O Presidente da República bem tentou puxar Fernando Medina para o centro da tensa negociação com os professores, que decorreu enquanto avançavam os protestos nas ruas e a greve nas escolas. Mas o primeiro-ministro e os dois ministros apareceram a falar em coro: o Governo está apostado em mostrar-se coeso, numa altura de fragilidade e em que a esquerda alimenta a tese do estrangulamento financeiro desta negociação. O argumento das “contas certas” está a ser aproveitado para o ataque ao Governo — e mesmo parte do PS mostra-se preocupada com as limitações que isso pode trazer às pretensões de uma importante base de apoio do partido.
Do lado do Governo, António Costa respondeu diretamente a Marcelo Rebelo de Sousa, na quarta-feira, quando garantiu a “boa fé” do Executivo nas negociações, acrescentando que “quando o ministro negoceia fá-lo em nome de todo o Governo, que é só um e é uma equipa. Não há o ministro das Finanças, da Educação, do Trabalho”.
Não é um acaso a referência ao ministro das Finanças: no dia anterior, Marcelo tinha feito questão de mencionar Medina, defendendo que “quando há responsabilidade financeira não é só o ministro da Educação que é convocado para a solução, é importante que o ministro das Finanças e o Governo como um todo sejam envolvidos”.
A ideia transmitida pelo líder do Governo foi repetida pelo ministro da Educação, João Costa, e Fernando Medina, que esta semana recusava comentar as negociações, frisando que “o Governo tem de falar a uma só voz”. Ficava clara a intenção de blindar a negociação com os professores, afastando a ideia de que uma financeirização dessa discussão estará a travar as conversações.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o braço de ferro entre professores e Ministério da Educação.
Esta quinta-feira, chamado de urgência ao Parlamento, João Costa fez de tudo para esvaziar o balão. “A vontade de diálogo e negociação nunca foi interrompida”, começou por assegurar, antes de tentar apelar ao regresso à normalidade. “É tempo de recuperar a serenidade, de continuar a negociar e sobretudo de garantir que após dois anos de pandemia as escolas funcionam com normalidade, disse.
Esquerda espicaça ala esquerda (do PS)
Mas a sombra das contas certas continua a pairar. Desde logo, à esquerda do PS, onde os antigos parceiros avisam para o perigo de o ministério de Fernando Medina estar a dificultar o avanço negocial — e espicaçam a esquerda do PS: João Costa deve estar a fazer “malabarismo” com os limites orçamentais impostos pelas Finanças, comenta-se no Bloco.
A mesma tese tinha sido defendida pelo dirigente Jorge Costa, que num artigo de opinião no portal do Bloco de Esquerda questionava o papel da esquerda do PS e do seu “expoente” máximo, Pedro Nuno Santos, considerando que o assunto é “incómodo” para esta ala do partido e desafiando-a a pronunciar-se. A ideia é clara: mesmo que o ministro queira levar as negociações mais longe, os constrangimentos financeiros falarão sempre mais alto.
O argumento financeiro é evocado por António Costa, quando trava a aspiração dos professores de recuperar a contagem do tempo de serviço que ficou congelado — os nove anos, quatro meses e dois dias que já reivindicavam em 2019 e que chegaram a provocar uma quase crise política, com o Governo, nessa altura apoiado pela geringonça, a admitir demitir-se caso a oposição aprovasse essa proposta.
Aqui, a narrativa do Governo continua intocável, com Costa a dizer esta semana que é preciso “não dar um passo maior do que a perna” e a lembrar que foi o seu Governo que descongelou as carreiras, mas que não pode “resolver o passado, apenas garantir no futuro”. Ou seja, Costa continua a manter a porta fechada nesta frente de negociação, argumentando com o peso permanente que uma medida destas traria à despesa do Estado.
Base de apoio preocupa
“Costa e Costa estão alinhados numa questão: falarem contra a assunção da despesa fixa permanente”, nota um socialista, frisando que a narrativa do Governo continua a ser ancorada nas “boas contas” que tem conseguido manter. “Se Costa pôs a geringonça em causa por causa disso [da recuperação do tempo de serviço], não vai acontecer”, frisa. “Não há Governo das Finanças e Governo das outras áreas”.
O que não significa que o PS não se preocupe com a importante base de apoio que tem nos professores e não reconheça que é preciso dar alguma vitória ao setor. Na reunião do grupo parlamentar do PS desta quinta-feira o tema foi abordado, com alguns deputados a intervirem para chamar a atenção para o problema e para a necessidade de o Governo ser claro na explicação das suas propostas e dos limites até onde poderá ir na negociação, de acordo com várias fontes presentes na reunião.
“É preciso dar uma vitória aos professores no sentido de os dignificar. Tem de se encontrar forma de os pacificar e responder às suas ansiedades”, nota um deputado, frisando a importância de refrescar a memória dos professores com medidas como o descongelamento das carreiras — uma ideia constante no discurso de António Costa. “Os professores não foram maltratados pelo PS, fomos nós que descongelámos as carreiras”, nota a mesma fonte.
Por agora, ainda há alguma paz para João Costa no PS, que vai poupando o ministro. “É preciso dar um sinal aos professores. Algum incentivo de melhoria na carreira terá de se dar”, sentencia uma deputada, antes de defender que o atual ministro era, enquanto secretário de Estado, “adorado nas escolas por alguma razão” e que estará a “mostrar abertura” negocial, depois de o mesmo ministro ter irritado os sindicatos ao pedir um parecer sobre a legalidade da greve ao conselho consultivo da PGR.
Para o socialista Ascenso Simões, é o ministério da Educação que “está velho”. “Não tem solução, é uma massa de gente que se distanciou da realidade da Educação. Isto independentemente do ministro”, diz em declarações ao Observador. O antigo dirigente do PS tinha escrito, esta semana, no Expresso um artigo de opinião em que defendia que António Costa “não pode perder esta oportunidade para refazer a relação com os professores, para repensar a sua carreira, para lhes retirar a carga desnecessária que lhes colocaram em cima”.
Ao Observador, Ascenso Simões acrescenta o problema que este confronto traz para a base de apoio do PS. “O PS sempre teve nos professores uma base de recrutamento para a sua estrutura no país e foi progressivamente perdendo essa base”.
Governo assegura avanços, Marcelo pressiona
Entre os socialistas, aponta-se a importância de comunicar bem neste contexto delicado, que já trouxe muitos amargos de boca ao PS e que alimenta a perceção de que os governos de Costa têm uma tensão latente com os profissionais do setor. A estratégia que está a ser delineada passa por arrumar a questão da recuperação do tempo de serviço, que o Governo considera “resolvida“, e focar a disponibilidade para resolver “problemas muito concretos e estruturais”, diz um alto dirigente.
Ou seja, a ideia é lembrar que os pontos em que o Governo se mostra disponível para negociar, nomeadamente a vinculação dos professores contratados e as mudanças no modelo de colocação, são soluções concretas que mudarão a vida de muitos profissionais. “E que não são neutras também do ponto de vista financeiro”, lembra a mesma fonte.
Esta semana, o primeiro-ministro frisava o mesmo ponto: a vinculação dos professores terá “um impacto orçamental muitíssimo significativo“, nomeadamente quando os professores forem “reposicionados”, contando “o serviço que efetivamente prestaram”.
A mensagem que o PS quer passar nesta altura é que há milhares de professores que vão “ganhar com a previsibilidade nas suas vidas e nas relações laborais” — e que as cedências que está a fazer não são de pormenor, mas “suficientemente robustas” para vir resolver problemas estruturais, mesmo que a recuperação do tempo de serviço esteja definitivamente fora do pacote.
A pressão, ainda assim, está alta e continua a chegar de Belém: Marcelo tem vindo quase diariamente a público defender os professores e ainda não deu por encerrado o capítulo da recuperação do tempo de serviço que ficou congelado.
“A única coisa que eu vejo mais difícil, porque implica muito dinheiro, ou implica uma modificação substancial, é o reconhecimento — sobretudo se for de uma só vez, se não for faseado — daquilo que foram realmente os sacrifícios de carreira dos professores por causa das crises sucessivas do passado”. Marcelo admitia “achar difícil”, mas “possível” que essa margem existisse. O Governo discorda.