A preocupação parece voltar à cabeça dos portugueses no primeiro dia da greve dos motoristas de matérias perigosas e de mercadorias, depois das denúncias de que os serviços mínimos não foram cumpridos. Como chegar ao destino de férias ou voltar para casa? Há combustível para os carros? E para os aviões? Vai faltar comida nos supermercados?
O Governo já decretou a requisição civil, mas é agora certo que os serviços mínimos vão ser realmente cumpridos? Em cinco respostas, explicamos o que esperar dos próximos dias.
Governo ativou a requisição civil. O que muda?
Numa questão de horas, a situação alterou-se significativamente. Assim como o discurso do Governo. Para quem acordou na manhã desta segunda-feira, parecia afigurar-se um dia absolutamente normal pela frente. Tanto que o primeiro-ministro, António Costa, chegou a dizer, pelas 10h30, que tudo decorria “com enorme civismo e tranquilidade”. E que era “muito positivo” que os serviços mínimos estivessem a ser cumpridos, apesar de “um ou dois incidentes pontuais”. De “pontuais”, António Costa alterou o termo para “incumprimentos” (dos serviços mínimos), pelas 16h50. A requisição civil foi então decretada já depois das 19 horas.
Este mecanismo legal visa “assegurar o regular funcionamento de certas atividades fundamentais, cuja paralisação momentânea ou contínua acarretaria perturbações graves da vida social, económica e até política em parte do território num setor da vida nacional ou numa fração da população”. Na prática, significa que os motoristas terão de voltar aos postos de trabalho. Se não o fizerem, a lei prevê consequências para os trabalhadores: desde processos disciplinares à possibilidade de crime de desobediência.
“As forças de segurança receberam instruções para que se os serviços mínimos não forem cumpridos e for decretada requisição civil, a violação desta requisição não pode passar incólume“, disse António Costa, no final da visita guiada à Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE), no domingo.
Greve. Veja nos mapas onde pode abastecer — na rede de emergência e fora dela
Ao longo da última semana, e sobretudo durante o fim de semana, o primeiro-ministro quis mostrar que o Governo estava a combater em todas as frentes: convocou uma reunião de emergência com o núcleo duro do Governo, visitou a Proteção Civil e a ENSE, e garantiu que o Executivo tinha “previsto ter um Conselho de Ministros eletrónico, à hora que for necessário, para, assim que for constatada uma situação de incumprimento [dos serviços mínimos] ser decretada a requisição civil.” Tal como aconteceu.
Mas com uma requisição civil, é certo que serviços mínimos sejam cumpridos? Pelo menos estão criados os instrumentos para que seja difícil que tal não aconteça. Isto porque se os trabalhadores se recusarem a prestar serviço, os militares do exército e da GNR e os agentes da PSP são chamados a conduzir os camiões de mercadorias e de matérias perigosas.
Certo é que o Governo quer mostrar que, desta vez, não é apanhado na curva. Tanto que a situação de emergência energética foi declarada antes do início da própria greve, ao contrário do que aconteceu em abril, apesar de os limites de abastecimento se começarem a aplicar apenas a partir da meia-noite de segunda-feira. Nessa data, dentro da Rede Estratégica de Postos de Combustível (REPA), e nos 320 postos não exclusivos, os portugueses passaram a estar limitados a 15 litros por abastecimento.
Governo declara Situação de Alerta” face a “crise energética”. Leia aqui tudo o que muda
Fora da REPA, o tecto ficou nos 25 litros. Mas o controlo não é rígido e é possível a um cliente, após abastecer o limite permitido, voltar imediatamente para a fila, ou a ela regressar horas depois. Contactados pelo Observador, vários postos de abastecimento reconheceram mesmo que não havia uma monitorização das matrículas que abastecem.
Limites mantêm-se. Como são controlados pelos postos de abastecimento?
Ao contrário do que aconteceu em abril, desta vez a corrida aos postos aconteceu dias antes do início da greve (com um pico na quinta-feira). Com uma requisição civil, a probabilidade de os postos secarem é menor e, portanto, não é provável que não consiga abastecer — sobretudo nos postos não exclusivos da REPA –, caso já tenha planeado uma viagem de carro nos próximos dias. Mas os constrangimentos podem continuar.
Da trotinete elétrica ao camião barrado. As primeiras horas da greve dos motoristas
Mesmo os camiões que se conseguem abastecer enfrentam dois problemas que podem afetar os condutores que queiram ir de férias: por um lado, porque a prioridade no abastecimento terá de ser dada aos postos exclusivos da REPA (para forças armadas e de segurança, serviços e agentes de proteção civil e os serviços prisionais, de emergência médica e de transporte de medicamentos e dispositivos médicos) e só depois aos não exclusivos (onde todos podem abastecer). Só a seguir chega aos postos fora da rede. E mesmo nestes, é dada prioridade aos condutores com maiores necessidades de combustível.
Os automobilistas portugueses também estão a ser confrontados com a ausência de algo que seria essencial para gerir o melhor possível não só os seus consumos como, também, os seus reabastecimentos: informação. A ENSE apresentou no domingo uma plataforma que, ao contrário do que inicialmente chegou a ser noticiado, não incluía informação detalhada sobre todos os postos de abastecimento. Apenas tem dados sobre os 374 postos prioritários, 54 dos quais exclusivos para forças de segurança e veículos prioritários.
A única plataforma que está disponível (e que tem tido elevada procura) é a que foi criada pelos voluntários do VOST Portugal. Mas uma pesquisa do Observador junto de 50 gasolineiras, pelo país fora, revelou que a maioria destes dados não estão corretos — há muitas bombas que supostamente estão “secas” e, afinal, têm pelo menos um dos combustíveis (ou, mesmo, os dois — em alguns casos, com fartura).
O que esta pesquisa do Observador revelou, também, é que uma boa parte dos funcionários e responsáveis pelas gasolineiras, mesmo aquelas onde ainda há combustível, não fazem ideia sobre quando é que podem chegar os próximos camiões para reabastecer os tanques. “Não fazemos ideia, até porque não fazemos parte da REPA”, comentou um responsável pela BP na Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, em Lisboa, que está “seca” desde sábado.
O que parece claro que é que as limitações que estão em vigor — 25 litros para cada abastecimento fora da REPA — não têm qualquer forma de ser controladas. Já correm nas redes sociais relatos de utilizadores sobre como, eles próprios, simplesmente compraram 25 litros numa gasolineira, viajaram alguns quilómetros até outra e meteram mais 25 litros. Resultado: depósito cheio.
“Não sabemos como vai ser feito esse controlo, a indicação que nos deram é que só podemos aceitar abastecimentos de 25 litros, mas se a mesma pessoa vier com o mesmo carro, mais tarde, meter mais 25 litros… não sei como vai ser”, reconheceu uma funcionária noutra gasolineira na zona oriental de Lisboa.
Em Paço de Arcos, a BP que fica a poucos metros das praias está “seca” desde sexta-feira à noite — e “tão cedo não deverá chegar” novo carregamento. Um pouco mais perto da costa oeste, na Repsol da Guia, em Cascais, o responsável pelo posto disse-nos que ainda há gasolina simples no posto (o gasóleo acabou na noite de domingo) mas também a gasolina deverá acabar esta noite de segunda-feira, mantendo-se o ritmo de vendas.
O responsável pela CEPSA no Estádio Universitário, em Lisboa, pareceu um pouco mais otimista. Também aparece na plataforma #JáNãoDáParaAbastecer como estando vazio mas não é verdade: “Temos tudo, gasolina e gasóleo”. Se se mantiver o ritmo de vendas, mesmo que não chegue novo camião, há combustível para mais três dias, garante. Se não houver entrega entretanto, “irá acabar” até ao feriado de quinta-feira, reconhece.
O combustível está a chegar lentamente, tanto aos postos prioritários como não-prioritários. Mas até nos prioritários — os que pertencem à rede REPA — está a haver limitações no abastecimento dos tanques. No Leclerc de Viana do Castelo “falhou o gasóleo ontem à tarde, umas horas, mas chegou um camião ontem à noite e agora temos tudo”. Mas no Jumbo de Vila Nova de Famalicão não há gasolina e gasóleo só do simples. Neste posto, existe apenas a reserva para as viaturas de emergência.
Pior está a BP na Lixa, distrito do Porto, que já nem tem combustível para as viaturas de emergência. “Houve ordem para ir até ao fundo e vendemos tudo”, reconheceu um funcionário do posto que, neste momento, está completamente “seco”, como bem aponta a plataforma da VOST Portugal.
Também a norte, na Galp de Vila do Conde, uma gasolineira com muito movimento naquela zona, “temos tudo, para já. Mas já não temos muito — estamos à espera e esperamos que o camião chegue hoje, mas não sabemos se vem…”, comentou uma funcionária do posto.
Mais a sul, os telefonemas feitos pelo Observador também apontam para um fim de semana que foi duro: vários postos ficaram sem pelo menos um dos combustíveis (ou, mesmo, ambos), e o reabastecimento está a ser lento, embora esteja a acontecer em alguns casos.
Racionamento de bens é improvável, mas legal. E cada supermercado decide como quiser
Na BP de Coimbrão tinha havido um abastecimento pouco antes do telefonema do Observador, na tarde de segunda-feira. Mas no Alentejo e no Algarve a situação era mais grave: estas foram as regiões onde os “pontos vermelhos” da VOST eram mais certeiros — em vários locais, desde a Galp de Armação de Pêra até à BP de Monchique não havia nem gasóleo nem gasolina, nem grandes perspetivas sobre quando é que o fornecimento poderá ser restabelecido.
Algarve é a região mais afetada. Porquê?
Segundo o Governo, é na região do Algarve que mais se estão a fazer sentir os efeitos do incumprimento e onde é, para já, mais difícil de abastecer. Por isso, uma das portarias de requisição civil destina-se apenas aos serviços mínimos que não foram cumpridos: abastecimento da REPA no Algarve, a partir de Sines; das unidades autónomas de gás natural e dos aeroportos.
A título de exemplo, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros afirmou que a partir da tarde “não se promoveu qualquer abastecimento de combustível a partir do centro de carga da refinaria de Sines”, que serve os postos a sul do país. “Por outro lado, o abastecimento ao aeroporto de Lisboa pressupunha que, em cumprimento dos serviços mínimos fixados, se realizassem no decurso do dia de hoje 119 viagens de abastecimento, tendo-se realizado até às 16h tão só 25 das viagens previstas”, continuou.
Ao longo do dia, o incumprimento foi-se notando pouco a pouco. Até porque o advogado do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), Pedro Pardal Henriques, admitiu ter dado a indicação aos trabalhadores para não trabalharem mais do que as oito horas estabelecidas na lei. Os conselhos foram seguidos pelos motoristas e, sabe o Observador, outras ‘táticas’ foram usadas, acabando por atrasar os serviços: desde camiões a serem conduzidos a velocidades mais baixas, a um ‘arrastar’ das operações de carga e descarga, ou mesmo idas à casa de banho mais demoradas.
https://observador.pt/2019/08/11/antonio-costa-vai-avaliar-este-domingo-capacidade-de-resposta-a-greve-dos-motoristas/
Como os postos algarvios são abastecidos a partir de Sines ou de Huelva, em Espanha, criam-se outros problemas: o serviço para o Algarve, incluindo as cargas e as descargas em vários postos, mais paragem para almoço, ultrapassa as oito horas, inviabilizando os serviços seguintes. Depois, a refinaria de Huelva pertence à Cepsa, acabando esta petrolífera por privilegiar os seus transportes.
Os problemas não são exclusivos do Algarve. Em Matosinhos, tentativas de bloqueios atrasaram as operações. Por volta das 6h30, o primeiro camião que se preparava para entrar na refinaria da Petrogal para cumprir os serviços mínimos foi impedido de sair por um cordão humano de manifestantes.
Em Matosinhos, um primeiro camião ia para entrar e ser abastecido mas um cordão humano de manifestantes impediu-o. O condutor, que faz greve mas estará a cumprir serviços mínimos, voltou atrás em protesto. pic.twitter.com/WleLDepuLk
— Joana Ascensão (@JoanaAscenso1) August 12, 2019
O camião era da empresa TJA Transportes. Segundo explicou ao Observador o motorista Luís Cunha, a empresa “não informou quais eram os veículos afetos aos serviços mínimos e, como tal, o sindicato não teve a possibilidade de identificar quais eram os motoristas que iam cumprir os serviços mínimos”.
Esta e outras tentativas de bloqueios acabaram por atrasar cada operação — que, em vez de se realizar em 5 minutos, demorou 1 hora. E isso atrasou as operações seguintes.
Há ainda relatos de apedrejamentos contra camiões que se preparavam para sair da Modis – Distribuição Centralizada SA, na Maia, uma das centrais logísticas da Sonae (dona do Continente). Não houve consequências graves.
E os transportes públicos?
O receio de ficar sem combustível não parece ter levado os portugueses a acorrerem aos transportes públicos. Pelo menos é essa a garantia da Transtejo/Soflusa, que opera a ligação fluvial entre as duas margens do Tejo.
“Não se regista aumento significativo da procura nas ligações fluviais da TTSL”, referiu a empresa ao Observador. Além disso, “os tanques dos parques de combustível e dos navios da frota da TTSL encontram-se atestados e o seu reabastecimento deverá ocorrer nos prazos habituais.” A capacidade dos tanques de combustível permite garantir “a prestação do serviço público de transporte fluvial de passageiros durante cerca de 5 dias úteis sem reabastecimento. A TTSL encontra-se a acompanhar com a necessária cautela a evolução da greve de motoristas de matérias perigosas.”
Para a CP também “não foi percetível um aumento significativo de procura face a período homólogo anterior“. E os “abastecimentos estão a decorrer conforme previsto”. “A definição de serviços mínimos para esta as empresas de transporte público de passageiros, de 75%, permitirão assegurar a atividade regular”, garante a empresa.
A ANTRAL deu conta na manhã desta segunda-feira de problemas no abastecimento de táxis em alguns dos postos na rede prioritária, mas, mais tarde, Florêncio Almeida, o presidente da Associação esclareceu que os problemas resultavam da “prepotência de alguns postos de combustível”, nomeadamente em Lisboa e no Algarve, que estavam a impedir os taxistas de abastecer, mas que “já estava tudo resolvido”.
A empresa de autocarros Scotturb que opera em Sintra, Cascais e Oeiras, no distrito de Lisboa, anunciou entretanto que, a partir desta segunda-feira, todas as carreiras vão estar sujeitas aos horários de sábado, devido à greve dos motoristas. Num comunicado no sítio oficial da Internet, a Scotturb refere que ativou um “plano de contingência”, de modo a garantir reservas de combustível durante o maior período possível, até que a situação se normalize. A empresa de transportes rodoviários adianta ainda que não tem o abastecimento de gasóleo garantido.
Nos supermercados há atrasos mas não rutura. Só faltará comida se houver bloqueios
É muito pouco provável que venha a faltar comida nas prateleiras dos supermercados, segundo fontes do setor. Até porque o Governo decretou 75% de serviços mínimos para o transporte de bens alimentares, e há semanas que as cadeias de distribuição se preparam para a greve, recusando falar na possibilidade de um “racionamento” (a palavra só surgiu na voz do diretor-geral da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares — FIPA –, Pedro Queiroz, que alertou para a possibilidade de tal poder acontecer ao fim de três dias). As cadeias traçaram planos para impedir que os produtos faltem nas prateleiras, sobretudo os de primeira necessidade, com um reforço dos stocks em armazém.
Os supermercados mais pequenos, no interior das localidades, têm pouca capacidade de armazenamento e, por isso, são abastecidos diariamente. Já as lojas maiores, geralmente da periferia, têm maiores possibilidades para armazenar produtos. Segundo já tinha avançado o Observador, nestes casos, as cadeias estão a encher os camiões com os produtos que vão ter mais saída e deixar para trás tudo o que não é essencial.
Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), disse ao Observador que durante a manhã desta segunda-feira “houve perturbações”, e à tarde “atrasos”. “Com boa comunicação com a GNR e a PSP e com bom ambiente, a coisa fez-se bem, com atrasos, mas sem ruturas. Mas à tarde já tivemos mais dificuldades, notou-se mais mobilização. Na Grande Lisboa não tivemos problemas, mas na Maia tivemos mais limitações, mesmo com segurança”, disse o responsável.
Ainda assim, garante, as perturbações não são relevantes. “O fornecimento de produtos e bens essenciais foi até ao momento assegurado com a colaboração de todas as autoridades e entidades envolvidas neste processo e a estratégia desenvolvida pelos associados tem sido eficaz, em combinação com os serviços mínimos destacados para o sector”, disse Gonçalo Lobo Xavier.
Ao Observador, o Continente garante que “até ao momento não se verifica qualquer falha no fornecimento de alimentos nas superfícies comerciais do Continente“. A cadeia distribuição adianta que “todas as superfícies comerciais da insígnia estão preparadas para responder aos desafios impostos por esta greve”, acrescentando que está a “acompanhar o tema e respetivas evoluções, consciente do potencial impacto na operação do retalho alimentar”.
Já fonte oficial da Mercadona diz que, nas quatro lojas em Portugal, esta segunda-feira foi “um dia normal“, não só no que toca ao abastecimento de produtos, mas também à procura dos clientes. A cadeia, que chegou a Portugal no início de junho, assegura que tem vindo a preparar-se “para o que vier”. “Temos vindo a preparar-nos com os fornecedores, para termos uma capacidade de resposta mais rápida”, avançou a mesma fonte.
Se tem razões para estar preocupado? Não mais do que na semana passada. Certo é que as próximas horas vão ser decisivas, até porque não há sinais de recuo por parte dos sindicatos. Entre os maiores riscos para o abastecimento no decorrer desta greve está o cenário de bloqueios de estrada. Ninguém o admite, mas aconteceu na greve dos camionistas de 2008 (na altura por causa do preço crescente dos combustíveis).
Os grevistas cortaram rotundas estratégias para o acesso a locais-chave. Postos de combustível ficaram secos e supermercados começaram a ficar sem bens de primeira necessidade. Na altura chegou a falar-se de racionamentos nos supermercados. Nesta greve, todos os responsáveis da distribuição recusam sequer admiti-lo, dizendo-se preparados.