Nos primeiros encontros ele ouvia muito, fazia várias perguntas e mostrava-se genuinamente interessado. Era pouco o espaço que encontrava para falar de si e isso parecia normal. Não havia as habituais “red flags” de se ficar de pé atrás mas, agora que o tempo passou, a perspetiva é outra. A história pertence a uma mulher de 39 anos que prefere não ser identificada. É ela quem fala no seu “ex-narcisista” com quem namorou durante oito anos — a relação terminou há três, mas os estragos, depois de muita terapia, ainda se fazem sentir. Ao Observador conta como, no fim, se sentiu objetificada, anulada e vazia.
Conheceram-se na noite dos Santos Populares, em Lisboa, e no primeiro encontro o homem que parecia “um príncipe encantado” ofereceu-lhe uma peça de joalharia: “Achei que era demasiado, mas ele justificou-se como sendo normal”. A relação avançou desde logo muito rápido. “Foram muitas mensagens trocadas, encontros quase a nível diário. Disse-me que nunca se tinha sentido assim, que eu era exatamente o que ele queria fisicamente. Nunca vi isso como um elogio, mas ele também dizia coisas como ‘admiro-te muito’.” Olhando pelo espelho retrovisor, as coisas que mais elogiou foram, no fim, as que mais criticou.
O pedido de namoro não tardou e ocupou a forma de um grande gesto romântico: no rescaldo de uma viagem de amigos, ele foi ter com ela e ajoelhou-se. “Achei que estava a realizar o sonho da minha vida.” Achou também, em certas alturas, que não estava à altura daquela pessoa “muito bem parecida e bem sucedida”. Aos quatro meses de namoro surgiu o convite para conhecer os pais e, apesar de algumas reticências dela, o então namorado ganhou a argumentação de forma persuasiva — ela não queria, achava que era cedo demais, mas ele fazia questão de apressar os passos.
As coisas começaram a ficar complicadas, diz, quando já estava conquistada. Nessa fase, recorda com custo, “tentou isolar-me das pessoas, os meus amigos incríveis deixaram de ser incríveis e passaram a ser problemáticos”. E se ao início ele gostava de a ver dançar e ser social, mais tarde o dedo ser-lhe-ia apontado por ser o centro das atenções. “É muito difícil saíres da relação quando ninguém sabe no que estás metida. Com os outros ele era ótimo no trato e toda a gente achava que eu tinha uma vida incrível. Porque os narcisistas trabalham para fora.”
Um dia está a tratar-te muito mal, no dia seguinte ama-te como se nada tivesse acontecido. Para sair de casa tive de combinar uma data com a minha terapeuta, fui tirando as roupas às escondidas.
Ainda hoje garante que o ex-namorado não tinha consciência do que fazia, até porque “achava-se demasiado bom para se colocar em causa”. Mas antes da real consciencialização do que lhe aconteceu, o corpo dela começou a sintomatizar as dificuldades emocionais pelas quais ia gradualmente passando: perdeu mãos cheias de quilos e visitou várias especialidades médicas para tentar perceber o que se passava. “Ele nunca foi comigo ao médico e acusou-me de fingir que estava doente para chamar à atenção.” Foram precisos dois anos de terapia, conta, para conseguir dizer em voz alta “fui vítima de abuso narcisista”. “A mim ele tirou-me tudo: um narcisista não quebra o coração, quebra o espírito. A pessoa que eu era não é recuperável”.
Quais os sinais de que se está numa relação com alguém patologicamente narcisista?
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Segundo Margarida Vieitez, autora e mediadora familiar, a vitima sente-se “sugada” de energia, mas também intoxicada, exausta, irritada e confusa, duvidando até da sua perceção e das suas capacidades de avaliação da situação. “Muitas vítimas apresentam grande instabilidade emocional, desorientação, tristeza, ansiedade, insegurança e sentimento de impotência”, refere, acrescentando ainda a “sensação de ter a dignidade e as capacidades sempre à prova.
“Love bombing”: gestos românticos, manipulação e narcisismo
A expressão inglesa “love bombing” não de é todo desconhecida da mulher que prefere não ser identificada, tanto que ao Observador diz que essa fase ainda durou muito tempo. Assumindo-se o estrangeirismo, num artigo do The New York Times explica-se que o “love bombing” acontece quando grandes gestos românticos (e o contacto constante) transformam-se numa prática de namoro manipulativa com o intuito de quem os protagoniza ficar em vantagem na relação. Mostrar atenção excessiva ou dar vários presentes numa fase prematura da relação podem ser exemplos, bem como um sinal de que se namora com uma pessoa narcisista.
Nem sempre é fácil distinguir comportamentos ou padrões mais preocupantes, mas em causa pode estar o facto de a outra pessoa prestar de tal forma atenção que somos consumidos por isso, com o artigo já citado a referir que atos exagerados podem ser vistos como românticos e até sedutores, dependendo do que acontece entretanto ou depois.
Mas antes de dar espaço a ideias incorretas, o médico psiquiatra João Carlos Melo faz questão de salientar: a noção de que há pessoas narcisistas e não narcisistas não é real. “Nós temos um funcionamento narcísico da mesma maneira que temos um funcionamento respiratório”, diz, enfatizando que há o narcisismo saudável e aquele patológico (perturbação da personalidade que consta no Manual de diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, DSM-5). O primeiro grupo diz respeito a pessoas capazes de gostarem de si próprias e dos outros, e o segundo engloba indivíduos com uma autoestima “lesada ou diminuída” e tem dois polos opostos: se por um lado há quem tenha sentimentos de inferioridade e, por isso, procure agradar os outros para evitar ataques ou não defenda os seus pontos de vista, por outro, há quem seja arrogante, vaidoso e manipulador. Embora ambos tenham baixas autoestimas, são os comportamentos que os distinguem.
Qual a relação entre narcisismo e autoestima?
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“Muitos narcisistas tem uma frágil autoestima e autoconfiança, e são pessoas muitos inseguras, embora possam parecer exatamente o contrário”, diz ao Observador a mediadora familiar Margarida Vieitez. Entre os traços mais distintivos de pessoas patologicamente narcisistas, distingue os seguintes: a necessidade de ter razão e de exigir perfeição, a dependência emocional, a imprevisibilidade comportamental, o interesse desmedido, a dificuldade em gerir diferenças e lidar com a critica, culpabilizar e vitimizar-se. “Constante insatisfação e ‘birras’ fazem parte da atuação de muitos narcisistas.”
Considerando as pessoas “arrogantes e vaidosas”, a fragilidade individual é defendida por meio de uma carapaça, mas não só: eles defendem-se atacando os outros. E nas relações amorosas procuram seduzir, controlar e até anular a pessoa com quem estão. Numa situação limite, diz o também autor de vários livros sob a chancela da Bertrand, incluindo “Nascemos frágeis e recebemos ordens para sermos fortes”, são psicopatas emocionais — ainda que a expressão não seja oficial da psiquiatria, “é correta”. Numa relação romântica são ainda capazes de estudar as vítimas durante muito tempo. “Por norma são homens que fazem isto ou com mulheres que eles percecionam serem cuidadoras ou com mulheres que precisam de ser cuidadas.” O também psicoterapeuta, grupanalista e membro da Sociedade Portuguesa de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo (SPGPAG) fala ainda em pessoas que usam “estratégias para prender” o outro. Mas não é o único.
Teresa Espassadim, psicóloga clínica, assegura que estas pessoas têm dificuldades na intimidade: estando apaixonadas por si mesmas, sobra pouco espaço para o outro, que “só existe como mundo relacional se acrescentar algo”. Estas relações instrumentais podem servir para aumentar ou confirmar o estatuto, o que implica, por exemplo, a procura de um parceiro esteticamente parecido. Do “love bombing” fazem parte comportamentos de controlo, mas também a manipulação, “vulgarmente conhecida como sedução”. O aparente pedestal em que o outro é colocado, no início de uma relação, é uma forma de exercitar influência para limitá-lo e condicioná-lo. E isso, assegura a psicóloga, passa por afetar a autoestima. “Se consigo reduzir o outro a nada, a considerar-se fraco ou insuficiente, não preciso de exercer grande controlo”, diz. “Raramente sabemos o que está a acontecer ou como o conseguimos combater. A manipulação costuma ser implícita e não explícita.” Espassadim lembra ainda que a perturbação de personalidade — que aponta para uma exacerbação de “características rígidas e disfuncionais que não se alteram com a passagem no tempo” — não é frequente e representará à volta de 1% da população global. João Carlos Melo suspeita que a percentagem seja mais elevada.
Da mitologia grega aos “vampiros emocionais”
Um reencontro de ex-colegas de turma, volvidos 30 anos, foi o pretexto para a aproximação. Ainda que ele estivesse irreconhecível, com o cabelo loiro tingido de branco pelo tempo, o “olhar intenso e até reptiliano” foi desde logo notado por Isabel, enfermeira na casa dos 40 anos. Meses depois, já a pandemia estava instalada no país e no mundo quando começaram a falar através do Whatsapp. “Percebi que ele não estava bem, que o casamento dele não estava bem. E eu tinha-me formalmente divorciado há seis meses. Encontrámo-nos porque ele insistiu que me queria ver”, conta ao Observador.
Psicopatas domésticos. Eles estão entre nós e nas nossas relações
A fase do “love bombing”, diz, aconteceu durante dois ou três meses na forma de almoços e jantares caros. Foi, de certa forma, uma altura “inacreditável”, digna de um “conto de fadas”. “Era chegar a casa e ter rosas espalhadas pelas divisões, chegar ao carro e ter recados, declarações de amor por todo o lado, rosas de todas as cores — já não tinha jarras em casa.” A somar aos gestos românticos, as promessas. “Tirou a aliança à minha frente, apresentou-me à mãe dele ao fim de três semanas e ao melhor amigo, ao fim de duas, como a mulher da vida dele. Eu era um objeto de indulgência, ele estragava-me com mimos, fazia obras lá em casa e vinha de madrugada do trabalho só para me ver à janela. Senti que finalmente tinha encontrado alguém que me fazia sentir única.” Houve também pressa, da parte dele, para terem um filho e, mesmo tendo sentido que o pedido não era natural, Isabel confessa que estava “perdidamente apaixonada”. “Com ele a jurar proteger-nos para o resto da vida, interrompi a pílula, eu sabia que a minha fertilidade já não era a mesma dos 30 anos e que não engravidaria logo.” A relação foi de aproximadamente um ano, sendo que viveram seis meses juntos em casa dela e outros seis à distância — ao Observador, admite que tentou cuidar, além de ser parceira.
Os primeiros sinais de que algo não encaixava surgiram no final do “love bombing”, com ele a desvendar comportamentos excessivos face ao consumo de álcool e às apostas. Seguiram-se episódios de ciúmes “incontroláveis e até alucinatórios”, que levavam Isabel a questionar a sua própria conduta — é ela quem fala na expressão inglesa “gaslighting”, que se refere a uma forma de abuso psicológico. “A certa altura, ele achava que eu estava a fazer um conluio com outras pessoas. Havia um medo enorme de rejeição e perda. Ele fazia-me sentir altamente culpada.” Apesar da clareza com que hoje conta a história, na altura Isabel não se apercebeu do que se estava a passar e recorda como duas amigas, que não se conheciam, a alertaram para o facto de o novo namorado estar a “destruí-la”. Ao fim de seis meses de relação, e na sequência de um afastamento progressivo, ele pediu transferência para o Algarve. Meses depois, Isabel percebeu que ele continuava casado e, quando confrontado, negou que alguma vez tivesse mostrado vontade em separar-se. “Disse que eu não preenchia os padrões dele.”
Quando é que os gestos românticos são demais?
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Margarida Vieitez responde: “Se lhe parecer que está a viver um daqueles filmes românticos de Hollywood e tudo estiver a acontecer tal como sonhou toda a vida, saia da ‘tela’, sente-se na cadeira do cinema e continue a ver o filme mas do lado de fora. O amor de verdade não é uma comédia romântica, constrói-se dia a dia, assim como os afetos. Fique atenta/o a tudo o que lhe parecer demasiado (intimidade, atenção ou afetos) logo no inicio…”
“É muito difícil lidar com estas pessoas numa relação amorosa”, diz João Carlos Melo. O médico psiquiatra que trabalha também no Hospital Fernando Fonseca, em Lisboa, lembra o mito de Narciso, herói famoso pela sua beleza e que se apaixonou pelo seu próprio reflexo, e esclarece: “Não se pode ter a ilusão de que estes indivíduos vão mudar. Isto acontece mais com homens, que segundo as suas mulheres, são charmosos, sedutores e agradáveis socialmente. Mas na relação íntima, privada, não respeitam essas mulheres, a sua individualidade, procuram anulá-las. E os que têm bom carácter não conseguem criar uma ligação afetiva, são pouco empáticos.” João Carlos Melo concorda ainda com o termo “vampiros emocionais” — “tratam mal os outros porque precisam”.
O tratamento para alguém com estas características não é propriamente fácil, uma vez que tal significaria usar mecanismos diferentes com os outros, bem como ter consciência da sua baixa autoestima, daí que o especialista seja da opinião que expor essas fragilidades seria “demasiado devastador para essas pessoas”. Ainda assim, já recebeu pedidos de ajuda neste contexto: “Acontece uma pessoa destas marcar uma consulta e percebemos que não há motivação nenhuma. Acabamos por perceber que só vai lá para cumprir um plano, é uma distração e não um tratamento. O tratamento muitas vezes não resulta porque eles próprios não se entregam”. Ainda assim, o médico psiquiatra incentiva estas pessoas a procurar ajuda: “O grande aspeto positivo é admitirem e procurarem ajuda”.
O que está na base do narcisismo é o amor excessivo pela imagem, não apenas física, mas também a ideia do sucesso. “As pessoas com perturbação ficam de tal forma fixadas nesse ideal que não suportam lidar com as imperfeições”, acrescenta ainda a psicóloga clínica Teresa Espassadim, sendo que algumas delas “não olham a meios para obter os seus fins”. Há um sentimento de grande importância e fantasias de sucesso desmedido latentes, mas também ocorre a construção de ambientes tóxicos para preservar a ideia de superioridade. “Há défices ao nível da empatia, mas elas não perdem a empatia cognitiva — podem compreender o efeito do seu comportamento nos outros, mas não o sentem.”
Para quem se possa encontrar na posição da vítima, a psicóloga aconselha a investir no respetivo autoconhecimento, de maneira a manter a autoestima e a distinguir melhor “aquilo que se é do que aquilo que dizem que somos”. Num sentido mais prático, é importante não abdicar de atividades que dão prazer, preservar momentos de auto-cuidado e, acima de tudo, não cortar contacto com amigos e familiares. Isto é, “não por todos os ovos na mesma cesta”.
O maior desafio depois de abandonar a relação, conta a mulher que prefere não ser identificada, é lidar com perguntas como esta: “Se era tão mau, porque demoraste tanto tempo a sair?”. “Como é que dizes que aquele príncipe encantado é, afinal, um monstro?”, questiona-se ainda hoje. Tantos anos depois, continua a fazer terapia e já tentou, sem grande sucesso, voltar a namorar. “Estava demasiado quebrada, não me sentia preparada. Depois, houve a obrigação de me curar do ponto de vista da saúde mental. Depois do trauma tinha de saber quem é que eu era”, conta. Ao Observador, confessa que demorou tempo a pedir ajuda, mas a vergonha em contar o que aconteceu, essa, já não existe.