Portugal deu ordem para suspender a importação de resíduos para tratamento ou depósito em território nacional em maio deste ano. A instrução, que vigora até ao final do ano, tem como objetivo salvaguardar a capacidade nacional de instalações, num quadro da pandemia e para responder às crescentes importações deste material.
A suspensão não se aplicava a resíduos que já tivessem entrado em território nacional ou águas territoriais portuguesas. No entanto, não foi a tempo de evitar a chegada a Portugal de quase 3,6 mil toneladas de resíduos oriundos de Itália, acomodados em 144 contentores que aportaram a Leixões (36) e a Sines (108). No cumprimento da ordem de suspensão, a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) e a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) impediram o desembarque destes resíduos, que tinham como destino aterros e ou tratamento da responsabilidade de várias empresas portuguesas.
Mais de três mil toneladas de resíduos de Itália impedidas de entrar em Portugal desde 17 de maio
No entanto, e apesar das boas intenções por detrás da política de fecho do país a resíduos estrangeiros, a decisão do Governo acabou por criar um problema sobre o que fazer ao lixo vindo de Itália. As autoridades ativaram os mecanismos previstos no regulamento comunitário para situações de transferências que não foram concluídas, com o objetivo de levar as autoridades de expedição a retomarem os mesmos, o que neste caso envolveria o regresso a Itália ou o envio para outro local.
Mas, confirmou fonte oficial do Ministério do Ambiente e Ação Climática ao Observador, “não foi possível alcançar um acordo”. Face a esta situação, o “Estado português tem que assegurar o envio dos resíduos para destino final adequado, tendo neste sentido identificado soluções alternativas aos destinos originalmente planeados”. E é esta alternativa passa por assumir os custos com o armazenamento nos portos e posterior tratamento e/ou deposição dos resíduos em território português, como estava previsto antes da suspensão. Só que a fatura já não será paga pela entidade italiana que os enviou, mas pelo Estado português, e indiretamente pelos contribuintes.
Em causa, e segundo esclareceu a mesma fonte, estão resíduos classificados com o código 19.12.12 na Lista Europeia de Resíduos, onde se incluem as misturas de materiais do tratamento mecânico de resíduos não perigosos. O destino era aterros de resíduos não perigosos.
Já um despacho publicado em outubro constata que “tendo-se gorado estes esforços, importa pôr fim à retenção dos resíduos em porto, geradora de custos diários de armazenamento, e dar-lhes destino final adequado após a necessária caracterização, o que implica o pagamento dos custos das análises, do transporte e da eliminação dos resíduos em destino final adequado, que se estima ascenderem ao valor máximo de 2 milhões de euros.”
O despacho assinado pelo ministro Matos Fernandes determina ainda que esta fatura será suportado pelo Fundo Ambiental. Este instrumento é financiado por contribuições, impostos e taxas ambientais, mas também pela venda de licenças de CO2, e tem vindo a ser cada vez mais chamado a pagar custos e financiar subsídios na área ambiental, mas também nos transportes públicos e na produção de eletricidade.
De acordo com fontes do setor ouvidas pelo Observador, os contratos de venda e exportação de resíduos para Portugal envolvem em regra pagamentos antecipados, ou seja, o cliente paga antes de a carga chegar ao destino. Depois de ser desembarcada e processada é feito um acerto dos valores. Neste caso, o que pode ter acontecido é as empresas que iam receber e tratar os resíduos terem reembolsado as entidades italianas que despacharam a carga para Portugal. O que deixou a conta para pagar ao Estado português.
De acordo com uma fonte do setor, os clientes italianos iriam pagar um valor muito inferior aos dois milhões de euros de despesa autorizada para a deposição em aterro, cerca de 300 mil euros.
O Observador contactou três das empresas que, segundo o Ministério do Ambiente fizeram contratos para receber os resíduos originários de Itália — a BioSmart, a Resilei e a ValorRIB — mas não obteve esclarecimentos sobre com que tipo de entidades italianas fizeram contratos, nem sobre se houve devolução de pagamentos. Duas destas empresas — a Valor RIB e a Resilei (participada do grupo SUMA) remeteram para a AEPSA (Associação das Empresas Portuguesas do Setor do Ambiente). A associação do setor refere “que não dispõe de elementos concretos para poder responder, dado que se referem a relações comerciais estabelecidas diretamente com cada empresa e as entidades que contratam estes serviços”.
Quando questionado sobre o porquê de não ter permitido o desembarque dos resíduos e a execução dos contratos entre as entidades italianas emissoras e as empresas portuguesas recetoras, fonte oficial do Ministério do Ambiente e Ação Climática (MAAC) justifica:
“As entidades não podiam receber esses resíduos pelo facto de se ter verificado que os mesmos entraram em território nacional após 16 de maio, data inicial estabelecida no diploma para a suspensão das autorizações de movimentos transfronteiriços de resíduos com destino em deposição em aterro de resíduos não perigosos, tendo por essa razão ficado retidos os contentores respetivos nos portos portugueses de Sines e Leixões. Estando suspensas as autorizações relativas aos movimentos de resíduos a que respeitam os contentores retidos nos portos de Sines e Leixões, a execução dos contratos originalmente celebrados pelo notificador constituiria uma violação da suspensão determinada pelo Governo”.
E assim, prossegue fonte oficial do MAAC, “foram desencadeados os procedimentos junto das autoridades de expedição para que estas procedessem à retoma dos resíduos, não tendo sido possível alcançar um acordo. Face a esta situação, o Estado português tem que assegurar o envio dos resíduos para destino final adequado, tendo neste sentido identificado soluções alternativas aos destinos originalmente planeados”.
O Observador quis ainda perceber se este desfecho traz alguma vantagem ambiental ou outra para Portugal, uma vez que os resíduos serão na mesma tratados – ao que tudo indica em território nacional –, mas a resposta do Ministério do Ambiente não foi clara.
“A intervenção do Estado ficou a dever-se, como referido na questão anterior, à falta de acordo com as autoridades de expedição e à necessidade de minimização de um problema ambiental e de saúde pública. As soluções que estão a ser avaliadas garantem um destino final adequado para os resíduos, sem colocar em causa a autossuficiência nacional que esteve na base da decisão de suspender os efeitos das autorizações para movimentos transfronteiriços de resíduos.”
Um dos cenários será o reencaminhamento destes resíduos para a incineração em empresas com capacidade para tal, como a Lipor ou Valorsul, o que permitirá salvaguardar a capacidade nacional de depósito em aterro.
Aumento de importações de resíduos pressiona aterros nacionais
Quando em maio foi anunciada a suspensão das importações, ao abrigo das medidas excecionais para responder aos efeitos da pandemia, dados divulgados pelo Ministério do Ambiente indicavam que o país tinha – até maio – recusado a entrada a 246 mil toneladas provenientes de outros países, uma quantidade que ultrapassa os resíduos recebidos para deposição em aterro durante 2019.
O despacho de outubro destaca que as “transferências de resíduos oriundas de outros Estados-Membros da União Europeia para eliminação em aterro em território nacional conheceram um crescimento muito significativo nos últimos anos, colocando pressão sobre a capacidade limitada de aterro e a capacidade de observar os princípios da proximidade e autossuficiência na gestão dos resíduos”.
Esta pressão é agravada pelas condicionantes criadas pela pandemia que levaram à adoção de medidas de emergência no setor da recolha e tratamento de resíduos com vista a mitigar o risco de contágio dos trabalhadores dos municípios, sistemas de gestão de resíduos urbanos e operadores de gestão de resíduos. Entre outras medidas, foram estabelecidos limites à separação e ao tratamento dos resíduos indiferenciados para reduzir a possibilidade de contacto com materiais potencialmente contaminados, incluindo equipamentos de proteção individual.
Em resultado disso, a fração destes resíduos a eliminar por deposição em aterro aumentou, colocando nova pressão sobre a capacidade nacional de eliminação de resíduos em aterro.
Sem se pronunciar sobre as questões contratuais das suas associadas, a AEPSA concorda com a revisão das regras de transferência de resíduos e aguarda, assim, a nova regulamentação destas medidas. A associação lembra assina que o Pacto Ecológico Europeu implica que a Comissão Europeia tenha procedido à revisão das regras europeias aplicáveis em matéria de transferência de resíduos, com vista a apoiar a transição para a Economia Circular.
Foi colocada em consulta pública uma proposta de regras para assegurar um sistema de controlo mais eficaz, medidas contra as transferências ilegais e medidas que visam evitar eventuais efeitos negativos para o ambiente e para a saúde causados por transferências de resíduos para países terceiros. A Comissão Europeia deve adotar o novo regulamento no primeiro trimestre de 2021. E quando isso acontecer, o regulamento entrará imediatamente em vigor na ordem jurídica portuguesa, refere ainda a AEPSA a qual recorda também que o Plano de Economia Circular, aprovado em Março de 2020, já identificava a necessidade de revisão das regras de transferência de resíduos até 2021.
China fechou a porta ao plástico estrangeiro e os aterros ilegais dispararam na Europa
O problema não é apenas português, mas há países que têm sentido mais dificuldade em lidar de forma adequada com os resíduos produzem. E um deles é precisamente Itália, onde este negócio tem sido muito permeável à intervenção do crime organizado, o que também resulta na proliferação de aterros ilegais que não cumprem as condições de segurança e ambientais. O problema agravou-se quando a China suspendeu a importação de resíduos de plástico em 2018. Em 2018, a Itália foi o segundo maior emissor de resíduos para Portugal, a seguir ao Reino Unido, registando um forte crescimento.
De acordo com dados da Interpol, citados pelo jornal Politico, desde o encerramento da China vários países europeus, incluindo Itália, França, Espanha, República Checa e Suécia, assistiram a uma subida significativa de depósitos ilegais de resíduos. E em alguns casos, há também exportações ilegais de plástico de vários países europeus para destinos no sudoeste asiático. A Malásia tornou-se no principal destino, como revela o relatório de agosto de 2020 da Interpol.
A crescente procura pela gestão de resíduos conduziu a uma especialização por parte de grupos do crime organizado nestas atividades, afirma José Alfaro Moreno, especialista da equipa de crimes ambientais da Europol citado pelo Politico. Os resíduos são um negócio que vale milhares de milhões de euros, acrescentou.
Já os depósitos ilegais que ficam dentro de portas são muitas vezes responsáveis por incêndios de resíduos para os quais não existe internamente capacidade para reciclar.