Era quase meia-noite quando, este domingo, perceberam que a Escola Básica Roque Gameiro, onde o filho mais novo frequenta o 7.º ano, não ia abrir na manhã seguinte. Pior do que isso: não ia abrir nos 14 dias seguintes. Seria encerrada depois de um aluno ter tido um teste positivo para o novo coronavírus, três dias após ter sido divulgada a infeção de uma professora regressada de umas férias no norte de Itália. Nessa altura a direção do agrupamento escolar, na Amadora, garantiu que as aulas iriam decorrer como previsto. Mas não vão.
Primeiro, Bruno e Maria, ambos com 50 anos, ligaram para a Linha Saúde 24, a pedir instruções. A seguir deram a notícia aos filhos, Rita, de 21 anos, estudante universitária, e João, de 13: durante as próximas duas semanas ninguém entra nem ninguém sai do T3 onde moram, naquele subúrbio de Lisboa. “Ela ainda se lamentou, por causa dos trabalhos e das aulas, no ISPA, mas os professores foram impecáveis, ligaram logo a dizer que as faltas estão justificadas e que vão mandar os trabalhos por e-mail; já ele não se importou nada”, conta Maria.
“Disseram-nos para ficarmos todos em casa e para irmos vendo os sinais no João, se tem manchas no corpo, se tem febre… Todos os dias temos de preencher um formulário com os dados dele, no site da DGS. E entretanto estamos à espera que o delegado de saúde entre em contacto connosco”, descreve a mãe dos dois jovens ao Observador, via telefone. “Vamos passar 14 dias encafifados aqui em casa os quatro, vou dar em louca! Isto é muito chato, porque é uma obrigação, não estou em casa porque quero. O Bruno trabalha, os miúdos veem filmes, fazem jogos, cantam e fazem tik toks, e eu vou dar em louca!”
Como é assistente administrativa numa sociedade de investimentos imobiliários, na zona do Parque das Nações, e grande parte das suas funções passam pelo atendimento ao público, não tem como continuar a trabalhar a partir de casa. Já o marido, bancário, está desde a manhã desta segunda-feira a fazer o mesmo de sempre, mas a partir da sala de estar da família. “Sempre pensei que a escola fechasse, mas no fim de semana não nos preparámos para nada, fizemos a nossa vida normal. Tinha uns exames médicos marcados para hoje, que entretanto tive de desmarcar. Já lavei e estendi uma máquina de roupa e agora não tenho mais nada para fazer”, lamenta-se Maria a meio da tarde, contando os seus afazeres caseiros como Marcelo Rebelo de Sousa faria ao início da noite, em videochamada com a TVI.
No fundo, a quarentena, que é como quem diz ficar, saudável, fechado em casa sem poder receber visitas, é muito isto. Tratar das tarefas domésticas e fazer binge watching de séries “estilo Anatomia de Grey”: “Já tinha tudo organizado para hoje, até o jantar — codornizes no forno —, só faltava mesmo fazer o acompanhamento. Isto de estar em casa por obrigação é uma seca, já vi televisão, já dormi, acho que vou chegar ao fim a riscar os dias no calendário, como os presos. Mas pelo menos ficamos de consciência tranquila. Se toda a gente fizesse como nós de certeza que não havia tanta propagação do vírus”.
Uma linha, duas respostas diferentes: a ela mandaram ficar em casa, a ele ir trabalhar
Apesar de ter feito a pergunta quando ligou para o 808 24 24 24, Maria continua sem saber de que forma o seu salário vai ser afetado por estes dias que vai passar em casa, — ou a dar assistência à família ou em isolamento profilático — também não lhe souberam explicar bem em que categoria se insere. Aliás, esse é um dos problemas com que vários encarregados de educação das escolas agora encerradas na Amadora e no resto do país se têm deparado: a falta de informação sobre o assunto.
Cláudia, 46 anos, tem dois filhos na Escola Roque Gameiro; Rita no 5.º ano e Tomás no 9.º. Quando percebeu que a escola ia fechar telefonou também para a linha Saúde 24. “Tenho asma crónica e sou assistente social numa prisão. Disseram-me para ficar em casa com os miúdos mas para o meu marido, que por acaso é educador de juventude na Casa Pia, ir trabalhar. Há informações muito contraditórias e isto não faz sentido nenhum, uma parte da família estar em isolamento e a outra andar na rua, mas cumprimos o que nos dizem”, revela ao Observador. “Ninguém sabe como vai ser feito o pagamento destes dias. Mandaram-me preencher um papel e ir buscá-lo daqui a 48 horas ao Centro de Saúde. Estou em isolamento mas mandam-me ir ao centro de saúde, onde há mais doentes, com outras patologias. Claro que não vou sair, não vou andar exposta, como o meu marido anda na rua leva o meu cartão do cidadão e passa por lá.”
Para já, uma das suas maiores preocupações passa por entreter os filhos, que dividem quarto e, como quaisquer irmãos que se prezem, ela com 10 anos, ele com 15, passam a vida a implicar um com o outro. “De manhã estiveram de volta dos cadernos e agora estão a fazer legos. Os primeiros dias devem ser bons, mas lá para quinta-feira deve estar tudo em estado de sítio. Às tantas já não se vão conseguir ver e eu vou ter de servir de árbitro. Entre televisão, jogos e internet a coisa há-de fazer-se. Mas são muitos dias fechados em casa”, prevê a assistente social, ainda a meio do primeiro dia de quarentena.
Plano de contingência: levar o lixo à rua pela calada da noite e com luvas
Ao todo serão 14 dias de isolamento, duas semanas completas; o tempo, estimam as autoridades internacionais de saúde, de incubação do vírus que já infetou mais de 114 mil pessoas em todo o mundo e provocou a morte a mais de 4 mil.
E se o caso de Cláudia não é muito problemático — não só já tinha um stock simpático na dispensa e na arca congeladora, como até tem um marido a sair de casa todos os dias e capaz de comprar o que fizer falta —, o de Nuno e Sofia, pais de Rafael, aluno do 8.º ano, também da Escola Roque Gameiro, já não é tão simples.
Desde a manhã desta segunda-feira e até ao próximo dia 22 de março, vão ficar os três confinados aos 150 metros quadrados do apartamento onde moram, na zona da Venda Nova. E se os serviços de entrega dos hipermercados ou a ajuda dos pais ou dos sogros, que moram perto, podem servir para suprir a falta ocasional de algumas mercearias, que nas últimas duas semanas já têm comprado “a dobrar ou a triplicar”, mais difícil será organizar a vida e o trabalho dentro de quatro paredes. “Temos de ter bastante disciplina para não chocarmos uns com os outros. Vai ser um desafio estarmos juntos durante tanto tempo, fechados em casa. Já falámos sobre o assunto, vamos tentar ser o mais metódicos possível e fazer a nossa vida como se fôssemos para o trabalho. Vamos acordar, tomar banho, vestir, tomar o pequeno-almoço e fazer as 8 horas, com uma de almoço, que faríamos normalmente. Eu estou na sala, a minha mulher está na cozinha, onde montou o escritório dela.”
Como tinham ouvido a outros pais que a informação recebida via Saúde 24 “era um bocado dúbia”, optaram por resolver a situação diretamente com as respetivas entidades patronais — ele é consultor informático num banco, no Tagus Park, ela trabalha como técnica oficial de contas, em Queluz de Baixo; nenhum teve qualquer problema em ficar em casa, em regime de teletrabalho.
“O comunicado da escola não fala em quarentena, é um isolamento obrigatório que na verdade é voluntário, porque constitucionalmente não podem obrigar ninguém. Formalmente não sei se estou ou não em isolamento, mas se o meu filho está, está para não apanhar nada na escola mas também para não contagiar ninguém, caso já tenha sido infetado. Não nos faz sentido nenhum não estarmos com ele”, diz Nuno, de 46 anos. “Eu já tinha acesso remoto à instituição bancária para quem estou a trabalhar e o computador anda sempre comigo às costas, portanto não preciso de mais nada. Já no caso da minha esposa, terá de vir cá alguém trazer papelada. Em princípio vão deixar as coisas à porta. Também não temos peçonha, não é preciso termos uma caixa estanque”, graceja o consultor informático.
Apesar das brincadeiras e por muito que, até agora, todos os seus elementos estejam saudáveis e assintomáticos, as três famílias em isolamento social profilático com que o Observador falou levam a sério a ameaça do novo coronavírus. Por isso mesmo, apesar de esta espécie de quarentena os ter apanhado de surpresa, o que não lhes faltam são planos sobre como sobreviver às próximas duas semanas sem colocar terceiros em risco.
Maria, conhecida na família pela mania que sempre nutriu pelas limpezas (garante que todos os dias desinfeta rato e telefone no trabalho e que muito antes de este coronavírus aparecer já andava sempre a esfregar as mãos com gel desinfetante), até já fez planos para ir ao contentor mais próximo deitar o lixo, por exemplo. “Não vou acumular lixo em casa, isso está fora de questão. Como moramos num 4.º andar, vamos pelas escadas e só à noite. E usamos luvas, porque de outra maneira podemos contaminar a porta da rua ou o caixote do lixo”, revela ao Observador.
Já, Nuno, que não tem conta no Uber Eats e que nunca encomendou compras em hipermercados online, pondera vir a fazê-lo, mas só se puder pagar as contas com cartão de crédito e não tiver de assinar papéis à porta, para não colocar em risco a saúde dos entregadores. “Acho que esses serviços também vão ter um bocadinho mais de adesão, se calhar vão ser uma opção. Nestes dias vamos mesmo ter de ser um bocadinho bichos do mato.”
Ginástica na sala e estudo diário — “Isto não são férias”
Também terão de ser criativos — isto se não quiserem sucumbir ao tédio em que necessariamente vão cair ao longo das 336 horas que têm pela frente.
Para ocupar o tempo, Cláudia já está a pensar em antecipar as limpezas de primavera: “Vou dar uma volta à casa e limpar pós como deve ser”. E o marido de Maria já propôs à família a abertura de um micro ginásio na sala de estar lá de casa, todos os dias às 18h. “Temos elásticos, temos tapetes, temos tudo para fazer exercício. Ainda há bocado o Bruno me estava a dizer que a primeira semana ainda aguentava mas que depois ia acordar às 2h da manhã, que é quando não está ninguém na rua, para ir andar de bicicleta, mas acho que só estava a dizer isso para me irritar. Ele foi o primeiro a dizer que nestes dias ninguém ia sair de casa: ‘Querem apanhar ar metam a cabeça de fora da janela!’.”
Depois, haverá sempre filmes, séries e vídeos de youtubers para ver, livros para ler e jogos para jogar — como o apropriado Plague Inc, a que Rafael, 13 anos, dedicou parte deste primeiro dia de isolamento. “É um jogo que é contaminar toda a gente”, explicou o aluno, fã da coleção “Uma Aventura”, ao telefone, entre risos e admoestações do pai.
“Isto não são férias”, foi o discurso que todos os encarregados de educação ouvidos pelo Observador fizeram aos respetivos filhos esta segunda-feira, depois de lhes darem a notícia de que durante as próximas duas semanas não haverá aulas. “O João disse-me logo, ‘Ah que bom, não vou ter teste de Ciências, nem de Matemática’. Já lhe expliquei que não é bem assim. Hoje dei-lhe uma folga — é o dia da mentalização —, mas a partir de amanhã vai ter de estudar. As regras vão ser as de todos os dias: vai-se levantar, tomar banho, vestir, tomar o pequeno-almoço e estudar. Pode estar uma hora no telemóvel, mas depois acabou. E às 22h vai para a cama”, diz Maria.
Nuno assina por baixo — e várias horas antes de receber o e-mail da diretora de turma de Rafael a avisar que todos os professores vão “enviar fichas, trabalhos ou outras tarefas” aos alunos durante as semanas do isolamento. “Disse-lhe logo para aproveitar agora para estudar, porque quando for levantada a quarentena vão tentar recuperar o tempo perdido. Além disso tem trabalhos para fazer, e um, de Inglês, para apresentar. É um trabalho sobre o Dia de São Patrício [que viu as suas celebrações serem suspensas na Irlanda], que já estava previsto. Hoje a professora disse que queria que eles apresentassem por videochamada, temos de marcar um dia e uma hora com ela.”
No fundo, e apesar de a preocupação com o estado de saúde dos filhos ser omnipresente (Maria, por exemplo, diz que não descarta a hipótese de chegar ao fim da quarentena e pagar para testar o filho mais novo para o novo coronavírus), o que estas três famílias agora em quarentena mais receiam são os efeitos do isolamento entre quadro paredes — tenham varandas ou não, como é o caso de Nuno, Sofia e Rafael. A profecia é do consultor informático: “Vai ser quase uma prisão domiciliária, ao principio vai ser engraçado, mas depois vai ser penoso”.