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HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

Góis. Desta vez, o inferno não chegou

Depois de Pedrógão Grande, o incêndio chegou ao concelho de Góis e obrigou à evacuação de 27 aldeias. Chegou a temer-se o pior. As autoridades acreditam, no entanto, que não há vítimas mortais.

“Deixámos tudo quanto tínhamos. Deixámos tudo. Só trouxemos a roupa que temos no corpo. Deixámos as batatinhas acabadas de semear e as cebolas. Mais umas galinhas e uns coelhitos. Se amanhã não voltarmos, coitadinhos, quando lá chegarmos estão todos mortos”. Maria Alice tem 76 anos e é uma das 150 pessoas que tiveram de deixar as aldeias de Góis em direção ao centro da vila. Chegaram cedo, logo ao início da tarde, quando o incêndio violento que engoliu o concelho ainda não estava demasiado perto.

Desta vez, em Góis, foi tudo diferente: as aldeias foram evacuadas mal soaram os primeiros alarmes, as estradas foram imediatamente cortadas e a ordem foi para não deixar ninguém para trás. Depois do inferno de Pedrógão Grande, foi possível evitar o pior.

Quem sai de Pedrógão Grande em direção a Góis só vê fumo negro no horizonte. A estrada nacional que liga as duas localidades está cortada poucos quilómetros mais à frente. Américo lança-se à estrada e interrompe todos os carros que tentam seguir. “Não passem para lá. Isto vai arder tudo. Se o vento vira, morremos todos aqui. Está tudo doido“, grita o homem, com as mãos na cabeça. Tem a camisola de alças castanha colada ao corpo, uma mancha enorme de suor na zona do peito. Os carros ignoram os alertas e seguem viagem em direção à coluna de fumo. Dois quilómetros à frente são definitivamente parados pela GNR. Não é seguro continuar.

As últimas atualizações que saem das colunas do rádio dizem que o fogo pode engolir a serra da Lousã. Deixa de ser alternativa para correr até Góis. São seis da tarde. Resta fugir por Coimbra, através da A13, e, daí, furar até Góis, passando por Vila Nova de Poiares, entre curvas e contracurvas. As encostas estão vestidas de verde. Não há como não pensar que tudo pode arder como ardeu em Pedrógão Grande. Lá ao longe veem-se os clarões vermelhos e uma mancha negra no céu.

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Chegam novas atualizações através do rádio: a partir do posto de comando onde é articulado o combate às chamas, os jornalistas presentes dizem que receberam ordens das autoridades para retirar e fugir o mais rápido possível. A língua de fogo estava demasiado próxima. Acabou por ser neutralizada perto da central de operações. Desta vez, a Natureza esteve do lado do Homem e evitou-se o pior.

Começa a chover. Gotas grossas, mas tímidas. Góis cresce à medida que as luzes das dezenas de carros bombeiros se mostram no caminho. O primeiro bafo na vila é quente e húmido. Cheira a alcatrão molhado. “Foi Deus quem trouxe esta chuva“, ri-se Ermelinda. É da vila, mas esteve o dia todo a rezar para que o fogo não descesse até ao centro. “Foi Deus”, repete.

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

São oito da noite. Ao lado da Associação Educativa e Recreativa de Góis, que durante toda a tarde de terça-feira foi recebendo as pessoas que iam sendo resgatadas das aldeias vizinhas, começam a servir o jantar. Maria Alice trouxe a roupa que tinha no corpo. Sua em bica e tem o cabelo curto e grisalho colado à testa. Chegou com o marido, Manuel Neves, de 80 anos, pouco depois do meio-dia. Foram uns amigos que avisaram que o fogo corria para aldeia de Cabreira e que se prontificaram para os ir buscar. “Estávamos já prontos para vir, quando passou um carro da Cáritas e disse que tínhamos de ir com eles. Ainda expliquei que estávamos à espera de uns amigos, mas eles disseram que não havia tempo. Tivemos de seguir“.

Nem a chuva que abençoou Góis a descansa. Não sabe como está a aldeia que deixou. “Ninguém nos diz nada. Uma vida inteira a trabalhar para uma casa e agora não sabemos como é que a vamos reencontrar. Deixámos uma vida para trás“, lamenta Maria Alice.

Não poupa elogios à equipa de voluntários que os ajudou. O marido, Manuel, doente ostomizado, precisa de sacos coletores. Maria teve-os na mão, mas, na pressa de fugir, deixou-os para trás. “A gente sem o pão passamos, mas sem aquilo não podemos passar. As senhoras aqui arranjaram logo. Não tenho palavras”. É a primeira vez que sorri.

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Ao lado, Deolinda Lourenço, de 77 anos, agarra-se à muleta para contar como saiu de Corterredor, outra das aldeias do concelho de Góis que foi evacuada. “O guarda obrigou-me. Mas queria estar a guardar a minha casa. Tenho lá os meus haveres”, diz, olhando por cima dos óculos. Não teve tempo nem para mudar de roupa, mas não lhe restou outro “remédio”.

Deixou para trás “três cabras, um cão e uns quantos gatos”. É tudo o que tem, além da casa e da pequena colheita que mantém. Não chegou a ver as chamas — aliás, no momento em que foram evacuadas, nenhuma das aldeias corria verdadeiramente risco de ser consumida pelas labaredas. Depois do pesadelo de Pedrógão Grande, depois dos 64 mortos no incêndio mais mortal de que há memória em Portugal, não havia margem para falhar: a retirada das pessoas foi feita por absoluta precaução e de forma controlada. A inalação do fumo, por si só, era preocupação suficiente. “Estava com muito medo do fumo”, confessa Deolinda.

O fogo, porém, nunca chegou. “Tinha medo que ele viesse, mas o vento levou-o para longe. Tivemos muito medo”, conta a vizinha Belmira, olho azulão e cara rosada. Tem 80 anos, embora não pareça. Quer voltar para aldeia. Não lhe agrada a ideia de dormir fora de casa, mas as autoridades não deixam ninguém regressar até terem a certeza de que o fogo está controlado. “A gente queria ir hoje, mas não nos deixam”. Talvez seja melhor assim, acaba por reconhecer.

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Das pessoas que foram recebidas na vila de Góis, na sua grande maioria homens e mulheres marcados pelos anos que passaram, apenas os casos que inspiravam cuidados médicos continuados foram transferidos para hospitais. Os restantes por ali ficaram. Ao almoço, comeram sandes trazidas e preparadas por quem se ofereceu para ajudar. Ao jantar, havia arroz e febras. Vão dormir numa residência devidamente preparada para o efeito. Desta vez, não há roupas sujas de fuligem, não há mãos queimadas, não há lágrimas, não há feridos, não há desespero. Apesar de tudo, respira-se alguma tranquilidade. Com o cair da noite, até o ar já se tornou menos sufocante.

Estas pessoas têm sido extraordinárias“, diz Guilherme Neves, de 77 anos, corpo inclinado sobre o braço direito com que segura a muleta e sorriso rasgado no rosto. “Basta olhar em volta. Durante toda a tarde chegaram bombeiros de toda a zona, do mais longe possível. Quando é preciso, somos um povo muito unido”.

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Quem o ouve, não percebe a verdadeira dimensão do incêndio que atingiu o concelho. Só quando Guilherme começa a explicar como o fogo engoliu a região é que se tem uma ideia do cenário dantesco. Outra vez: foram evacuadas 30 aldeias em Góis. “Olhe, apanhou a serra, passou para o Cadafaz, desceu ao rio, subiu, foi a uma serra chamada Rabadão, daí ainda desceu à Sandinha. Ele vinha direito a Cabreira. E tivemos de fugir. Deixámos lá tudo. Era tanto fumo que aquilo não se podia estar lá. Tivemos que ir logo embora“, conta.

Agora, pelo menos, têm um sítio onde podem estar em segurança. Guilherme só não está lá dentro no auditório porque “está cansado de estar sentado”. Ao contrário do que foi acontecendo em Pedrógão Grande, não é o medo que move os deslocados. O pior parece já ter passado. E, lá ao longe, as chamas parecem ter perdido força.

São nove da noite. No auditório da Associação Educativa e Recreativa de Góis, para onde seguiram as pessoas resgatadas, está a ser reproduzido o filme Aldeia Branca. Até isso parece simbólico. Segundo as últimas atualizações da noite, há ainda cinco frentes de fogo ativas. Desta vez, apesar de tudo, as autoridades não têm registo de vítimas mortais ou de habitações destruídas. Apesar das chamas, desta vez não foi preciso reviver o inferno.

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