 2022, há uma advertência de Lincoln que parece ter sido talhada à sua medida: “Podes enganar todas as pessoas durante algum tempo e podes enganar algumas pessoas durante todo o tempo, mas não podes enganar todas as pessoas durante todo o tempo”.
George Santos acreditou que seria capaz de provar que Lincoln estava errado e, em Novembro de 2022, após ter enganado muita gente durante imenso tempo, conseguiu ser eleito para a Câmara dos Representantes pelo 3.º distrito do Estado de Nova Iorque, correspondente à região nordeste de Long Island e o círculo eleitoral com mais elevado rendimento per capita do estado. Porém, quase não teve tempo para saborear o triunfo, pois desde Dezembro passado que os media começaram a escrutinar o passado de Santos e a apontar as discrepâncias entre a imagem que construiu de si mesmo e a realidade. Santos tentou fazer algum “controlo de danos”, inventando desculpas esfarrapadas e admitindo alguns pecadilhos menores, mas, na maior parte das vezes, finge ignorar a barragem de perguntas disparadas pelos jornalistas que o perseguem pelos corredores do Capitólio.
O assédio implacável dos jornalistas é plenamente justificado, pois não estamos perante imprecisões, distorções ou exageros isolados: a parte mais substancial da história de vida que Santos “vendeu” aos media e aos seus eleitores consiste em falsidades flagrantes, o que levanta sérias dúvidas sobre a sua idoneidade e sobre as suas condições para exercer o cargo para que foi eleito.
“Um fulano tremendamente esperto”
Embora os “desvios à verdade” na biografia de George Santos já tenham sido amplamente noticiados, é instrutivo fazer delas uma breve súmula:
Comecemos pelos seus avós maternos, que Santos declarou serem judeus nascidos na Ucrânia e que “sobreviveram ao Holocausto”. Precisou que, no curso da II Guerra Mundial, teriam fugido à perseguição nazi e, após passagem pela Bélgica, teriam encontrado refúgio no Brasil. Porém, apurou-se que os avós maternos de Santos não só não têm ascendência judaica como nasceram no Brasil e que a sua família é católica; o único grão de verdade deste relato está na origem belga de um dos seus bisavós, que emigrou para o Brasil em 1884. Esta conexão belga explica o apelido “Devolder” no seu nome completo, George Anthony Devolder Santos, que o próprio tem moldado de acordo com as circunstâncias e as suas conveniências, apresentando-se (e assinando cheques, nem sempre com cobertura) por vezes como Anthony Devolder e George Devolder. Quanto ao seu pai, Gercino António dos Santos Jr., o recém-eleito congressista atribuiu-lhe Angola como local de nascimento, embora o pai, tal como a mãe, tenha nascido no Brasil. Os pais emigraram para os EUA em 1985 e George nasceu em 1988 em Nova Iorque, onde passou a infância e adolescência; por volta de 2008, após ter concluído o ensino secundário, foi viver com a mãe no Brasil, regressando aos EUA três anos depois.
Santos declarou em 2021 que a sua mãe, Fátima Aziza Caruso Horta Devolder, foi vítima dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Depois precisaria que a mãe não falecera nesse dia – embora trabalhasse na Torre Sul do World Trade Center, conseguira escapar à derrocada das torres, mas fora envolta pela nuvem tóxica dela resultante e acabara por morrer com cancro em 2016. Apurou-se depois que a mãe de George nem sequer estava em Nova Iorque nesta ocasião, pois regressou ao Brasil em 1999 e só reentrou nos EUA em 2003. Em Dezembro de 2022, Santos apresentou nova versão dos eventos, colocando o pai também como sobrevivente do ataque ao World Trade Center.
O estatuto social e financeiro da sua família tem sido descrito por Santos em versões em dissonância com a realidade: declarou que a mãe foi “a primeira executiva do sexo feminino numa instituição financeira de primeiro plano”, quando a sua mãe terá sido cozinheira no Brasil e desempenhado funções de trabalhadora agrícola na Florida e de empregada doméstica em Nova Iorque e nunca tenha aprendido a falar inglês; o pai de George terá trabalhado como pintor de construção civil. Quando a mãe faleceu em 2016 (esta parece ser a sua data efectiva de falecimento), a família Santos não tinha dinheiro para pagar as despesas do funeral, pelo que estas terão sido cobertas por uma colecta na cerimónia fúnebre e por uma iniciativa de crowdfunding na Internet.
O percurso académico reivindicado por Santos envolve uma série de escolas de prestígio: aluno da Horace Mann School, uma escola secundária de elite no Bronx; diplomado suma cum laude em economia & finanças (e com classificação que o colocou no 1% de topo do seu curso) pelo muito selecto Baruch College (da City University of New York); MBA pela New York University. Todavia, não há registo de que ele tenha frequentado estas instituições ou que tenha concluído qualquer curso numa instituição de ensino superior dos EUA.
George Santos tem promovido activamente a imagem de “experiente financeiro de Wall Street”. Assim que concluiu o (alegado) curso na NYU, terá sido recrutado pelo CitiGroup e terá desempenhado o cargo de “project manager” na Goldman Sachs, antes de assumir o posto de vice-presidente da LinkBridge Investors, sempre com desempenhos dignos de um Midas do século XXI. Porém, CitiGroup e Goldman Sachs negam que Santos alguma vez lá tenha trabalhado e a LinkBridge declarou que Santos nunca foi seu funcionário, muito menos vice-presidente, embora tivesse colaborado, na qualidade de freelancer, na organização de eventos promovidos pela empresa. Os únicos empregos a que as investigações dos media conseguiram vinculá-lo foram em empresas de modesta dimensão, quase sempre com funções não explicitadas. Um dos poucos empregos que os media conseguiram atestar foi o de operador de call center – os seus colegas de trabalho no call center entrevistados pelos repórteres admitiram ter estranhado que alguém que se gabava amiúde da fortuna e vasto património imobiliário da família Santos nos EUA e no Brasil se conformasse com um trabalho tão modesto e mal remunerado.
Em 2020, Santos declarou, numa entrevista à CBS, que mal começara a carreira profissional, no CitiGroup, fora identificado como “um fulano tremendamente esperto” e que, comprovando esta apreciação, “hoje, aqui estou, como director regional de um fundo de investimento avaliado em 1500 milhões de dólares”. Com efeito, à data, Santos trabalhava como director regional de Nova Iorque para o fundo de investimento Harbor City, só que, em 2021, este foi denunciado como sendo um esquema de Ponzi e foi alvo de um processo movido pela SEC (Securities and Exchange Commission, o equivalente americano da “nossa” Comissão do Mercado de Valores Mobiliários). A Harbor City nunca angariou os “1500 milhões de dólares” de investimentos proclamados por Santos e os meros 17 milhões que conseguiu arrecadar não foram investidos (como seria de esperar de um “esquema em pirâmide”). Com a Harbor City a ser investigada pela SEC, Santos largou este trabalho e fundou a sua própria empresa de consultoria financeira, a Devolder Organization, que foi encerrada em Setembro de 2022 – embora Santos alegasse que esta geria investimentos num total de 80 milhões de dólares, não se lhe conhece qualquer cliente ou actividade.
Quanto à sua fortuna pessoal, Santos divulgou que esta orçava entre 11 e 100 milhões de dólares (os valores variam consoante os interlocutores e as ocasiões) e gabou-se de possuir duas mansões em Long Island, uma delas em The Hamptons, que é, historicamente, a zona de veraneio dos milionários de Nova Iorque e que, naturalmente, regista alguns dos mais elevados valores imobiliários por metro quadrado dos EUA. No entanto, uma estimativa independente do rendimento de Santos efectuada em Julho de 2022 situava-o em 50.000 dólares/ano (um pouco abaixo da média dos EUA) e a declaração de rendimentos e bens que entregou ao Congresso não inclui qualquer valor imobiliário.
Em paralelo com a sua suposta actividade como mago dos fundos de investimento, Santos alega ter fundado uma instituição de socorro animal, a Friends of Pets United (FoPU), que terá operado entre 2013 e 2018 e terá, segundo Santos, salvo a vida a mais de 2500 animais. Porém, entrevistas a ex-colaboradores da FoPU desmentem tal número e relatam que a actividade da FoPU era intermitente; por outro lado, surgiram várias acusações de que parte do dinheiro recolhido em nome da FoPU através de plataformas de crowdfunding e eventos de angariação de fundos não seriam aplicados no socorro de animais, sendo antes apropriados por Santos.
Através de uma das muitas empresas que diz ter possuído ou gerido, Santos colocou-se no centro de outro evento traumático da história americana recente: o assassínio em massa na discoteca gay Pulse, em Orlando, em 2016, onde terão sido mortos quatro dos seus empregados. Porém, verificou-se que nenhuma das vítimas tinha vínculos laborais com a empresa nomeada por Santos. Santos sempre deixou explícito ser gay, embora tenha estado casado com uma mulher entre 2012 e 2019: Este matrimónio não é implausível em si mesmo – o que é difícil de perceber é que nunca tenha falado dele até os media o terem descoberto.
As investigações sobre o passado de Santos realizadas pelos media nos EUA e no Brasil, entre o final de 2022 e o presente, trouxeram à superfície uma colecção de relatos de pessoas que com ele privaram, que complementam o retrato de um mitómano compulsivo, empenhado em convencer os outros de que provinha de uma família abastada e levava uma vida de luxo, mas deixando atrás de si um rasto conspícuo de calotes, cheques sem cobertura e furtos. Um ex-colega de quarto diz ter ficado particularmente agastado ao vê-lo, na televisão, a discursar em Washington, a 6 de Janeiro de 2021, no comício “Stop the Steal”, que incitou as massas a atacar o Capitólio, envergando um cachecol Burberry que Santos lhe subtraíra quando viviam juntos.
As atribulações de um videirinho
A revelação das divergências entre a realidade e os elementos autobiográficos difundidos por George Santos suscitou a indignação de muitos dos seus eleitores e a reprovação de algumas figuras gradas do Partido Republicano. A 11 de Janeiro, seis congressistas republicanos eleitos pelo estado de Nova Iorque apelaram à sua demissão, no que foram secundados pelo Nassau County Republican Committee (as instâncias do partido correspondentes ao seu círculo eleitoral); a 7 de Fevereiro, ao cruzar-se com Santos por ocasião do discurso do Estado da União pelo presidente dos EUA, o senador Mitt Romney disparou-lhe um “não tens lugar aqui”, a que se seguiu uma breve troca de insultos.
Porém, a expulsão de Santos da Câmara dos Representantes requereria a aprovação de 2/3 dos seus elementos e é improvável que o Partido Republicano esteja disposto a enfraquecer a curta maioria que conquistou neste órgão com as eleições intercalares (tem dez lugares de vantagem sobre os democratas, mas também tem uma ala radical insubmissa e imprevisível). Até agora, o único efeito prático que o “caso Santos” gerou – para lá de ter fornecido abundantes motivos para chalaça nos programas de comédia na TV americana – foi a renúncia pela parte de Santos aos cargos para que fora nomeado em duas comissões da Câmara dos Representantes.
[Mitt Romney sobre George Santos, após o desaguisado entre ambos, 07.02.2023:]
Kevin McCarthy, líder da maioria republicana na dita câmara (“Speaker of the House”, cargo com afinidades como o de presidente da Assembleia da República portuguesa), tem afirmado que não tomará medidas contra Santos a não ser que existam acusações formais contra ele, uma postura similar à que temos assistido em Portugal quando governantes são censurados por ter comportamentos pouco éticos: a maioria deles parece perfilhar o princípio – celebremente enunciado em 2006 por Joaquim Pina Moura, então deputado na Assembleia da República – de que “a ética da República é a ética da lei”. Esta interpretação minimalista, calculista e cínica da ética e dos compromissos dos indivíduos – em particular dos governantes – para com a sociedade esvazia o conceito de bem comum e legitima os que, graças à astúcia ou a uma brilhante equipa de advogados e consultores financeiros, encontram formas de obter benefícios da exploração dos inevitáveis “buracos” e ambiguidades existentes na legislação.
É compreensível que McCarthy afine por este diapasão, pois tudo indica que não faça ideia do que seja integridade: a 8 de Janeiro de 2021, proclamou que o papel de Trump no ataque ao Capitólio – incitando a turba à violência – fora “atroz e absolutamente errado” e dois dias depois declarou que iria falar imediatamente com Trump, para o convencer a resignar ao cargo de presidente. Não só não o fez, como, percebendo que, ao contrário do que previra, o ex-presidente continuava a ser a figura mais influente do Partido Republicano, a 28 de Janeiro, visitou Trump na sua mansão em Mar-a-Lago, a fim de prestar-lhe vassalagem e, provavelmente, pedir-lhe desculpa pelas palavras precipitadas que proferira. Se ainda restava a McCarthy algum vestígio de coluna vertebral, tê-lo-á perdido em Janeiro de 2023, quando, para ser eleito “Speaker of the House”, teve de fazer concessões humilhantes à ala radical do Partido Republicano, após ter sido rejeitado por esta em 14 votações.
Porém, nem tudo depende de McCarthy no que toca à permanência de Santos no Congresso, uma vez que estão em curso várias investigações (oito, segundo algumas fontes), conduzidas pelas autoridades federais, pelo estado de Nova Iorque e pelo Nassau County, parte delas relativas ao financiamento e às despesas da campanha de Santos para o Congresso
Mesmo que nada no longo rosário de falsidades e moscambilhas engendrado por George Santos seja capaz de produzir acusação, julgamento e condenação ou suscite um processo de destituição pela parte da Câmara dos Representantes, há juízos que não passam pelos tribunais e a informação que já desaguou no espaço público é suficiente para julgar Santos do ponto de vista ético e concluir que não reúne condições para exercer o cargo para que foi eleito – ou qualquer cargo público.
Há “artistas” (no sentido pejorativo que a palavra tem em português e que é afim do “con artist” inglês) que irradiam elegância e distinção, outros são dotados de humor rápido e certeiro, outros ainda possuem dotes retóricos e oratórios – estres são atributos capazes de explicar o poder que exercem sobre as massas, mas, esquadrinhando os registos vídeo de George Santos, encontra-se apenas um gabarolas compulsivo, obsessivamente auto-centrado, pueril, untuoso. E se no plano humano Santos é uma figura medíocre e destituída de qualquer encanto pessoal, no campo ideológico também não parece ter nada a oferecer, para lá da colagem pontual a Donald Trump e a algumas das teses da ala conservadora do Partido Republicano.
Mas se George Santos em si mesmo não tem interesse algum, já a sua eleição para a Câmara dos Representantes suscita reflexão profunda, pois é um sintoma do estado de degradação a que chegaram a política e o debate no espaço público numa das mais antigas democracias do mundo.
Anatomia da intrujice
Na mendaz biografia com que George Santos se apresentou aos eleitores do estado de Nova Iorque combinam-se elementos que foram concebidos para obter vantagens pessoais (nomeadamente conquistar votos) e outros que são mera “conversa de treta”, as patranhas arbitrárias, ocas, estúpidas e estéreis que os mitómanos geram com a naturalidade com que respiram. Detenhamo-nos sobre o primeiro grupo e analisemos as respectivas motivações:
Ao reclamar ascendências judaica e africana George Santos pretende apresentar-se como membro de etnias historicamente perseguidas e injustiçadas e assim suscitar a empatia dos eleitores e a generosidade das contribuições financeiras da comunidade judaica, que é particularmente numerosa e influente no estado de Nova Iorque. Curiosamente, na campanha para as eleições de 2020, Santos não mencionou a sua suposta ascendência judaica, mas fez dela um ponto central da campanha de 2022
A sua (pretensa) conexão ao tiroteio na discoteca gay Pulse converte-o, por interpostas pessoas (os seus empregados que aí teriam perecido), numa vítima da homofobia. Se lhe fosse concedido tempo e ensejo, talvez Santos desencantasse na sua frondosa árvore genealógica uma tia-avó yanomani, um tio-avô arménio e um bisavô rohingya.
Ao arvorar a sua mãe em mártir dos ataques de 11 de Setembro, Santos visa resgatar a sua banal história familiar e entrelaçá-la com um dos mais marcantes eventos da história americana recente.
A suposta devoção de Santos à causa animalista, através da Friends of Pets United, pretende tirar dividendos do pegajoso enlevo animalista hoje reinante nas sociedades urbanas e abastadas e que associa univocamente o “amor pelos animais” a nobreza de carácter.
E quando posa como génio das finanças que, com 32 anos, gere um fundo de investimento de 1500 milhões de dólares, Santos sabe que irá cair no goto de uma sociedade que valoriza sobremaneira o sucesso, que está obcecada com a metrificação e os rankings e que venera quem está no topo (“Nada é mais atraente do que um líder”, proclama um anúncio recente a uma marca de automóveis).
A teia de mentiras urdida por George Santos é grosseira e está displicentemente construída, mas como seu público-alvo não é particularmente sofisticado e perspicaz, tem funcionado. A sua maior fragilidade é ser demasiado vasta, levando a que, por vezes, o próprio tecelão se enrede nela e a faça vacilar. Perante os jornalistas, após as palavras de reprovação de Mitt Romney, declarou, em tom petulante: “Não é a primeira vez na minha vida que me mandam calar e ir para o fundo da sala, especialmente pessoas que provêm de um meio social privilegiado, e também não será a última vez. Mas nunca irei calar-me e ir para o fundo da sala”.
[George Santos após o desaguisado com Mitt Romney, 07.02.2023:]
Quem fala aqui é o George Santos que assume o papel heróico de quem nasceu num meio humilde e carregou o fardo de fazer parte de minorias oprimidas (na tripla condição de judeu, africano e gay), e, todavia, conseguiu, graças ao seu talento e determinação, ascender na vida (a enésima declinação da saga “from rags to riches”, tão cara ao imaginário norte-americano). Porém, Santos não parece dar-se conta de que esta “narrativa” é incompatível com o alarde que fez em torno das posses da sua família e de a mãe ter sido executiva numa grande instituição financeira.
Analisemos agora alguns dos elementos espúrios, incongruentes e sem potencial para mobilizar eleitores incorporados por Santos na sua “biografia”, como, por exemplo, a alegação de ter sido produtor do musical “Spider-Man: Turn off the dark” (2012), o que, a ser verdade (não é), representaria um pífio “conseguimento”, uma vez que este espectáculo se conta entre os maiores fiascos da Broadway em tempos recentes e foi alvo de troça generalizada. Não se ficou por aqui a carreira de Santos/Devolder na área do showbiz: em 2011 um certo Anthony Devolder criou uma página na Wikipedia em que reivindicava ter participado nas séries “Hanna Montana” e “The suite life of Zack & Cody”, do Disney Channel, e contracenado com “Uma Turman” em “The invasion”. Não só não há vestígios de Santos/Devolder em quaisquer destes filmes/séries, como Uma Thurman não fez parte do elenco de “The invasion”.
Também é difícil perceber porque declarou ter sido uma das estrelas da equipa de volleyball do Baruch College e ter sofrido duas graves lesões nos joelhos, que o impediram de se notabilizar ainda mais neste desporto – se no domínio da fábula tudo é possível, porque escolheu Santos distinguir-se num desporto tão pouco popular nos EUA como o volleyball, quando poderia ter sido, com a mesma facilidade, um quarterback de primeira água?
As reacções de Santos às revelações sobre as intrujices têm oscilado entre a sobranceria, o agastamento, o mutismo, a negação, a apresentação de justificações esfarrapadas e a admissão de imprecisões no seu curriculum, mas sem que nesta concessão se detecte o mais remoto vestígio de arrependimento. Na verdade, estas supostas admissões de culpa são antes manifestações de arrogância e inconsciência, como é o caso desta declaração do início de Fevereiro de 2023: “Sou humano, cometi erros, expiei esses erros e fui absolvido desses erros. Pensei que éramos um país em que nos arrependemos, pedimos perdão e seguimos em frente. O problema é que a fanfarra dos media em torno de mim continua encarniçada”. Santos não só minimiza os “erros” que cometeu, equiparando-os aos de qualquer outro ser humano, como atribui a si mesmo o poder da absolvição – fazendo lembrar Donald Trump, quando justificou a recusa em entregar documentos classificados na sua posse aos arquivos nacionais alegando que o Presidente dos EUA tem poder para desclassificar documentos simplesmente pensando nisso. No tribunal da mente dos narcisistas patológicos como Trump e Santos, o ego desdobra-se pelos papéis de réu, advogado de defesa, juiz e júri e, sem surpresa, o veredicto conduz sempre à absolvição. A única mácula neste mundo perfeito são, segundo Trump e Santos, as fake news, que os perseguem com obstinação malévola.
A banalização da mentira
A carreira política atrai burlões desde tempos imemoriais, mas a sua ascensão foi muito facilitada nos últimos anos, devido à impregnação do discurso político pelo conceito de “pós-verdade”, que resulta, na prática, no esbatimento das fronteiras entre factos e mentiras e a subjugação da objectividade e do julgamento racional à crença fanática. Donald Trump não só teve uma actuação, enquanto presidente dos EUA, que foi nefasta para o seu país e para o mundo como, num âmbito mais vasto e abstracto, contribuiu (e ainda contribui) para inquinar a política e a comunicação entre seres humanos, com a imparável torrente de “mentiras, meias-verdades, calúnias, torpezas, bazófias e promessas fantasiosas” com que tem vindo a bombardear o mundo desde a campanha para as eleições primárias do Partido Republicano, em 2016 (ver capítulo “Quando a verdade se torna irrelevante” em Qual a palavra que dá mais pontos: Trump ou pós-verdade?). O facto de o espaço público dos EUA ter vindo a ser dominado por uma criatura que, de acordo com o Washington Post Fact Checker, fez 30.573 declarações falsas ou enganosas ao longo dos seus quatro anos como presidente, preparou o terreno para que desabrochem “flores” como George Santos.
A crescente polarização da política americana, que já era notória antes da ascensão de Trump e se agravou durante a sua presidência (culminando no infame assalto ao Capitólio a 6 de Janeiro de 2021), tem dado forte contributo para a progressão da “pós-verdade”: o partido converte-se na tribo, a ideologia cristaliza em dogma e a “verdade” passa a ser aquilo em que se quer acreditar e não há factos ou argumentação racional que consigam demover o crente da sua crença.
O fenómeno não é exclusivamente americano, claro, e a campanha pró-Brexit e a actuação de um dos seus principais instigadores, Boris Johnson, são um exemplo da contaminação da política deste lado do Atlântico pela “pós-verdade”. Boris Johnson sempre foi conhecido, desde os seus tempos na universidade, como mentiroso compulsivo, continuou a mentir sem freio enquanto jornalista, mentiu de forma a ludibriar os britânicos a votar em favor da saída da União Europeia, mentiu para alcançar o posto de primeiro-ministro e continuou a mentir para aí se manter durante três anos. Johnson é, como Trump e Santos, um narcisista patológico e os narcisistas patológicos imaginam-se “tão geniais e tão superiores a todos os que o rodeiam […] que julgam estar acima da moral. A honra é um conceito que resulta da opinião que os outros têm sobre nós e quando cremos que somos o supra-sumo e os outros são uns pobres coitados, a sua opinião deixa de ter valor para nós, o conceito de honra evapora-se e sentimos que não há nada de errado em mentirmos” (ver capítulo “Reino Unido, 2020” em Honra: Breve história de uma virtude “obsoleta”).
Embriagados com teorias conspirativas
Uma das consequências – e também um dos motores – da ascensão da pós-verdade e da polarização da política é a proliferação de teorias conspirativas, sobretudo entre os sectores mais à direita no espectro político. No campo político, as teorias conspirativas podem ser vistas como uma ramificação extrema e grotesca das “narrativas” que apresentam o nosso partido como único reduto da sanidade e da integridade e os nossos adversários políticos como velhacos ambiciosos e sem escrúpulos, mas são também uma expressão de uma malaise civilizacional mais vasta e profunda, como apontou Terry Eagleton, no brilhante ensaio “The enlightenment is dead!”, publicado na Harper’s Magazine de Março de 2005: “Códigos, conspirações, profecias, encriptações: é por estes meios que uma civilização cuja vida quotidiana parece cada vez mais desprovida de orientação compensa a falta de sentido com o seu excesso. O frenesim da sobre-interpretação compensa a hemorragia generalizada de significado. Quanto mais estúpida e materialista se torna a vida moderna, mais promove a proliferação de verborreias espiritualistas. À medida que a vida social se torna cada vez mais bidimensional, mais ela se agarra a qualquer espúria sugestão de profundidade. Quanto mais implacável é a racionalização da sociedade, mais desesperadamente irracionais se tornam os seus membros”.
Há que realçar que Eagleton escreveu isto já lá vão 18 anos, quando Trump era conhecido sobretudo como apresentador do reality show “The Apprentice”, não sonhava com uma carreira política e era apoiante do Partido Democrata, e ainda faltavam quatro anos para a fundação do movimento Tea Party, que marcaria o início da deriva para a direita do Partido Republicano e levaria a que, nos nossos dias, exista no Congresso uma ala republicana radical, onde pontificam harpias como Marjorie Taylor Greene e Lauren Boebert, que manifestam simpatia por ideários racistas e xenófobos, se opõem intransigentemente à tomada de medidas de combate às alterações climáticas e à defesa do ambiente em geral e dão crédito às mais delirantes atoardas emanadas da órbita QAnon. Para se ter ideia do processo de radicalização da política americana nos últimos 18 anos, basta considerar que um inquérito de opinião realizado no início de 2022 revelou que 25% dos eleitores republicanos partilha das teses centrais do grupo QAnon, nomeadamente a de que o Governo, o Estado, o sistema financeiro e os media americanos estão sob o controlo de uma rede pedófila e satânica que opera à escala global. Os eleitores republicanos estão, maioritariamente, também convencidos de que a vitória de Joe Biden na eleição presidencial de 2020 foi fraudulenta e a passagem do tempo (que deveria serenar os ânimos e favorecer a reflexão) e a apresentação de provas (nomeadamente pela comissão de inquérito ao ataque ao Capitólio) não conseguiu esmorecer esta crença; as sondagens realizadas no início de 2021 indicavam que cerca de 50-70% dos eleitores republicanos tinham esta convicção e as sondagens realizadas em 2022 produziram resultados dentro do mesmo intervalo.
Se, como escreveu Terry Eagleton num artigo recente (“What’s your story?”, na London Review of Books de 16 de Fevereiro de 2023), “os mitos são ficções que se esqueceram da sua condição ficcional e se assumem como reais”, então as teorias conspirativas são os pífios mitos do hipertecnológico século XXI. Enquanto os mitos clássicos eram formas de interpretação do cosmos, fontes de sabedoria e iluminação e advertências sobre os perigos que se ocultam na água, no ar, nas florestas, nas cavernas e nos recantos mais sombrios da alma humana, as modernas teorias conspirativas descartam o conhecimento amealhado por milénios de civilização, reciclam preconceitos odiosos e fábulas malévolas, obscurecem o entendimento e alimentam os piores instintos da natureza humana. As teorias conspirativas são os mitos que restam a uma era sumamente materialista e cínica e esvaziada de mistério e transcendência e os seus enredos espelham a incultura, a estreiteza de vistas, a memória de pardal e os raciocínios pueris de quem se alimenta exclusivamente dos detritos que boiam na cloaca das redes (ditas) sociais. E enquanto os mitos de antanho ainda hoje merecem ser lidos e encenados, bem como reimaginados por autores do nosso tempo sob a forma de romance, filme, teatro ou ópera, e ainda contêm ensinamentos preciosos, apesar das muitas órbitas que a Terra entretanto descreveu em torno do Sol, as modernas teorias conspirativas são redigidas numa linguagem rudimentar (do ponto de vista vocabular e emocional) e já nascem senis e caducas e é pouco provável que alguém as converta numa ópera, numa peça de teatro ou num filme, a não ser que seja com intuitos satíricos.
Fenecem os jornais, florescem as redes sociais
A ascensão de troca-tintas como George Santos e a crescente popularidade das teorias conspirativas têm sido facilitadas por dois fenómenos no campo da comunicação de massas. Um deles é o facto de as redes (ditas) sociais – ou, mais precisamente, o restrito círculo de “amigos” de cada um nas redes sociais – se terem tornado na mais importante e mais credível fonte de informação (muitas vezes, na única fonte de informação) para um número crescente de pessoas, o que tem como consequência o estreitamento das perspectivas, o anquilosamento da mundividência (ver capítulo “Quando a verdade se torna irrelevante” em Qual a palavra que dá mais pontos: Trump ou pós-verdade?) e a perda de contacto com formas narrativas com um mínimo de estrutura, consistência e sofisticação. Quem tem tweets como única leitura dificilmente ganhará capacidade para examinar um artigo, um podcast ou um vídeo com espírito crítico, identificar as suas falhas e avaliar a sua credibilidade; pior ainda, uma vez que a sua constelação de referências é tragicamente limitada, nem sequer terá consciência de quão estreitos são os seus horizontes e de quão tosca é a sua percepção do mundo.
Por outro lado, os jornais, que desempenhavam importantes funções como “cães de guarda” do espaço público, verificando as notícias duvidosas que nele surgiam e escrutinando a actuação e as declarações das figuras públicas, estão hoje seriamente debilitados, em resultado da migração dos seus leitores e anunciantes para as redes sociais e para a Internet em geral. Um jornalismo de investigação pujante teria escrutinado o passado de George Santos logo em 2020, mal ele se perfilou como candidato a congressista pelo estado de Nova Iorque, mas os jornais, assoberbados com dificuldades financeiras e com redacções cada vez mais exíguas e inexperientes, em resultado da inexorável sangria de receitas, já não são capazes de exercer esta vigilância de forma eficaz. No Outono de 2022, um obscuro jornal local, The North Shore Leader, ainda levantou suspeitas sobre o passado de Santos e formulou reservas sobre o seu carácter, mas só após Santos ter sido eleito para a Câmara dos Representantes o assunto cativou a atenção dos media com meios e know how para fazer investigações mais aprofundadas.
Quer a dependência exclusiva das redes (ditas) sociais como fonte de informação, quer o definhamento dos jornais são tendências que irão, previsivelmente, acentuar-se – até porque muitos jornais entendem que a única forma de combater a fuga dos leitores para as redes sociais é tornarem-se mais parecidos com estas, falando do que “está a viralizar” nas redes sociais; adoptando um registo telegráfico e superficial; apostando no sensacionalismo e no “clickbait”; evitando assumir opiniões fortes e critérios editoriais claros, para não correr o risco de indispor ou alienar algum grupúsculo de leitores; e abrindo portas ao “jornalismo cidadão”. É possível que este jornais consigam sobreviver mais tempo do que os outros, mas a sua vitória será pírrica, uma vez que a alcançaram abdicando da sua essência e da sua missão.
A cada um a sua verdade
Em 2014, António Costa, após visitar José Sócrates no Estabelecimento Prisional de Évora, declarou que o antigo primeiro-ministro era “um lutador e luta por aquilo que acredita ser a sua verdade”. Os portugueses mais terra-a-terra e desconhecedores das subtilezas do relativismo epistemológico terão então despertado, assarapantados, para a possibilidade da coexistência de várias verdades. Nove anos depois, os portugueses não só continuam sem saber se a verdade do Ministério Público conseguiu impor-se à verdade de José Sócrates, como descobriram que José Sócrates tem pugnado, sucessivamente, por diferentes verdades, sobretudo no que respeita à origem dos meios que sustentavam o seu opíparo trem de vida, e que o juiz Ivo Rosa rejeitou a verdade do Ministério Público e lhe contrapôs a sua própria versão da verdade.
Como nem todos estão preparados para aceitar sem estrebuchar que a uma mesma realidade correspondam diversas “verdades”, o politiquês (logo secundado pelo jornalês) apropriou-se do termo “narrativa”, usualmente associado à teoria literária, para designar a visão – por vezes assaz idiossincrática – de um líder ou partido político sobre um dado evento ou conjunto de factos. Nesta acepção, o termo “narrativa” não traduz uma abordagem ou um fenómeno novo, apenas tenta conferir alguma credibilidade a uma interpretação dos factos conhecida como “propaganda”.
Entretanto, em 2017, numa entrevista na NBC, Kellyane Conway, conselheira do presidente Donald Trump e estratega da sua campanha eleitoral, introduzira junto das massas o conceito de “factos alternativos” para designar uma estimativa, cozinhada por Sean Spicer, Secretário de Imprensa da Casa Branca, que sobreavaliava grosseiramente o número de pessoas que assistira à tomada de posse de Trump (inevitavelmente, um monstro narcísico como Trump só ficaria satisfeito com a maior multidão da história das tomadas de posse de presidentes americanos).
Quando Conway designou os números divulgados por Spicer como “factos alternativos”, o entrevistador, Chuck Todd, atalhou de imediato que “factos alternativos não são factos. São falsidades”, mas Conway não recuou na sua formulação e “explicou” que “factos alternativos” eram “informação alternativa” (o que não explica coisa alguma nem mitiga o paradoxo). Conway voltaria, em várias ocasiões, a defender intransigentemente o conceito de “facto alternativo”, com argumentação invariavelmente débil ou tautológica e numa entrevista à Salon, em 2018, afirmou que os fact-checkers profissionais tendiam a perfilhar convicções liberais (isto é, “esquerdistas”, fazendo a transposição da política americana para a europeia) e a deixar que essas convicções enviesassem o seu trabalho, concluindo que, para evitar tais distorções, “os americanos devem ser os seus próprios fact-checkers” (uma frase que é uma pérola da hipocrisia populista: ao mesmo tempo que expressa confiança ilimitada na sabedoria do povo, remove quaisquer entidades com a experiência e o conhecimento especializado necessários para avaliar a credibilidade da informação que circula no espaço público).
O relativismo epistemológico, ou seja, a crença de que a realidade é uma experiência eminentemente subjectiva, de que nada existe fora do nosso espírito e de que não existem factos, apenas interpretações, não é novo – andava a borbulhar pelo menos desde a década de 1970, fomentado por pensadores como Paul Feyerabend, Bruno Latour ou Roger Ayon ou Gérard Fourez – mas só foi adoptado pelas massas após a vulgarização dos fóruns online, dos chat rooms e das redes (ditas) sociais. No tempo em que todos passávamos a maior parte das nossas vidas no mesmo mundo físico, existia pressão social para que chegássemos a um consenso razoável sobre a realidade, mas agora, em que uma parte apreciável da população passa muitas horas por dia recolhida em nichos frequentados exclusivamente por pessoas que pensam como elas, a realidade começou a fragmentar-se em estilhaços cada vez mais pequenos e bizarros, a ponto de, na era do GPS, do Google Earth e da promessa de massificação do turismo espacial, ter renascido, com inusitada pujança, a crença na Terra Plana. É improvável que os terraplanistas dos nossos dias tenham alguma vez lido Feyerabend ou sequer ouvido falar dele, mas as obnóxias ideias deste foram fermentando e fazendo lentamente o seu caminho em certos círculos académicos, intelectuais e políticos e contribuíram para criar o caldo cultural que permitiu que, mais de 22 séculos depois de Eratóstenes ter calculado, com admirável precisão, o diâmetro da Terra, haja gente que acredita que esta é plana.
Em 1975, no livro Contra o método, o filósofo austríaco Paul Feyerabend fez afirmações como “a ciência do Primeiro Mundo [i.e., o mundo desenvolvido] é apenas uma entre muitas” e “as semelhanças entre ciência e mito são verdadeiramente surpreendentes”, e, após algumas décadas depois, entre os responsáveis pela definição dos curricula do ensino básico e secundário em alguns estados e cidades dos EUA, houve quem (mesmo sem ter lido Contra o método) entendesse que tinha chegado a hora de deixar de impor aos alunos de ascendência africana ou “latina” mundividências eurocêntricas e até racistas e de promover o “multiculturalismo”. E foi assim que, no século XXI, com a preciosa ajuda da Fundação Bill & Melinda Gates, as escolas americanas começaram a leccionar “etnomatemática”, “matemática multicultural” e “algoritmos alternativos” (ou “matemática woke”, na designação de quem vê nesta “inovação” um retrocesso civilizacional e uma rematada imbecilidade).
A árvore e a sua sombra
Quando, no final de Dezembro de 2022, Santos foi confrontado, numa entrevista ao The Washington Post, com a irrefutável falsidade de alguma das suas afirmações, viu-se forçado a admitir que não procedera correctamente: “Não me diplomei em qualquer instituição de ensino superior. Sinto-me envergonhado e arrependido por ter embelezado o meu curriculum”.
A escolha do verbo “embelezar” é reveladora: mesmo quando admite que fez algo que não devia, Santos tem resistido a usar palavras como “mentira”, “falsidade” ou “fraude”. Só a 21 de Fevereiro de 2023, quando foi entrevistado pelo jornalista Piers Morgan, alterou parcialmente a sua posição. Morgan conduziu a entrevista com uma combinação de afabilidade e firmeza e confrontou sistematicamente Santos com o longo rol de afirmações implausíveis ou ostensivamente falsas por ele produzidas, levando Santos a admitir “ter sido um terrível mentiroso”, mas apenas no que se refere às habilitações académicas. Quando instado a explicar como pudera pensar que tais declarações iriam escapar ao escrutínio público que envolve qualquer membro do Congresso, Santos alegou, candidamente, que o facto de as suas mentiras não terem sido descobertas quando as empregou na campanha eleitoral de 2020 o levou a acreditar que poderia continuar a mentir indefinidamente. No que respeita ao seu meio de origem, Santos descreveu-o – por duas vezes – como sendo de “uma pobreza abjecta”, e Morgan – por distracção, recato ou por piedade – não o confrontou com as bazófias sobre a riqueza da família que Santos foi espalhando ao longo da vida. Quanto ao seu papel na Friends of Pets United, Santos apresentou uma nova versão que o esvazia de protagonismo e o torna num mero “operacional”, um “homem no terreno”, sem quaisquer responsabilidades de direcção ou administração – também aqui Morgan não fez o trabalho que lhe competia, confrontando Santos com declarações contraditórias anteriores e com os cheques sem cobertura usados para comprar cachorros e moscambilhas similares. Morgan também não questionou as fábulas que Santos tem urdido para criar uma imagem de génio da banca de investimento, nem o confrontou com as suspeitas que pairam sobre o financiamento da sua campanha eleitoral. É relevante constatar que nesta entrevista de 40 minutos (como em múltiplas ocasiões anteriores) nem por um instante se descortina uma ideia política em Santos – a política parece ter sido simplesmente a via que se lhe afigurou mais viável para ascender na vida e ganhar protagonismo. E é impossível não reparar em que o desconforto que manifesta pontualmente sob a barragem de perguntas embaraçosas postas por Piers Morgan é mais do que compensado pelo júbilo que dele irradia por estar a ser o centro das atenções.
O pedido de desculpas que Santos formulou por ter inventado o seu curriculum académico soou pouco sincero, até porque insistiu na ideia de que a expressão pública de arrependimento deveria conceder-lhe de imediato a absolvição e o direito a poder iniciar uma nova fase da vida, com a sua credibilidade intacta; reiterou também a ideia de que nada daquilo era grave e apenas adquirira contornos escandalososo devido à perseguição feroz dos media, que estavam empenhados numa “caça às bruxas” – uma expressão cara a Donald Trump, que recorre a ela de cada vez que surge mais uma notícia de que teve comportamentos pouco éticos ou está a ser investigado pelas autoridades.
Santos é um apoiante de Trump, mas provavelmente não conhece a obra literária do ex-presidente, caso contrário poderia ter-se-ia defendido citando a passagem do best-seller Trump: The art of the deal (1987), em que Trump (através do seu ghost writer, Tony Schwarz) introduz um conceito afim do “embelezamento”: a “hipérbole honesta” (truthful hyperbole), que define como “uma forma inocente de exagero – e uma forma muito eficaz de auto-promoção”, que tira partido de “as pessoas gostarem de acreditar que alguma coisa é a maior e a mais espectacular”.
É improvável que o vocabulário de Trump inclua a palavra “hipérbole”, mas é inegável que, seja qual for o tema, o seu discurso é tão hiperbólico que se torna ridículo e nauseante. Todavia, também é inegável que os eleitores americanos apreciam este registo, talvez porque a bazófia faz parte da natureza do povo americano e é socialmente bem aceite. Trump não tem formação académica na área da psicologia e não é um portento intelectual, mas é astuto e tem uma percepção sagaz do modo de pensar e estar na vida do eleitorado americano. Vendo bem, todos nós recorremos constantemente à hipérbole honesta nas nossas vidas, na entrevista de emprego, no almoço de negócios, à volta de umas cervejas com os amigos, num encontro romântico. É natural que queiramos exibir o nosso perfil mais favorável, escolher a luz adequada, evitar um sorriso que revele os dentes inferiores um pouco desalinhados, disfarçar o cabelo que se rarefaz, seleccionar uma foto com dez anos para a página do Facebook, retocar as características físicas que menos nos agradam com o Photoshop, passar a ideia de que somos inteligentes, vividos, espirituosos, bem informados, decididos e conscienciosos, de que temos acesso privilegiado a gente influente e levamos uma vida desafogada, rica em eventos, excitante.
Esta inclinação para o embelezamento, para a hipérbole honesta, para a auto-promoção, para a bazófia, já deixou de ser uma característica americana, alastrou a boa parte do mundo desenvolvido e omniconectado, pois é a atitude que é veiculada pelos filmes e séries televisivas americanas, que é inculcada pela máquina publicitária e que impera nas redes sociais – ela converteu-se no “default setting” para o relacionamento no século XXI. Quem ficará prejudicado se dissermos que nos diplomámos com distinção num curso de que apenas frequentámos uma dúzia de aulas que não deixaram recordação alguma nas nossas mentes? Ou quando colocamos no curriculum o posto de “visiting scholar” numa prestigiada universidade americana, quando, na realidade, tal não passou de uma possibilidade arejada durante um almoço e, na verdade, nunca tenhamos posto pé na dita instituição?
Tudo será perdoado enquanto o exagero for inocente – e que há de mais inocente e humano do que querermos parecer maiores e mais espectaculares do que realmente somos?
A competição feroz do mundo hipercapitalista, o marketing e as redes (ditas) sociais espicaçam o nosso impulso inato para o auto-engrandecimento, ao mesmo tempo que a censura social que mantinha este sob controlo está a ser corroída pela corrupção da linguagem – que gerou oxímoros como “hipérbole honesta” e “facto alternativo” e que converte a mais absurda distorção da realidade numa “narrativa” tão respeitável como qualquer outra – e pelo relativismo epistemológico – que assegura que não existem barreiras entre verdade e mentira e entre factos e falsidades. Não há, portanto, que estranhar que a ascensão de um burlão de pacotilha como Santos não tenha sido sustida e que, uma vez concretizada, suscite apenas uma frouxa e dispersa indignação popular e uma saraivada de comentários jocosos nos programas humorísticos.
Abraham Lincoln disse uma vez que “Talvez o carácter de um homem seja como uma árvore, e a sua reputação seja como a sua sombra; a sombra é a ideia que temos dele; a árvore é o carácter real”, mas o nosso tempo está mais interessado na sombra do que na árvore, pelo que que todos se afadigam em fazer com que o seu arbusto raquítico projecte a sombra de um carvalho centenário. Os americanos podem declarar nos inquéritos de opinião que têm Abraham Lincoln como máxima referência moral, mas sabem, no seu íntimo, que têm muito mais em comum com George Santos.