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Octavio Passos/Observador

Octavio Passos/Observador

A Oficina de Sara Barros Leitão: uma luta criativa em construção permanente

“Há ir e voltar” estreia dia 22 e é o último gesto de Sara Barros Leitão como diretora artística do Teatro Oficina. Ao Observador, a atriz e encenadora fala do futuro e da urgência que tem em mudá-lo.

Em palco, três mulheres vestem e despem camadas de roupa ao som de uma batida frenética. Fazem uma trouxa com as peças que restam e carregam-na aos ombros. Comem juntas uma maçã vermelha, o fruto proibido, e começam por dizer: “no princípio não era o verbo”. Recordam os primórdios da vida, o exercício de aprender a andar, onde “a queda é sempre um passo em frente” e o desequilíbrio se torna essencial.

Durante 50 minutos, viajamos de forma turbulenta e saímos do sítio. Passámos pela fronteira de um país, por um avião prestes a descolar com cidadãos deportados e assistimos a um parto num barco com refugiados. Há referências à Troika, a Trump e à guerra, mas também a Gabriel García Márquez. Há violência, urgência e raiva nos corpos e nas vozes, que por vezes soam em coro, e o cenário tem tanto de enrugado como de desconfortável.

“O espetáculo nasce de um culminar de muitas preocupações que vou tendo na minha vida, como cidadã e como artista.” É quase sempre assim que Sara Barros Leitão, atriz, encenadora, dramaturga, ativista e diretora artística do Teatro Oficina, a única companhia em Guimarães, parte para um novo trabalho. Chegou à cidade para abraçar um novo desafio em janeiro de 2022, em plena campanha eleitoral, e não esconde a forma como este lugar, que só conhecia como espectadora, influenciou o seu processo criativo.

“Não sei se visse este espetáculo o conseguiria reconhecer como sendo meu. Isto é assustador e entusiasmante, identifico-me com ele, mas não sei como saiu de mim"

“Há uma série de símbolos da cidade que são aproveitados para promover o turismo, mas também são utilizados por uma extrema direita que começa muitas vezes as suas campanhas eleitorais e os seus comícios em frente à estátua de D. Afonso Henriques ou que reivindica o castelo. Portugal é muitas coisas e estes símbolos são importantes no plano histórico, mas continuam muito presentes até na educação nas escolas. Um dia ouvi uma professora do ensino primário e de Guimarães gritar: ‘Portugal é Guimarães e o resto são conquistas’. Aí percebi o quão perigosa é esta ideia de portugalidade e de pertença.”

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Desafiar o público a refletir sobre o que é território, identidade e património, como os não lugares que se tornam casas ou como as fronteiras não são mais do que uma construção social do que fazemos, foram algumas das premissas de Sara Barros Leitão, que aos 32 anos parece não ter dúvidas de que o mundo é “um grande cobertor”, que pertence a todos, e o sítio onde nascemos não deve caracterizar ou condicionar o resto das nossas vidas. “Quanto mais pensamos como respiramos ou andamos, menos conseguimos sair do sítio. Se pensamos como vamos emigrar, simplesmente não vamos a lado nenhum, porque não temos casa, trabalho ou apoio. Em situações limite, só vamos porque essa é a única alternativa.”

“A minha geração já passou por várias crises económicas, financeiras, sociais, de habitação ou saúde pública, mas a dos refugiados é transversal e não tem fim, não vai acabar até nos tocar a nós."

A crise dos refugiados, as migrações ou as desigualdades sociais são temas que têm assaltado o universo de preocupações e inquietações da atriz. “A minha geração já passou por várias crises económicas, financeiras, sociais, de habitação ou saúde pública, mas a dos refugiados é transversal e não tem fim, não vai acabar até nos tocar a nós. Como se combate os discursos da extrema direita que defendem que os migrantes são diferentes? Todos têm a mesma vontade de sobreviver e todos se cruzam neste palco.”

A trouxa de roupa que as atrizes – Diana Sá, Gisela Matos e Susana Madeira — carregam aos ombros em silêncio representa, segundo a encenadora, a herança histórica, ancestral e cultural que pesa, não se resolve e limita. “Não é por acaso que o elenco é formado por mulheres, muitas mulheres carregam o mundo às costas e aqui isso é muito literal.”

“Não é por acaso que o elenco é formado por mulheres, muitas mulheres carregam o mundo às costas e aqui isso é muito literal”

Sem a ambição de resolver problemas ou responder a perguntas concretas, a peça “Há ir e voltar” pretende ser apenas mais um passo na militância de Sara Barros Leitão, no palco e na vida. “Para mim, o ativismo não é uma coisa exótica, quando te sentas com alguém para ter uma conversa desconfortável estás a fazer ativismo e isso pode acontecer no jantar de Natal em família ou no autocarro. Eu pratico-o no meu quotidiano, mas depois sinto-me impotente sobre tudo o que acontece, não sei como resolver este assunto artisticamente.”

O processo criativo foi coletivo e o resultado não assenta tanto na palavra e na investigação como é habitual no trabalho de Sara Barros Leitão. “Não sei se visse este espetáculo o conseguiria reconhecer como sendo meu. Isto é assustador e entusiasmante, identifico-me com ele, mas não sei como saiu de mim, esteticamente não é o que costumo fazer.”

Um cargo com uma escala demasiado grande e a vontade de encenar

Depois das criações Teoria das Três Idades (2018), feita a partir do estudo do arquivo do Teatro Experimental do Porto, e Todos Os Dias Me Sujo De Coisas Eternas (2019), um trabalho de investigação sobre a toponímia portuense, Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa (2021) encerrou a trilogia de monólogos, sendo este último primeiro produzido pela estrutura artística, Cassandra, que fundou em 2020. Nesse mesmo ano, Sara Barros Leitão ganhou a primeira edição do prémio revelação Teatro D. Maria II e no início de 2022 foi convidada a dirigir o Teatro Oficina, em Guimarães.

Sara Barros Leitão: “Faço a minha militância no palco. Cheguei a um momento em que tenho de perceber que contributo posso dar à sociedade”

“Nunca quis usar este convite a meu favor, claro que foi dirigido a mim e à minha visão, mas tenho feito um caminho como criadora e achei que era um pouco perverso usar todos os meios desta estrutura para continuar esse meu caminho individual. Vejo este desafio como uma forma de colocar a minha força de trabalho ao serviço de uma coisa que é maior que eu e que irá continuar depois de mim.”

Uma década depois de Guimarães ter sido a Capital Europeia da Cultura, o Teatro Oficina, criado em 1994, é a única companhia que resta na cidade, tem direito a uma morada própria que Sara Barros Leitão fez questão de reabilitar e dinamizar com atividades como assaltos ao arquivo, a criação de uma biblioteca, um programa de leitura, laboratórios de escrita e oficinas.

"Foi um ano muito diferente para mim, nunca tinha estado a dirigir um pouco do que é uma instituição, estou habituada a uma escala mais pequena, que tem muitas dificuldades, mas também tem coisas que são muito mais fáceis de resolver e de gerir."

“A cidade é muito institucional e as pessoas vivem muito esse universo, falta uma vida independente, um lado mais underground. Este espaço é uma cave, uma autêntica garagem, que não era uma prioridade e servia apenas como uma sala de ensaios, agora vamos estrear aqui.” Numa box com 46 lugares e uma zona de estar polivalente, aqui os cães são bem-vindos e têm direito a taças com água, é possível tirarmos os sapatos, vermos espetáculos com um copo de vinho na mão e as casas de banho não estão identificadas por género, tendo disponível gratuitamente pensos higiénicos.

“Há ir e voltar” estará em cena até 9 de outubro e é o último gesto da encenadora como diretora artística, uma missão que termina em dezembro e que é sinónimo de aprendizagem. “Foi um ano muito diferente para mim, nunca tinha estado a dirigir um pouco do que é uma instituição, estou habituada a uma escala mais pequena, que tem muitas dificuldades, mas também tem coisas que são muito mais fáceis de resolver e de gerir. Não me identifico com esta forma de trabalhar, é difícil ser criadora numa instituição grande. Acho que não sou a pessoa certa para isto, preciso de voltar à minha escala, talvez esta ainda seja demasiada grande para mim.”

“No próximo ano terei seis meses de investigação e outros seis de criação para em dezembro de 2023 estrear um espetáculo para dois atores a partir dos diários da Assembleia das República"

Octavio Passos/Observador

Com vontade de regressar aos seus projetos de investigação e de criação, tornando a estrutura Cassandra cada vez mais sólida e sustentada, Sara Barros Leitão já tem planos para o futuro. “No próximo ano terei seis meses de investigação e outros seis de criação para em dezembro de 2023 estrear um espetáculo para dois atores a partir dos diários da Assembleia das República. A ideia é ler as atas de tudo o que foi dito dentro do parlamento nos últimos 50 anos de democracia em Portugal e fazer um retrato dos momentos mais ou menos importantes, desde a Cicciolina a mostrar as mamas aos que cantaram a Grândola Vila Morena no 25 de Abril, passando pela legalização do aborto, do casamento homossexual ou pela representatividade das mulheres nos tempos de fala.”

Afirmar-se cada vez mais como encenadora e dramaturga é um dos propósitos de Sara, para quem o teatro é sempre um microscópio do mundo e, ao mesmo tempo, um altifalante. O seu olhar cirúrgico e a sua capacidade de análise compõem um “retrato impressionista” dos nossos dias, sempre inconformado, competente e eficaz.

“Há ir voltar”, de 22 de setembro a 9 de outubro no Espaço Oficina — Avenida D. João IV, 1213 (Guimarães). Quinta a sexta, às 21h30; sábado às 19h e domingo às 17h. Bilhetes: 7,50€

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