As grávidas que são acompanhadas no SNS têm cada vez maior dificuldade em realizar ecografias obstétricas. Em causa está a carência de médicos obstetras nos hospitais públicos, mas também a redução do número de clínicas privadas com convenção com o SNS, o que dificulta muito o normal acompanhamento da gravidez. A situação não é nova mas tem vindo a agravar-se, admitem os obstetras ouvidos pelo Observador e várias grávidas que tiveram de percorrer (ou ponderaram fazê-lo) centenas de quilómetros para realizarem as ecografias de primeiro e segundo trimestre — de extrema importância na deteção de malformações do feto.
“Há uma maior dificuldades das grávidas para conseguirem realizar ecografias. O SNS deixou de dar resposta a estas situações, devido à falta de recursos humanos”, admite o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal. Ao Observador, Nuno Clode sublinha que, nos hospitais públicos, há cada vez menos obstetras com competência em Ecografia Obstétrica, os únicos habilitados a realizar estes exames.
No final de 2019, e perante as ondas de choque desencadeadas pelo caso do bebé Rodrigo (que nasceu com várias malformações, depois de um obstetra de Setúbal não ter detetado os problemas nas ecografias), a Ordem dos Médicos aprovou a criação do Colégio da Competência em Ecografia Obstétrica Diferenciada. Assim, e a partir de 2020, todos os médicos que quisessem continuar a fazer ecografias teriam de ver as habilitações reconhecidas pela própria Ordem. A medida serviu “para dar maior segurança a estes atos, que implicam uma formação e uma prática por parte dos médicos”, esclarece Nuno Clode. No entanto, a obrigatoriedade de possuir a competência também reduziu a capacidade de resposta, tanto nos hospitais como nas clínicas privadas, dificultando o acesso das grávidas aos exames. “Não sendo possível realizar estes exames por pessoas pouco diferenciadas, as dificuldade de acesso aumentaram“, sublinha o obstetra.
Obstetras são desviados para as urgências. “Problema de organização do SNS”, diz Nuno Clode
Outro problema que dificulta o acesso às ecografias nos hospitais públicos é o desvio dos especialistas para as atividades dos blocos de partos das urgências. “Há muitos médicos que deviam estar a fazer ecografias diferenciadas e que são desviados para o excesso de trabalho nas urgências obstétricas, que têm falta de recursos humanos”, reconhece o presidente do Colégio de Obstetrícia da Ordem dos Médicos, João Bernardes, em declarações à SIC.
Neste momento, as dificuldades sentem-se tanto nas ecografias do primeiro como do segundo semestre. “As ecografias do primeiro e segundo trimestre têm de se fazer num prazo de tempo curto: 11 a 13 semanas no primeiro caso e, no caso da ecografia morfológica, de segundo trimestre (que deteta a maioria das possíveis malformações), entre as 20 e as 22 semanas. Se as grávidas não marcam com uma grande antecedência, é difícil. É um problema de organização do SNS“, diz Nuno Clode.
Márcia Soares, agora grávida de 14 semanas, chegou a ponderar fazer a primeira ecografia a Espanha, perante a falta de capacidade de resposta do Hospital de Setúbal (região onde vive) e os longos tempos de espera com que se deparou nas clínicas privadas.
Quando até ir a Espanha parece uma solução
Em julho, quando procurou uma clínica para realizar a ecografia do primeiro trimestre (que deve ser feita entre as 11 e as 13 semanas de gestação), só encontrou uma com convenção com o SNS em todo o distrito de Setúbal. Mas o tempo de espera era demasiado longo — dois meses –, o que não lhe permitia cumprir o timing do exame. Isto porque há cada vez menos espaços privados a realizarem ecografias ao abrigo de convenção com o SNS.
E mesmo nas clínicas sem acordo com o SNS a espera é longa, garante ao Observador: “As vagas são muito limitadas”. Uma das explicações para a falta de capacidade de resposta no privado é a questão da obrigatoriedade de os médicos terem a competência em Ecografia Obstétrica. “O SNS tinha poucas convenções com as clínicas e, a partir do momento em que mudaram as regras, há menos médicos disponíveis com habilitações”, realça Nuno Clode. “Ao apertarem o cerco aos médicos, algumas clínicas fecharam ou deixaram de fazer ecografias”, lamenta Márcia Soares.
Mas esse está longe de ser o único desafio que os privados enfrentam nesta área. As clínicas queixam-se de que manter convenções com o SNS não compensa: a comparticipação por ecografia é baixa, menos de 20 euros; a complexidade e o tempo despendido em cada exame são elevados.
Clínicas privadas também não dão resposta. “Convenções não são competitivas”
“As convenções não são competitivas, as ecografias obstétricas são muito complexas, exigem muito tempo e acarretam uma responsabilidade médico-legal muito elevada”, diz João Bernardes. Ao Observador, o diretor interino do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Santa Maria, Alexandre Valentim Lourenço, também admite que “os pagamentos podem não ser suficientemente aliciantes”, o que reduz a resposta do privado.
“A responsabilidade é muito grande e as pessoas não estão disponíveis, por dez euros, para realizarem uma ecografia em que têm de verificar se está tudo bem com o bebé ou não”, acrescenta, ao Observador, a diretora do Serviço de Obstetrícia do Hospital de São João, Marina Moucho.
Nuno Clode faz o mesmo diagnóstico. “O SNS paga muito pouco para fazer ecografias obstétricas, é um problema da forma como são remunerados os atos (há uma diferença abissal, nomeadamente com a ADSE e com as seguradoras). As pessoas não estão para isso”, afirma.
Márcia Soares acabou por conseguir vaga para realizar a primeira ecografia numa clínica acabada de inaugurar, perto da zona onde vive, que ainda poucas pessoas conheciam. Teve sorte, admite. “Neste momento, as mulheres que engravidam não conseguem marcar a ecografia de primeiro trimestre”, alerta. Um dos maiores obstáculos é o valor cobrado pelas clínicas privadas por uma ecografia obstétrica, e que pode variar entre os 30 e os mais de 100 euros. Uma despesa que Márcia pôde cobrir mas que é incomportável para muitas mulheres.
Se Márcia Soares acabou por conseguir uma vaga que evitou uma deslocação a Espanha, Sara (nome fictício) não conseguiu realizar a ecografia de primeiro trimestre na zona onde reside, em Lisboa, mesmo depois de ter feito uma busca incessante por um clínica com disponibilidade.
Sara fez mais de 700 quilómetros para fazer a primeira ecografia
Sara (nome fictício) está a meio de uma gravidez gemelar, de gémeos, considerada de risco, e, por isso, foi encaminhada, aos dois meses de gestação, pelo Centro de Saúde de Sete Rios para o Hospital de Santa Maria, onde está a ser seguida e onde deveria ter feito as ecografias. Mas, como conta ao Observador, a unidade hospitalar não tinha vagas para lhe fazer a ecografia de primeiro trimestre. “A médica que me atendeu disse-me que não seria contactada a tempo da ecografia”, sublinha a grávida, que prefere não ser identificada. Depois disso, Sara começou a procurar por disponibilidade de ecografias em clínicas de toda a área de Lisboa, sem sucesso. A espera média rondava os dois a três meses, quando Sara precisava de realizar o exame no prazo de quatro semanas. E a grande maioria dos espaços não têm protocolo com o SNS, diz.
“Cheguei a procurar em clínicas no Alentejo e Algarve. Acabei por conseguir no Hospital da Luz, em Guimarães”, a mais de 360 quilómetros de distância, sublinha. “Se tivesse ficado à espera do sistema público, não teria feito o exame”, garante, acrescentando que “não fazia a mínima ideia” da falta de capacidade do SNS nesta área, bem como das grandes listas de espera em clínicas privadas. No hospital privado da região norte onde acabou por realizar o exame e onde vai também fazer a segunda ecografia, paga 180 euros por exame (uma vez que se trata de uma gravidez de gémeos). “É o valor da eco e a deslocação. Posso suportar o custo mas para muita gente não dá”, realça esta grávida.
Já Laetitia Alves está grávida de 20 semanas, pela primeira vez. E, tal como nos casos de Márcia e Sara, deparou-se com dificuldades para conseguir realizar as ecografias. “É intimidante. Este stress da procura de um local para fazer a eco provoca ansiedade”, confessa. Laetitia foi obrigada a subscrever um seguro de saúde, pois, lamenta, “não há alternativas para além do privado”.
A viver em Palmela, Laetitia só conseguiu fazer a ecografia de primeiro semestre no Hospital da Luz, em Setúbal. Nem o Hospital de São Bernardo (onde a falta de obstetras é um problema que se arrasta há anos, sem solução à vista), nem nas clínicas privadas da região lhe garantiam uma vaga que permitisse cumprir o timing adequado para realizar a primeira ecografia. O segundo exame já está marcado para um hospital privado, em Lisboa.
No entanto, para muitas grávidas, com poucos recursos financeiros, a situação pode complicar-se. “Há mulheres que não fazem nenhuma ecografia, já estamos neste ponto“, garante Márcia Soares.
Norte e Sul, “dois países diferentes” e o risco de aumento de bebés com anomalias
Os problemas de acesso às ecografias do SNS concentram-se sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde a carência de médicos obstetras é muito mais acentuada do que na região Norte. O Hospital de Santa Maria, por exemplo, não faz ecografias às grávidas de baixo risco “vindas do exterior”, nomeadamente encaminhadas pelos centros de saúde, admite, ao Observador o diretor da Obstetrícia, Alexandre Valentim Lourenço. Esta é uma situação comum à grande maioria dos hospitais de LVT. A falta de acesso das grávidas de baixo risco (a maioria) às ecografias é “preocupante”, admite o responsável, sublinhando: “Precisamos de cerca de 250 mil ecografias de qualidade por ano para todas as gravidezes do país”, sendo que, diz o responsável pela Obstetrícia do Santa Maria, a formação em Ecografia Obstétrica “é longa e precisa de centros com grande volume e patologia”.
No Hospital de São João, no Porto, a situação é bem diferente. “Neste momento, estamos a fazer ecografias de primeiro e segundo trimestre a grávidas” do exterior, garante a diretora do Serviço de Obstetrícia, sublinhando que os obstetras da unidade “realizam algumas ecografias em produção adicional”, fora do horário de trabalho, num esforço para não deixar ninguém de fora.
Questionada sobre o contraste com a região Sul, a responsável admite que “são dois países diferentes”, tal a dimensão da diferença na capacidade de resposta dos hospitais de uma e de outra região. “As dificuldades são preocupantes. A evolução deveria ser para melhor e não para pior. É importante que pelo menos a ecografia do primeiro trimestre seja feita por alguém idóneo”, sublinha Marina Moucho. Ainda assim, a especialista refere que há alternativas, caso a primeira ecografia não possa ser realizada entre as 11 e as 13 semanas de gestação, como o rastreio de DNA fetal, mais conhecido como rastreio pré-natal. “Claro que se uma grávida não fizer nem a ecografia de primeiro nem de segundo trimestre, nem o DNA fetal, começamos a ter problemas, e pode haver um aumento do número de bebés com anomalias”, alerta a médica.
“Vamos ter gravidezes que vão resultar em bebés com deficiências profundas”, teme também Márcia Soares. “Estamos a andar para trás. Apetece-me dizer que, neste momento, as mulheres são obrigadas a agendarem a ecografia de primeiro trimestre antes de ficarem grávidas. Ou procurar zonas menos populosas, algo que me aconselharam a fazer”, conta.
Márcia Soares defende que “o estado tem de investir no SNS para não perder os médicos para o privado ou então pagar um valor justo às clínicas privadas para que as mulheres possam ser acompanhadas”.
O Observador questionou o Ministério da Saúde sobre as dificuldades de acesso das grávidas às ecografias no SNS e sobre que medidas estão a ser ponderadas para contornar a situação, mas não obteve resposta.