Foi uma promessa mantida ao longo da campanha. Em vários comícios e eventos partidários, o Presidente eleito dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, garantiu que ia acabar com a guerra na Ucrânia em “apenas 24 horas”. O republicano nunca explicou de que maneira é que ia pôr fim ao conflito entre Kiev e Moscovo, que dura há dois anos e meio, mas já deixou no ar que pondera terminar com o apoio militar e financeiro norte-americano que tem sustentado o esforço de guerra ucraniano.
A entourage e os apoiantes mais à direita de Donald Trump defendem abertamente o fim do apoio à Ucrânia. Uma das principais vozes, que admitiu que “não quer saber da Ucrânia”, é a do vice-presidente eleito, JD Vance. O republicano até já apresentou um plano que prevê que a Ucrânia ceda alguns dos territórios atualmente controlados pela Rússia, em troca da garantia de que o Presidente russo, Vladimir Putin, mantenha a “independência e neutralidade” do restante território ucraniano. Zelensky, por outro lado, tem insistido sempre que a paz não pode ser conseguida à custa da perda de territórios pela Ucrânia.
Ainda não é certo o que Donald Trump vai fazer e se vai manter a promessa de terminar com o conflito em apenas “24 horas”. Em setembro de 2024, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, encontrou-se com o republicano. O magnata até disse que “mantinha uma relação muito boa” com o Chefe de Estado ucraniano, mas também ressalvou que se dá bem com o Presidente russo. “Se ganhar, vamos resolver isto muito rapidamente”, prometeu o republicano após a reunião.
Diplomaticamente, Volodymyr Zelensky está empenhado numa ofensiva para que o apoio norte-americano não termine de um momento para o outro. Na noite desta quarta-feira, o Presidente ucraniano escreveu nas redes sociais, em tom elogioso, que manteve uma “excelente conversa ao telefone” com Donald Trump. “Dei-lhe os parabéns por uma vitória esmagadora e pela sua tremenda campanha”, saudou o Chefe de Estado. “Concordámos em manter um diálogo próximo e avançar com a cooperação. Uma liderança forte dos Estados Unidos é vital para o mundo e para uma paz justa.”
Numa relação mais complexa com os Estados Unidos, a Europa olha para a resolução da guerra em 24 horas com muita apreensão. A cedência de territórios ucranianos à Rússia seria encarado como um presente para Vladimir Putin e é algo a que os países europeus, principalmente aqueles que partilham fronteira com território russo, se opõem liminarmente, temendo que a solução possa incentivar a Rússia a atacar um país europeu.
Na ressaca da vitória de Donald Trump, o eixo franco-alemão já reagiu e marcou uma reunião entre os ministros da Defesa dos dois países para os próximos dias. O secretário-geral da NATO, o neerlandês Mark Rutte, escreveu um editorial no Politico a lembrar que os apoios fornecidos à Ucrânia são um “pequeno preço a pagar pela paz”. Os próximos tempos são de incerteza para a relação transatlântica e para um tópico que até agora unia Washington e as capitais europeias: o apoio a Kiev.
Zelensky felicita e negoceia com Trump. Europa prepara-se para embate
Pouco após Donald Trump terminar de discursar e declarar vitória, o Presidente ucraniano recorria às redes sociais para congratular a “vitória eleitoral impressionante” republicana. Volodymyr Zelensky recordou a “reunião fantástica” com o republicano em setembro, sinalizando que aprecia “o compromisso do Presidente Trump da ‘paz através da força’ nas relações internacionais”. “Este é exatamente o princípio que pode tornar a paz mais próxima da Ucrânia.”
O tom das publicações de Volodymyr Zelensky nas redes sociais é conciliatório e amigável, tentando evitar qualquer tensão com o republicano, reconhecido apreciador de manifestações de cortejo que lhe sejam dirigidas. As mensagens do líder ucraniano denotam até o que pode ser interpretado como uma certa bajulação de Kiev: “Esperamos ansiosamente por uma nova era dos Estados Unidos da América sob a liderança decisiva do Presidente Trump.”
Volodymyr Zelensky recordou também o magnata de que há fações dentro do Partido Republicano que apoiam o esforço de guerra ucraniano. Por exemplo, a antiga candidata nas primárias republicanas, Nikki Haley, advogava que os Estados Unidos deviam continuar a apoiar a Ucrânia. “Continuamos a contar com um forte apoio bipartidário dos Estados Unidos à Ucrânia. Estamos interessados em desenvolver uma cooperação mutuamente benéfica em termos económicos e políticos que vá beneficiar ambos os países”, acrescentou o Chefe de Estado ucraniano.
Congratulations to @realDonaldTrump on his impressive election victory!
I recall our great meeting with President Trump back in September, when we discussed in detail the Ukraine-U.S. strategic partnership, the Victory Plan, and ways to put an end to Russian aggression against…
— Volodymyr Zelenskyy / Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) November 6, 2024
Além disso, o Presidente ucraniano realçou que “a Ucrânia, como uma potência militar, está comprometida a garantir paz e a segurança a longo prazo à Europa e à comunidade transatlântica”. Esta ideia deve ser explorada por Volodymyr Zelensky nos próximos tempos — e pode servir como uma moeda de troca para tentar moderar Donald Trump em eventuais negociações com a Rússia: substituir contingentes norte-americanos por ucranianos na Europa.
Este é, aliás, um dos pontos do plano da vitória da presidência ucraniana que Volodymry Zelensky tornou público quando o apresentou perante o parlamento do país. “Após esta guerra, a Ucrânia vai ter um dos maiores e mais experientes contingentes militares. Essas pessoas, pessoas reais, os nossos militares, terão experiência real num cenário de guerra moderna, vão saber usar armas ocidentais e já interagiram com as tropas da NATO. A experiência ucraniana deve ser usada para fortalecer a defesa de toda a aliança e assegurar a segurança na Europa.”
Destacando esta medida na mensagem em que congratulava Donald Trump pela vitória nas eleições de 5 de novembro, o Presidente ucraniano está a tentar usar a máxima ‘paz através da força’ — e já a negociar com o magnata, que ganhou a fama de gerir o país como se fosse uma empresa. Volodymyr Zelensky está consciente de que o apoio norte-americano é vital para a Ucrânia — e espera que o magnata reconsidere as suas posições e adopte uma linha mais moderada. “Trump fala muito, mas eu ainda não o ouvi dizer que ele ia reduzir o apoio à Ucrânia”, comentou o líder ucraniano a 29 de outubro, numa visita à Islândia.
O foco da Ucrânia passará, igualmente, por explorar uma boa relação entre os dois Presidentes. Por exemplo, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Andrii Sybiha, frisou que os dois líderes têm um “diálogo que se prolonga no tempo, construtivo e orientado para resultados”. “Vamos trabalhar em conjunto para fortalecer a parceria estratégia entre os EUA e a Ucrânia e trazer uma paz justa, duradoura e extensa. Contamos com a liderança decisiva norte-americana.”
Ao jornal Le Monde, o antigo diplomata norte-americano e deputado ucraniano Bohdan Iaremenko projeta que os próximos tempos serão de “crise” nas relações entre Washington e Kiev. No entanto, numa nota mais positiva, o parlamentar assinala que “o Presidente Trump é bem capaz de mudar de ideias sob pressão dos seus conselheiros e sob pressão da opinião pública”.
Bohdan Iaremenko apontou também que a Ucrânia se foi preparando diplomaticamente para a vitória dos republicanos. O plano da vitória e a preparação de uma nova cimeira de paz que conte com a participação da Rússia foram formas de “criar um contexto político ou um momento que não permita que as partes em questão mudem radicalmente a sua posição após as eleições presidenciais”. Segundo explica ainda o parlamentar, a liderança ucraniana tem tido alguns “sinais contraditórios” sobre o futuro, mas alguns são mesmo considerados “positivos”.
Ainda que Donald Trump exerça uma forte influência no Partido Republicano, a Ucrânia também terá de convencer a ala MAGA (Make America Great Again, o slogan usado pelos membros mais à direita), abertamente contra o apoio à Ucrânia, sendo JD Vance um dos rostos dessa linha. O vice-presidente eleito detalhou, em entrevista ao New York Times, que pretende “congelar as linhas territoriais” em alguns locais, em troca de a Ucrânia se manter neutral, impossibilitando, por exemplo, a entrada de Kiev na NATO
“Não sou ingénuo. Penso que os russos pediram muitas coisas de forma desonesta, mas a neutralidade é claramente algo que eles veem como primordial”, prosseguiu JD Vance, que admitiu que, contrariamente ao que vários membros MAGA defendem, “vai continuar a haver alguma assistência securitária de longo prazo” à Ucrânia. Na mesma entrevista, o vice-presidente eleito deixou ainda a garantia: “Não temos interesse em que a Rússia controle o resto da Ucrânia.”
Putin não deverá congratular diretamente Trump, mas aliados não escondem satisfação com derrota de Kamala
Do Kremlin, em concreto, não surgiu qualquer sinal oficial de entusiasmo à vitória de Donald Trump. O porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, disse que não está a par de “nenhum plano” de Vladimir Putin para congratular pessoalmente o republicano. “Não nos esqueçamos de que estamos a falar de um país hostil que está direta ou indiretamente envolvido numa guerra contra o nosso Estado.”
Donald Trump nunca escondeu que mantém uma “muito boa relação” com o Presidente russo, mas Vladimir Putin é bastante mais parco em elogios. Por agora, o Kremlin sublinhou que quer “avaliar Donald Trump por atos concretos”, recordando que as relações russas e norte-americanas estão no “ponto mais baixo de sempre”. “Veremos o que acontece em janeiro”, deixou no ar Dmitry Peskov.
Contudo, o porta-voz do Kremlin mandou um recado a Donald Trump. O conflito na Ucrânia não pode terminar “de um dia para o outro”, parecendo criticar a promessa do republicano de terminar a guerra em apenas 24 horas. “Temos afirmado repetidamente que os Estados Unidos estão em posição de pôr fim a este conflito. Uma vez que os Estados Unidos estão a alimentar este conflito e estão diretamente envolvidos nele, acredito que os Estados Unidos podem mudar o rumo da política externa que adotaram”, afirmou.
Num comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo publicado esta quarta-feira, há um certo elogio tímido a Donald Trump. A campanha republicana “mostrou os assuntos que são do interesse do eleitorado, nomeadamente a economia e a imigração ilegal, como contrapeso ao percurso globalista da Casa Branca”. A diplomacia russa enfatiza, contudo, que não tem qualquer “ilusão sobre o Presidente eleito”, colocando também na mira as “elites que governam os Estados Unidos”: “Aderem a princípios anti-russos e alinham na política de conter Moscovo.”
“Essa linha não depende de mudanças no barómetro da política interna norte-americana, independentemente de se for Trump ou os seus apoiantes” a ocupar a Casa Branca, vincou o ministério, acrescentando que a Rússia vai interagir com a nova administração, sempre tendo em conta os “interesses nacionais da Rússia, e trabalhar para alcançar todos os objetivos da operação militar especial” — como a desmilitarização ou desnazificação da Ucrânia. “As nossas condições não mudaram e Washington está bem consciente disso.”
Entre os aliados de Vladimir Putin, houve quem comemorasse com mais euforia. O atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev, saudou que Kamala Harris tivesse perdido as eleições. No X, o ex-Presidente russo declarou ainda que os “objetivos da operação militar especial mantêm-se inalterados e serão atingidos”.
Nos corredores do Kremlin, em privado, as reações à vitória de Donald Trump são mistas. Segundo apurou o jornal independente Meduza junto de uma fonte próxima da presidência, a elite política russa não vê com maus olhos o republicano, esperando que termine com o apoio norte-americano à Ucrânia. “Ele fala sobre o conservadorismo, é rico, tem sucesso e não insulta a Rússia. É um tipo decente. Trump é como se fosse ‘do nosso tipo’ — no sentido em que ele é como nós”, salientou a mesma fonte, contrapondo que a perceção sobre Kamala Harris é bastante mais negativa: “Era alguém completamente incompreensível.”
Kamala is finished…
Let her keep cackling infectiously.
The objectives of the Special Military Operation remain unchanged and will be achieved.— Dmitry Medvedev (@MedvedevRussiaE) November 6, 2024
Ao Meduza, outra fonte próxima do governo mostra-se mais cética. “Trump é uma pessoa impulsiva — faz o que quer. Talvez até tenha algum impacto na Ucrânia, mas um acordo significa fazer cedências, incluindo por parte da Rússia. E, até agora, não parece que o Presidente [Putin] esteja disposto a fazer concessões”, considera, recordando que Vladimir Putin tem-se empenhado na missão de “construir uma coligação” contra o Ocidente, incluindo com países que o Chefe de Estado eleito vê como inimigos — como a China ou o Irão.
As mensagens que os líderes russos têm difundido mostram que Vladimir Putin não está disposto a fazer cedências nas negociações relativamente à Ucrânia. E tudo parece indicar que ou Presidente eleito norte-americano aceita os termos de um acordo elaborado exclusivamente pela Rússia (em que sai por cima e a Ucrânia acaba humilhada) ou, então, o conflito não será resolvido na mesa das negociações.
Europa começa a agir com o eixo franco-alemão coordenado
A poeira ainda nem tinha assentado quando a diplomacia alemã e francesa anunciaram, na manhã desta quarta-feira, que já se tinham reunido para debater o “novo contexto” que decorre da eleição de Donald Trump para a Casa Branca. O chanceler alemão, Olaf Scholz, assumiu que a União Europeia deve “manter-se ligada e agir de uma forma unida” em relação a vários tópicos — incluindo o da Ucrânia.
“Mais do que nunca, os europeus estão sozinhos.” Trump na Casa Branca pode ditar o fim da NATO?
No mesmo sentido, o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, acredita que os Estados Unidos vão manter-se como um aliado da Europa, mas prevê que a “Ucrânia vá precisar do apoio ilimitado da Europa”. Ao mesmo tempo, o governante defendeu que os países europeus “reforcem a soberania, estejam suficientemente unidos e deixem os egoísmos para trás”.
Esta quinta-feira, já será possível perceber os primeiros sinais sobre quão forte é a unidade europeia relativamente à eleição de Donald Trump. Em Budapeste, na Hungria, vai organizar-se uma cimeira da Comunidade Política Europeia, que reunirá os 27 Estados-membros e líderes de outros vinte países europeus. Entre os convidados está Volodymyr Zelensky, que já confirmou a presença no encontro. A guerra na Ucrânia será inevitavelmente um dos temas em destaque.
Apesar dos apelos à união, há um líder europeu, anfitrião da Comunidade Política Europeia desta quinta-feira, que destoa da ideia de continuar a apoiar a Ucrânia. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, prevê que, com a vitória de Donald Trump, a Europa não pode continuar a assumir um posicionamento “pró-guerra”: “A Europa não pode suportar o fardo [da guerra] sozinha. Se os norte-americanos escolherem a paz, então teremos de nos adaptar”. “É isso que vamos discutir em Budapeste”, adiantou.
Sem o apoio norte-americano em termos de armamento, será mais difícil para os militares ucranianos sustentarem a atual ofensiva russa no Donbass e outras partes do território. A Europa sente que, por uma questão estratégica, não deve deixar cair a Ucrânia; mas surgem dúvidas sobre se o continente europeu terá capacidades militares e financeiras para o fazer.
No mesmo sentido, Volodymyr Zelensky já garantiu que não vai aceitar quaisquer cedências territoriais e espera que Donald Trump reconsidere algumas das suas posições, não permitindo que a Ucrânia assine a contragosto um acordo de paz com a Rússia, que também não está disposta a fazer concessões. Mesmo que até não o admita, o republicano terá a tarefa difícil de construir pontes entre duas partes que estão muito distantes. Em alternativa, pode dar a vitória a Moscovo — e abrir uma caixa de pandora na comunidade internacional, incentivando outras potências a seguir políticas expansionistas.