Quando a atriz e autora Sara Barros Leitão imaginou um espetáculo sobre a Assembleia da República (AR) estava longe de antecipar que este se estrearia em plena crise política. “Não quero dizer que sou responsável por isso, porque não sou, mas a verdade é que sempre que estreio um espetáculo, o Governo cai”, diz entre risos. “Já começa a ficar meio estranho.”
Em 2021, quando se preparava para levar à cena o seu espetáculo anterior, Monólogo de Uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa, o Parlamento chumbara, dias antes, o Orçamento do Estado, ditando a morte da “geringonça” e levando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a dissolver a AR e a convocar eleições antecipadas. “Foi precisamente quatro dias antes. Parece que ando assim com este karma.”
Sentiu a história a repetir-se quando, a 7 de novembro, António Costa apresentou a demissão do cargo de primeiro-ministro. “Tínhamos feito um ensaio de manhã que correu muitíssimo bem. Quando chegámos do almoço, estava toda a gente agarrada aos telemóveis e a dizer: ‘o Governo caiu’. Ponto um: ‘e agora o que é que vai acontecer a Portugal?’ Ponto dois: ‘Como é que fazemos este espetáculo?’”.
Guião Para um País Possível, a sua mais recente criação, perscruta tudo o que foi dito dentro do Parlamento nos 50 anos de democracia em Portugal, através das atas redigidas por dois funcionários que, entre as bancadas dos deputados e a tribuna com membros do Governo, exatamente a meio da sala, transcrevem tudo o que ali é dito: discursos, intervenções, apartes, insubordinações e até gestos. Tudo consta nos milhares de páginas que registam debates, assembleias constituintes, votações, avanços e recuos nos direitos sociais, laborais e humanos. A peça estreia-se esta quinta-feira, 7 de dezembro, no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana do Castelo, antes de correr o país no ano que vem.
O discurso do dia 25 de abril de 2023 arranca uma viagem que culmina no discurso do dia 25 de abril de 1974. Pelo meio, percorre-se uma sequência de acontecimentos, nem sempre cronológicos, entre momentos marcantes e outros mais insólitos da história nacional que ajudam a contar a história coletiva: as maiorias absolutas de Cavaco Silva, a luta contra as propinas, a despenalização do aborto, a legalização do casamento homossexual, a chegada da Troika, a Geringonça, a entrada para a CEE, a declaração do estado de emergência aquando da pandemia Covid-19. Há também o célebre episódio em que a ex-deputada italiana Ilona Staller (mais conhecida como Cicciolina) mostra as mamas, ou o momento em que se escutou Grândola Vila Morena em São Bento.
É, também, o primeiro espetáculo que Sara Barros Leitão ensaia na morada da Cassandra, estrutura artística que fundou em 2020 e que conquistou em outubro um espaço físico, uma garagem perto do Campo 24 de Agosto, no centro do Porto.
Após um ensaio corrido, a encenadora mostra ao Observador os cantos à casa e recorda o momento exato em que imaginou Guião Para um País Possível. Foi no dia 25 de abril de 2022, enquanto assistia a uma conferência performativa da atriz e performer Mariana Gomes, em Guimarães (onde Sara Barros Leitão assumiu a direção artística do Teatro Oficina durante apenas um ano). O tema era o discurso de extrema-direita em várias partes do mundo. A dada altura, Mariana debitava um discurso português que era interrompido com aplausos, protestos, apartes. “Fiquei um bocado confusa porque não entendia bem se esse discurso tinha sido escrito com essas coisas, aplausos e apartes. Ela [Mariana Gomes] explicou-me que era uma transcrição de um diário da Assembleia da República, e nessa noite apercebi-me que isso estava tudo disponível na internet, que tudo o que era dito na Assembleia da República era transcrito. Fiquei fascinada e percebi que tinha de fazer um espetáculo sobre isto.”
As paredes do Espaço Cassandra estão forradas a folhas com notas recolhidas durante o processo de pesquisa. Há um gigante papel onde se lê “Glossário da lisonja, insulto e apartes parlamentares”. Eis alguns dos ali apontados: “O Sr. não tem nível”, “Isso é preconceito ideológico”, “Caiu-lhe a máscara”, “Vocês são uns artistas” ou “Acabou o teatrinho”. “Há partidos que têm uma escola de apartes que é extraordinária, muito humorada, muito pertinente. Penso que o partido que tem os melhores apartes é o PCP”, comenta Sara, que diz que para a criação do espetáculo, além dos muitos livros e documentos históricos, foram também importantes as conversas “com historiadores e várias pessoas que têm uma vida política ativa e que se foram lembrando de situações que aconteceram”. “E depois, claro, fomos à Assembleia da República”, lembra. Fizeram visitas guiadas, observaram e almoçaram com trabalhadores. “A memória dos trabalhadores [da AR] também entra no espetáculo”, diz.
Para Sara Barros Leitão, este é mais um mergulho profundo nos arquivos, depois das criações Teoria das Três Idades (2018), feita a partir do estudo do arquivo do Teatro Experimental do Porto, Todos Os Dias Me Sujo De Coisas Eternas (2019), um trabalho de investigação sobre a toponímia portuense, e Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa (2021), sobre a história do Sindicato do Serviço Doméstico. “Ter grandes arquivos, grandes empreitadas, estudar esta história toda e agora fazer aqui os espetáculos sobre isto é uma coisa que me entusiasma”, admite. “Mas penso que não faço teatro documental, não me identifico com o fazer teatro documental. Acho que crio espetáculos teatrais, de facto, só que os documentos são a base. Podia contar uma história de amor, mas pronto, conto a partir de documentos.”
Desta vez, propôs-se um desafio singular: não escrever uma única palavra. “Faço esta dramaturgia só a partir de coisas que já foram alguma vez ditas na Assembleia da República. É ainda mais difícil do que eu própria escrever, porque tenho de encontrar estas coisas, tenho de coser. A minha escrita está lá, mas a partir de recortes de palavras de outros.”
Guião Para um País Possível é também um marco na medida em que a atriz dá por terminada a trilogia de monólogos e assume papéis exclusivamente fora da cena, enquanto dramaturga e encenadora. “Queria-me experimentar melhor também enquanto encenadora, poder dirigir melhor a minha equipa, estar de fora, poder coordenar tudo, penso que isso é importante.”
Em linha com o que tem sido o trabalho da criadora, evidencia-se uma grande preocupação estética. A ideia de guião materializa-se numa cenografia (de António Quaresma e Susete Rebelo) que é uma espécie de longa folha de papel, amassada e pintada à mão. Nela vislumbra-se um esboço que sugere uma assembleia, sem ser absolutamente figurativo. Um monte de cadeiras de madeira empilhadas evoca as 240 cadeiras dos deputados.
“Acho que os meus espetáculos têm tido essas assinaturas plásticas, de trabalhar com figurinistas, com cenógrafos. Não me arrisco nisso de assinar figurinos e cenografia, de de repente ir à IKEA e pôr uns móveis e ir à Zara e comprar umas roupas. Acho muito importante ainda haver pensadores de espaços e de roupas para corpos, de figurinos, que tenham também uma dramaturgia, uma linguagem.” Cristina Cunha é a responsável pelo figurino, criado inteiramente de raiz, do casaco à camisa branca, que assenta perfeitamente no corpo de quem a veste. “É também uma resistência em relação àquilo que os orçamentos que são tão martelados e os tempos de ensaio e de preparação. Pedem-nos que façamos tantas coisas num ano, é tudo tão rápido. Aqui resistimos um bocadinho a isso.”
Para dar voz e corpo ao texto, a encenadora e dramaturga escolheu João Melo e Margarida Carvalho. Dois atores do Porto com quem nunca havia trabalhado, mas que já tinha observado e admirado enquanto espectadora. “Vivemos na mesma cidade, são dos melhores atores que temos e muito generosos na forma como trabalham”.
“Este espetáculo é uma carta de amor àquilo que é a Assembleia da República, da minha parte”, diz Sara Barros Leitão, por fim. “Apesar de acharmos que hoje em dia está muito degradado o debate político, que está tudo pior, não verifico isso. Continuamos a ter discursos de uma elevada capacidade intelectual e de um discurso retórico maravilhoso. Isso continua a existir, tal como existia nos anos 70 e nos anos 80. Continuamos a ter políticos extraordinários com discursos bonitos, galvanizadores, esperançosos. Reconheço-lhes isso também. Temos hoje má educação tal como tínhamos nos anos 70”, acredita. “Em 1975 um deputado virou-se para uma deputada e disse ‘cala-te, porca’. É evidente que nos anos 70 se vivia outro período que não se vive hoje. A democracia hoje tem 50 anos. Acho que conseguimos encontrar também um lugar de maturidade democrática que me parece importante”, continua.
Porém, assume um passo atrás. “Acho que se sente esse constrangimento da degradação da instituição com a entrada da extrema-direita no Parlamento”, acusa. “Visitei a Assembleia da República várias vezes nos últimos tempos e qualquer visitante, jornalista, diplomata, que passe lá consegue ver nos corredores, na parede do grupo parlamentar de extrema-direita, na parte de fora do corredor, várias fotocópias em A4 com fotografias de vários membros do Governo, vários membros do PS e com cruzes em cima da sua cara, tal como fazem, sem qualquer consequência, nos cartazes, na rua, incentivando ao extermínio daqueles alvos. Isso é uma coisa que eu acho que é muito triste para a democracia, que não devia acontecer. Isso mostra que há uma degradação da instituição.”
O espetáculo que agora se estreia em quatro datas em Viana do Castelo vai circular durante todo o próximo ano, coincidindo com as celebrações dos 50 anos do 25 de abril. Torres Vedras, Ílhavo, Funchal, Coimbra, Famalicão, Pombal, Lisboa, Viseu, Santarém, Marinha Grande, Vila Real, Loulé, Matosinhos, Leiria, Covilhã, Alcanena, Miranda do Corvo e Tondela são, para já, as cidades que acolherão a peça.
Então e a queda do Governo socialista, em 2023, entra ou não no espetáculo que pretende ser um retrato dos últimos 50 anos? Não literalmente. “Acaba por influenciar o espetáculo, mas não tanto enquanto cena. O teatro tem uma característica diferente do cinema, que é: só é possível ser visto no momento presente”, começa por dizer. “Daqui a 10 anos não vai ser visto, porque já não vai existir. Qualquer pessoa que veja o espetáculo hoje vai saber o que é que está a acontecer no país. Há aqui uma série de coisas que não precisamos de dizer, porque elas são a realidade, estão nos jornais. Acabei por não sentir necessidade de colocar estes últimos episódios, porque isto é o nosso dia-a-dia.”
Ainda assim, “há algum diálogo com o presente, sobretudo quando nos relembramos dos discursos da Constituinte e daquilo que foi possível”, defende. “Foi possível criar uma Constituição e essa Constituição é a matriz onde nos agarramos sempre que, 50 anos depois, o país parece que treme mais um pouco. As instituições tremem, parece que tudo vai cair, mas há um texto fundador da nossa democracia que se chama Constituição da República Portuguesa, que é onde nos agarramos como um manual de instruções para nos dizer o que fazer agora. Se vamos para eleições, se há um novo governo… O que quer que seja, será a Constituição que vai responder. E por isso o espetáculo, não falando do agora, acaba por nos lembrar que esse texto existe e que é a partir dele que podemos descobrir como é que fazemos o futuro.”
Será a Constituição Portuguesa o tal guião para o país possível? A criadora contesta: “Não digo que é o único manual de instruções, o único texto fundamental da nossa democracia. A democracia é feita de várias coisas, mas acho que ela é mesmo muito importante e se o respeitássemos um bocadinho mais, certamente estaríamos melhor”.
O título da peça é, na verdade, um piscar de olho ao livro de Ruy Belo, País Possível (publicado pela Assírio & Alvim em 1973), escrito ainda em ditadura. “A ideia de um país possível é uma ideia carregada de esperança, é uma ideia carregada de imaginação, é uma ideia carregada de futuro, mas é também um país que não é perfeito, que é o possível, que é o melhor entre os mundos, o melhor entre as várias vontades”, afirma. E continua: “É aquilo que conseguimos ter em comum. Isso é o possível, conseguirmos descobrir como é que se imagina um país com forças tão diferentes. Certamente será sempre o país possível. Aliás, a democracia é um bocadinho a arte do possível, não é a arte perfeita. O possível é o diálogo entre as forças, é o possível. Aquilo que nós conquistamos em 50 anos foi o possível. Não foi o melhor, não foi perfeito, foi o possível, foi aquilo que nós conseguimos. E é preciso continuar.”