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Guterres e Marcelo. A longa história de dois amigos rivais

Eram amigos. Formaram um grupo católico para influenciar o poder. Foram poder. Nunca se defrontaram. Atacaram-se. Traíram-se. Fizeram as pazes. Um está no topo do mundo. O outro no topo de Portugal.

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Era improvável, mas aconteceu. No púlpito da Assembleia Geral das Nações Unidas, o Presidente de uma pequena república europeia apelava ao voto num velho amigo que tinha estado no seu casamento, na mesa dos noivos, para ser secretário-geral da ONU. Não mencionou o nome, mas toda a gente sabia de quem estava a falar quando disse que o próximo líder das Nações Unidas devia guiar-se “pelo exemplo dos valores que Gandhi e Nelson Mandela sempre aplicaram na vida”. António Guterres estava sentado na primeira fila, com a delegação portuguesa, enquanto Marcelo Rebelo de Sousa discursava. Não era provável que dois companheiros de juventude se encontrassem em circunstâncias destas: um como Presidente da República e outro prestes a chegar ao topo do mundo.

Foram aos casamentos um do outro; rezaram juntos; tocaram campainhas e fugiram; tiveram o mesmo confessor; um foi primeiro-ministro e o outro não conseguiu porque o outro já lá estava; atacaram-se em público; traíram-se; fizeram as pazes; um foi Presidente da República talvez por o outro não ter sido. Esta é a história cruzada de duas das mentes mais brilhantes de uma geração: António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa.

Dois homens com os destinos ligados

Nos anos 70, dizem amigos comuns, corria o mito de que teriam feito um pacto de que ambos chegariam a primeiros-ministros. Foram para além disso. No fim dos anos 60, participavam em movimentos católicos cujos membros tinham sido marcados pela tragédia das cheias em Lisboa de 1967. Marcelo próximo da Juventude Universitária Católica e Guterres ativo no Centro de Ação Social Universitária (CASU). Nesse tempo de fim de regime, Marcelo Rebelo de Sousa começaria a relacionar-se com estudantes do Técnico através de António Barahona, seu antigo colega no Liceu Pedro Nunes. Terá sido através deste amigo que conheceu António Guterres, o melhor aluno de Engenharia Eletrotécnica, que tal como ele era o melhor estudante de Direito.

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Ao longo dos anos, António seria talvez a pessoa do mundo político cuja inteligência Marcelo mais respeitava e admirava. A amizade passou a intimidade quando, em 1970, fundaram o Grupo da Luz com o padre franciscano Vítor Melícias e outros estudantes do Técnico como Diogo Lucena (hoje administrador da Gulbenkian), estudantes de Economia como Miguel Beleza ou de Direito como Carlos Santos Ferreira (da turma de Marcelo na faculdade), entre outros.

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Marcelo Rebelo de Sousa no casamento de António e Luísa Guterres, a rir-se por detrás dos noivos, no dia 21 de dezembro de 1972. O matrimónio, celebrado pelo padre Vítor Melícias, teve poucos mais convidados para além do Grupo da Luz, os católicos animados por Marcelo e Guterres

O grupo aproximava-se politicamente dos jovens tecnocratas que Marcello Caetano levara para o Governo, cuja figura tutelar era João Salgueiro. Do ponto de vista religioso, caminhavam para a esquerda embalados pela rutura que significava o Concílio Vaticano II. Eram católicos pouco ortodoxos. Aos domingos de manhã, participavam em eucaristias domésticas, celebradas rotativamente em casa de cada um deles. À cabeceira da mesa, o padre Vítor Melícias consagrava o pão e o vinho. Em redor, estava um futuro ministro das Finanças e Governador do Banco de Portugal (Miguel Beleza), um presidente de bancos (Carlos Santos Ferreira), um ministro da Cultura (Pedro Roseta), catedráticos e académicos (Valadares Tavares, Isabel Matos Dias). E ainda um futuro primeiro-ministro e líder do PS, que teria como rival um futuro presidente do PSD, ou melhor ainda, um secretário-geral das Nações Unidas e um Presidente da República portuguesa.

Na verdade, ficará para sempre por saber se Marcelo só chegou a Belém porque António Guterres não concorreu. Em agosto de 2014, o comentador Rebelo de Sousa dizia na TVI que Pedro Passos Coelho deveria escolher Santana Lopes para candidato a Presidente da República e que o então alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados seria o candidato do PS. “Guterres vai ser [candidato à Presidência da República]. Eu acho. Só que não lhe convém estar a queimar em lume brando durante um ano. Não lhe dá jeito estar a expor-se prematuramente”, afirmava o professor Marcelo. O socialista estava, afinal, a reservar-se mas era para outros voos. Em abril de 2015, quando Guterres afastou em definitivo uma candidatura presidencial, Marcelo reagiu assim: “Compreendo que seja uma certa perda para o PS, para a esquerda em geral, e, porventura, para uma parte significativa dos portugueses, que gostaria que ele fosse candidato presidencial e, porventura, até que fosse Presidente da República.”

Visita do Presidente da República a Nova Iorque

O Presidente da República com António Guterres e Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, à entrada da Assembleia Geral das Nações Unidas em meados de setembro

E se António Guterres se tivesse mesmo candidatado a Belém? Marcelo seria Presidente? Teria avançado contra o socialista sabendo que não seria um passeio de afetos? O destino político dos dois andou sempre ligado. Rebelo de Sousa também respondeu a esta pergunta em janeiro de 2016, já como Presidente eleito: “Sei lá. O que seria a vida se tivesse sido uma coisa diferente do que acabou por ser?”, respondeu aos jornalistas, admitindo, no entanto, que Guterres seria “um candidato muitíssimo forte”. Depois de ter tomado posse, convidaria o eventual adversário para o Conselho de Estado.

Amigos e rivais, nunca disputaram umas eleições nem fizeram um debate público na televisão ou no Parlamento (quando foi líder do PSD, Marcelo não era deputado). Os eleitores nunca viram aquelas duas cabeças em competição direta.

“Efetivamente, rezávamos por vezes com as lágrimas nos olhos, e cantávamos com muita emoção ‘O povo jaz na escravidão/ vem salvar -nos senhor’, à volta da mesa, na eucaristia, afirmando a nossa vontade de que o nosso povo reconquistasse a sua liberdade”
Padre Vítor Melícias, a explicar como eram as celebrações no Grupo da Luz

O Grupo da Luz: rezar com lágrimas e ser uma “alavanca” no poder

Em jovens partilharam momentos únicos de intimidade e comunhão religiosa. Segundo uma descrição do padre Vítor Melícias num livro de entrevistas a Luís Guimarães, oravam com intensidade e emoção: “Efetivamente, rezávamos por vezes com as lágrimas nos olhos, e cantávamos com muita emoção ‘O povo jaz na escravidão/ vem salvar -nos senhor’, à volta da mesa, na eucaristia, afirmando a nossa vontade de que o nosso povo reconquistasse a sua liberdade”.

As reuniões do Grupo da Luz eram às terças-feiras à noite, depois do jantar, no seminário da Luz, em Carnide, na residência dos padres franciscanos. Outros que por lá passavam eram Helena Roseta, João Salgueiro, António Barahona de Almeida, Diogo Lucena ou Rafael Prata. Estes estudantes católicos progressistas queriam ter uma intervenção consequente na política e na sociedade. Não lhes bastava reunirem para discutir a fé e a Igreja. Isso devia estar ao serviço de ideais concretos. O católico devia intervir na vida social, económica e política. Carlos Santos Ferreira teria uma frase que encerrava todo um programa e se concretizaria: “Temos de estar junto das alavancas do poder.” Foram para além disso. Eles próprios se tornaram poder.

SEDES: Marcelo e Guterres juntos pela regionalização e o som das campainhas

Marcelo tivera aspirações políticas desde criança. Guterres diria aos amigos que se Portugal evoluísse para uma democracia seria político. Os dois amigos debatiam qual seria o melhor curso para a intervenção pública, se Direito ou Engenharia. Tinham uma estratégia comum para se infiltrarem nos pontos-chave do regime. Chegaram a fazer fichas sobre gente importante no regime e na oposição de quem deviam aproximar-se. Tinham a ideia de minar o regime por dentro, “colocando elementos em pontos importantes para forçar uma evolução”, diz um dos participantes nas reuniões. Discutiam a participação em novas organizações como a SEDES ou em artigos de jornais. Marcelo era o pivot que levava a informação do interior do marcelismo. Guterres seria, segundo um amigo, mais sólido e estruturado na reflexão. “Guterres e Marcelo achavam-se mutuamente bons candidatos a primeiro-ministro e, na mesma medida, potenciais rivais. Isso notava-se entre eles”, diria Diogo Lucena a Adelino Cunha, autor da biografia António Guterres – Os Segredos do Poder.

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Os convidados mais jovens no casamento de Marcelo Rebelo de Sousa com Cristina da Motta Veiga. Pode ver-se António com Luísa Guterres e com barbas no canto superior direito, António Reis: Marcelo apresentou-o a Guterres e seria ele a levá-lo para o PS

Uma das alavancas do poder, naquela época, havia de ser a SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, que acabara de ser criada sob a presidência de João Salgueiro. António Guterres entra logo na fundação, em 1970. Marcelo ainda permanece de fora. A direção da SEDES coloca reservas por Marcelo ser filho de um ministro do regime. Os jovens Rebelo de Sousa e Guterres, com pouco mais de 20 anos, não param. Tentam então criar a Ad -Hoc – Análise e Promoção de Desenvolvimento Cultural, uma associação de jovens que tinha como objetivo tornar -se numa espécie de SEDES dos mais novos, com base no Grupo da Luz. A Ad-Hoc ainda faria uma primeira Assembleia Geral, mas seria inviabilizada pelos serviços do regime depois de uma apreciação da PIDE a dizer que havia comunistas infiltrados.

Afinal, fariam ambos um percurso na SEDES. Entre 1972 e 1973, realizam um trabalho sobre os cenários do país vistos pela juventude e escrevem a meias um documento a defender a regionalização, um dos temas que 25 anos depois os separará — como líderes do PS e do PSD — e acerca das grandes opções económicas, financeira e sociais de Portugal. Em termos sociais, também nenhum deles faz nada de muito significativo sem o outro. Era uma grande amizade. Saíam juntos com as respetivas namoradas: Ana Cristina, futura mulher de Marcelo, e Luísa (Zizas para os amigos), namorada de Guterres.

“Eu não posso fazer acordos de Estado com uma pessoa que tocava às campainhas todas lá do prédio quando saía de casa dos meus pais a altas horas da noite.”
António Guterres ao Expresso em 1996, sobre Marcelo como líder do PSD

Partilhavam pequenas patifarias. A altas horas, Marcelo tocava às campainhas e acordava o pai de Guterres, que ficava furioso. Uns 25 anos depois, a brincadeira seria cobrada pelo amigo. Num artigo de 1996 na revista do Expresso sobre a relação entre ambos, o socialista — então primeiro-ministro — aceitou recuperar as memórias do “Marcelete”, muito inteligente, mas que não era de confiança, para lançar uma frase inesquecível: “Eu não posso fazer acordos de Estado com uma pessoa que tocava às campainhas todas lá do prédio quando saía de casa dos meus pais a altas horas da noite.” A relação de ambos seria afetada por este episódio, segundo contou o padre Melícias a Adelino Cunha na biografia do ex-primeiro-ministro: “O António contou aquele episódio do Marcelo andar a tocar às campainhas da casa dos pais e ele não gostou de ver isso em público”. Mas parece que não era só campainhas. A passagem de Marcelo pela vizinhança também resultava por vezes em limpa para-brisas de automóveis levantados para quem estivesse ali estacionado.

Embora Guterres fosse menos dado a partidas, terá chegado a fazer uma corrida de carros à volta da Praça de Espanha: Marcelo no seu Mini e Guterres no velho e pesado Ford Taunus do pai (a quem os amigos chamam tanque de guerra), e com dois dedos fora da janela a fazer corninhos um ao outro, até serem obrigados a parar por um chefe de família a quem terá sido preciso explicar que os corninhos não eram para ele. Assim se divertiam dois dos alunos mais brilhantes do seu tempo, ambos galardoados com o Prémio D. Dinis antes de entrarem na faculdade: Marcelo pelo Liceu Pedro Nunes e António pelo Liceu Camões.

Casamentos no mesmo ano e ambos acionistas do Expresso

Os amigos jovens católicos casam no mesmo ano. São unidos em matrimónio com as respetivas mulheres pelo mesmo padre, Vítor Melícias. Marcelo celebra a boda no dia 22 de julho de 1972, no monte da família da noiva, Ana Cristina da Motta Veiga, em São Miguel de Machede, perto de Évora. António Guterres casa a 21 de dezembro do mesmo ano, na Igreja da Luz. É escusado dizer que estão presentes na celebração de cada um. Em julho daquele ano, Guterres é convidado para uma festa do regime, onde se juntam salazaristas pelo lado da família da noiva e marcelistas pelo lado da família do noivo, para além dos católicos progressistas que fazem escândalo com as músicas religiosas acompanhadas à viola, um sacrilégio para as elites do Estado Novo. O padre local quase impediu aqueles exageros modernos, mas a celebração estava a cargo de Melícias. A Oração dos Fiéis, a pedir pelos povos oprimidos e coisas que tal, indignou os ministros e ex-ministros presentes. A prova de que eram os melhores amigos é que Guterres e Zizas ficaram na mesa dos noivos, apenas com o celebrante a meio.

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António e Luísa Guterres ficaram na mesa dos noivos durante o casamento de Marcelo Rebelo de Sousa com Cristina da Motta Veiga, em julho de 1972. Entre os dois casais sentou-se o padre Vítor Melícias, que celebrou um casamento moderno com música de violas para escândalo da elite do regime

Em dezembro, Marcelo seria convidado a participar numa festa muito mais modesta, a de António e Luísa, onde também estava quase todo o Grupo da Luz e mais um personagem que seria importante para a vida de ambos: António Reis, amigo de Marcelo, que este lhe apresentara, e que depois do 25 de abril o levaria para o PS. Mas essa é outra história.

No mesmo mês do casamento de Guterres, os dois companheiros vão a outra festa: a grande festa do Ritz que serve de lançamento ao Expresso, que chegará às bancas a 6 de janeiro de 1973. Marcelo Rebelo de Sousa intercedera junto de Francisco Pinto Balsemão para António Guterres — que o fundador da Sojornal desconhecia — ser pequeno acionista do novo semanário. Tanto Marcelo como Guterres entram com cinco mil escudos no capital do jornal. A escolha tinha sido feita, mais uma vez, no seio do grupo da Luz e assim os jovens pupilos do franciscano lá estavam junto das alavancas do poder.

O 25 de abril e a separação por causa dos partidos

Não é certo que tenha sido o primeiro a ligar a António Guterres, mas assim que percebeu que estava em curso um golpe militar nas ruas de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa telefonou-lhe de madrugada a avisar. Quando saiu do Expresso com a noite avançada, encontrou colunas da tropa na capital, ainda não se sabia muito bem o cariz do golpe. Ao fim da tarde do dia 25 de abril de 1974, já depois de Marcello Caetano se ter rendido a Salgueiro Maia, Marcelo voltaria a falar com Guterres ao telefone. O regime tinha caído. Era preciso agir. Combinaram almoçar daí a uns dias, no Hotel Rex, junto ao Parque Eduardo VII, para decidirem o que será do Grupo da Luz naquele contexto.

Os dois amigos almoçam, como combinado, a uma terça-feira, dia 30 de abril. Esta é a versão de Marcelo Rebelo de Sousa, que tinha a esperança de convencê-lo a juntar -se ao novo partido de Sá Carneiro, que ainda não tinha nome. Tinha essa expectativa em relação ao Grupo da Luz e aos jovens da SEDES. Mas Guterres tomara já a sua opção. Ter-lhe-á dito que ia para o Partido Socialista. Marcelo saberia depois, por António Reis, que Guterres tinha aderido ao PS no próprio dia 25 quando o visitou nas instalações da RTP, entretanto ocupadas. “Era inimaginável antecipar que o sistema partidário português iria assentar num partido do centro direita e noutro do centro esquerda e que o PS e o PSD iriam alternar entre si no Governo do país”, disse Carlos Santos Ferreira a Adelino Cunha, biógrafo de António Guterres. Segundo o banqueiro e amigo de Marcelo e Guterres, este terá projetado aderir ao PS mesmo antes da revolução.

No PS, a posição de Guterres sendo católico, não maçon, seria única. No PSD, o novo partido feito a partir da Ala Liberal e dos tecnocratas do marcelismo, provavelmente seria apenas mais um.

A partir daqui, o Grupo da Luz divide-se entre PS e PSD. Marcelo acha que Guterres se sente melhor entre os socialistas. No PS, a posição de Guterres ao centro, sendo católico, não maçon, seria única. No PSD, o novo partido feito a partir da Ala Liberal e dos tecnocratas do marcelismo, provavelmente seria apenas mais um. Este momento marca a separação dos destinos de ambos. Farão um caminho separado, em competição. Continuam a encontrar-se, sobretudo em aniversários e ocasiões festivas, mas cada um lutará pelas suas ambições dentro do seu próprio partido. Talvez viessem a digladiar-se internamente se tivessem aderido à mesma organização partidária. Estaria escrito nas estrelas. Ainda nesse ano, Guterres estará, em dezembro, no aniversário de Marcelo, por onde também passa Francisco Sá Carneiro.

Os rivais: Guterres chega a primeiro-ministro; Marcelo lidera a oposição

Passaram 22 anos sobre aquele almoço no Hotel Rex. Em março de 1996, Marcelo Rebelo de Sousa discursava no encerramento do congresso social-democrata de Santa Maria da Feira que o elegera líder do PSD e atacava o chefe do Governo. O primeiro-ministro chamava-se António Guterres. “Se o PS persistir no seu comportamento [de aprovar a regionalização só com os votos do PCP], de esvaziar a revisão constitucional e fazê-lo em matéria de regime sem diálogo com o maior partido da oposição, corre um risco muito simples: o de o PSD não apoiar nenhuma [revisão constitucional nem regionalização]”. Na primeira fila dos convidados, o ministro adjunto Jorge Coelho, braço direito de Guterres, sorria.

Marcelo e Guterres tinham feito percursos diferentes. Rebelo de Sousa fizera carreira no jornalismo, mantivera-se como professor universitário, integrara um Governo. Guterres dedicara-se por completo à política, fundara a DECO – Defesa do Consumidor e era um elemento fundamental no aparelho do PS, algo que Marcelo nunca foi no PSD. Tinham um aspeto em comum. Enquanto Marcelo Rebelo de Sousa era um violento conspirador dentro do PSD com a criação da Nova Esperança (contra o Bloco Central), António Guterres tinha um terrível sótão conspirativo onde se reunia o “ex-secretariado” a tramar planos contra Mário Soares. Queriam os dois liderar os respetivos partidos. E lá chegariam.

Quando Marcelo chegou à liderança do PSD, as relações com Guterres já não eram as melhores. Em 1989, na segunda-feira a seguir ao desaire eleitoral para a câmara de Lisboa em que Rebelo de Sousa foi derrotado por Jorge Sampaio — então líder do PS — António e Zizas convidaram-no para jantar. Guterres era tão rival de Jorge Sampaio no PS, que Marcelo diria ao Expresso uns anos mais tarde estar convencido que ele tinha votado em si nas autárquicas, o que o amigo desmentiria nas páginas do mesmo jornal. “Convidei-o para jantar em minha casa no dia seguinte à sua derrota, porque achei que ele devia estar psicologicamente abatido, mas um tipo que faz desse gesto de solidariedade um facto político não tem noção do que é a amizade”, acusaria António Guterres.

"António Guterres [é] como aquele escuteiro bondoso, que procura afanosamente a sua boa ação quotidiana e decide que ela consiste em ajudar uma velhinha a atravessar a rua. A velhinha não quer atravessar, mas o escuteiro insiste. Está seguro de que é para bem dela. E empurra-a, arrastando-a, força-a a ajudá-lo a fazer a boa ação"
Marcelo Rebelo de Sousa, no Exame da TSF, sobre António Guterres

Anos mais tarde, quando Marcelo comentava na TSF, no célebre Exame em que dava notas aos políticos, Guterres já era secretário-geral do PS e por vezes era alvo da língua venenosa do analista. Apesar de elogiar por sistema a inteligência do velho amigo, por vezes tentava diminuí-lo, como numa então célebre alegoria. A questão tinha a ver com as tentativas de Mário Soares, então Presidente da República, para condicionar Guterres no Largo do Rato e vice-versa. Marcelo apresentou aos seus ouvintes a parábola do bom escuteiro:

“Uma vez mais, o que se passou me fez pensar na imagem de um António Guterres como aquele escuteiro bondoso, que procura afanosamente a sua boa ação quotidiana e decide que ela consiste em ajudar uma velhinha a atravessar a rua. A velhinha não quer atravessar, mas o escuteiro insiste. Está seguro de que é para bem dela. E empurra-a, arrastando-a, força-a a ajudá-lo a fazer a boa ação. A velhinha resiste. Espanca o escuteiro com o guarda-chuva. No meio do confronto são ambos atropelados. (…) De cada vez que Guterres pensa que arrasta Soares ou ganha com a travessia de braço dado com ele, leva uma saraivada de pancadas do Presidente.”

No dia em que ganhou a liderança do PSD, Marcelo acusou Guterres de confundir diálogo com autoridade de Estado e de ter políticas sociais que apenas eram “esmolas de espírito caritativo” — referia-se ao então denominado Rendimento Mínimo Garantido. Não eram tempos para tréguas. Agora eram adversários e rivais. Disputavam o poder, mas um tinha uma enorme vantagem sobre o outro. Guterres estava no poder e vivia em estado de graça permanente. Marcelo recebia um PSD totalmente esgotado pelos 10 anos de cavaquismo, em pura ressaca de poder, e estava longe de dominar a arte da comunicação televisiva, o que só desenvolveria anos depois.

Perante um Executivo socialista minoritário mas com boas sondagens, o novíssimo líder social-democrata garantia que não ia derrubar o Governo. Se o fizesse, sabia que poderia estar a contribuir para a construção de uma maioria absoluta. “Seria mau que este Governo não durasse os quatro anos. A estabilidade é um bem que não pode ser desbaratado”, dizia Marcelo.

Marcelo “mentiroso” e a provocar o “aumento da intriga política”

Na primeira entrevista que deu ao Expresso como líder do PSD, Marcelo acusaria Guterres de ter “um técnico de marketing” a assistir ao Conselho de Ministros. Seria Edson Athayde. Era o que António Guterres queria. Um pretexto para Jorge Coelho reagir com a concordância do primeiro-ministro: “Marcelo é mentiroso, como se sabe. Edson Athayde há mais de um mês que não trabalha para o Governo nem colabora comigo e nunca assistiu a reuniões do Conselho de Ministros. É completa mentira. Ele não se pode esquecer de que agora não pode continuar a criar factos políticos, como anteriormente, com aldrabices pelo meio, sob pena de ninguém o levar a sério”.

“Há em Portugal um foco principal de intriga e há uma base científica para saber onde ele está. Desde o último congresso do PSD, com a nova direção, a intriga política aumentou enormemente no país”
António Guterres em 1996, sobre a chegada de Marcelo à liderança do PSD

Estavam combinados para atacar Marcelo onde mais doía. A relação havia de esfriar muito, até porque António Guterres teria esta frase tão mortal quanto divertida: “Há em Portugal um foco principal de intriga e há uma base científica para saber onde ele está. Desde o último congresso do PSD, com a nova direção, a intriga política aumentou enormemente no país”.

No primeiro encontro com António Guterres em São Bento, os dois conhecidos conversam sozinhos, afundados nos sofás da residência oficial, em campos mais opostos do que nunca. António Guterres sentia-se livre para lhe dar conselhos. O relato corresponde à memória de Marcelo Rebelo de Sousa: “Ó Marcelo, se queres ser primeiro-ministro, a melhor coisa que tens a fazer é fazer de morto. Porque quem lá estiver na altura em que eu cair substitui-me naturalmente. Se te desgastares muito, corres o risco de não chegares lá”. Guterres terá dito que é preciso resistência, que ele próprio aguentou críticas de Mário Soares e de toda a gente. “Não se trata de deixares de defender as tuas posições, mas não te mexas muito”. Rebelo de Sousa comentará que pensou: “Mas será que o homem que me está a dizer isto é o amigo?” A verdade é que Marcelo não chegou lá. Pelo menos antes de chegar a Belém.

Não só a intriga aumentava, como as trocas de palavras azedas nos jornais crescia. O primeiro-ministro havia de contar ao Expresso que se zangou com Marcelo quando descobriu “que ele tinha convencido Mário Soares da existência de um pacto secreto entre ambos e Adelino Amaro da Costa, para cada qual tomar o poder dentro dos respetivos partidos, entregando assim o PS, o PSD e o CDS à Igreja Católica”. Guterres garantia que Soares lhe contara a história e que Marcelo tinha confirmado tê-la inventado “só para se divertir com a ideia de pôr Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral a suspeitar do senhor cardeal-patriarca”. A versão de Marcelo é que a história ocorreu em 1976 e que, interpelado por Mário Soares sobre as afinidades religiosas entre os três, disse que eram católicos e que bem podia suceder coincidirem em posições de destaque “sem falar em liderança, cada qual no seu partido”. Terá esclarecido que ser católico era diverso de ser do Opus Dei, “ao qual só Adelino pertencia…”

A relação degradava-se também por desconfiança. António Guterres achava que não conseguia ter privacidade numa conversa com Marcelo Rebelo de Sousa, porque “depois de uma reunião em São Bento, quando saía para a rua, Marcelo começava a revelar à imprensa a conversa que devia ser reservada”, contou um antigo ministro guterrista que era amigo de ambos. Guterres chegaria a desconfiar que Jorge Sampaio contava a Marcelo muito do que ele próprio lhe dizia, e que depois apareceria reproduzido nos jornais.

Marcelo ganharia o referendo da regionalização, conseguiu ganhos de causa para o PSD na revisão constitucional e mais tarde impediu a liberalização do aborto. Ao mesmo tempo, foi aprovando Orçamentos do Estado, com exigências que Guterres aceitava.

Do ponto de vista político, apesar de não se refletir nas sondagens, o PSD ia somando vitórias sobre o PS. Marcelo planeou toda uma sequência de jogadas para enredar António Guterres na sua teia. O plano era este: a revisão constitucional ficava dependente de o PS aceitar um referendo à regionalização; ao mesmo tempo, para haver um referendo à regionalização era preciso mudar a Constituição; sem um acordo para a lei fundamental, Marcelo recusava-se a deixar passar os orçamentos de Estado até 1999; e, se isso acontecesse, o Governo minoritário caía, apesar de este cenário não interessar ao PSD, pois a probabilidade de o PS ter maioria era grande; mas, com um orçamento chumbado, seria impossível ao país aderir ao euro, uma meta inegociável para o primeiro-ministro. António Guterres estava encurralado. E Marcelo cobrava caro os consensos de que agora tanto fala.

Com uma estratégia de tudo ou nada, Marcelo Rebelo de Sousa ganharia o referendo que inviabilizou a regionalização, conseguiu ganhos de causa para o PSD na revisão constitucional e mais tarde impediu a liberalização do aborto defendida pela maioria dos socialistas (mas não pelo católico Guterres). Pelo meio, chumbou o Totonegócio. Ao mesmo tempo, foi aprovando Orçamentos do Estado, mas não sem exigências. No OE para 1998, Marcelo explicou a Guterres que ia colocar condições que tinham de ser aceites. Explicou-lhe que era difícil convencer o partido a oferecer o orçamento mais uma vez. Então, Marcelo apresenta um cardápio de condições, e uma bandeira: o fim da coleta mínima sobre o IRC e o IRS dos trabalhadores independentes, que o Governo se preparava para aprovar. Guterres teve de se impor ao ministro das Finanças Sousa Franco (também um velho amigo de Marcelo) para ter o OE aprovado e cumprir os critérios de convergência para Portugal entrar no primeiro grupo de países do euro.

A aproximação com a morte de Zizas e uma conversa no hospital

Antes das cimeiras europeias, Guterres e Marcelo concertavam posições para um apresentar aos socialistas europeus e outro no Partido Popular Europeu. Mantinham uma troca de informações mais aberta a nível internacional. Em junho de 1997, durante a Cimeira de Amesterdão, enquanto Guterres negociava o futuro da Europa, ia telefonando a Marcelo a dar-lhe conta do que se estava a passar enquanto este jantava no aniversário de um amigo. Quando rebentou uma crise grave na Guiné-Bissau, um golpe militar, o primeiro-ministro também telefonou repetidamente ao líder da oposição a dar-lhe conta dos acontecimentos.

Marcelo e Guterres tiveram uma longa conversa, em Londres quando Luísa Guterres já estava em coma. Puseram de lado o que os dividia naquele momento íntimo e trágico. Fizeram um balanço de vida, recordaram a juventude e os tempos do Grupo da Luz.

O momento de verdadeiras tréguas aconteceu quando o estado de saúde de Zizas se agravou. Ao saber que a amiga estava pior, em janeiro de 1998, Marcelo viajou de urgência para Londres. Quando entrou no avião, sabia que ela ainda estava consciente, mas quando aterrou já entrara em coma. António e Marcelo voltaram a encontrar-se como há décadas, afinal eram dois amigos e a situação era dramática. Guterres levou Marcelo a ver Luísa. Depois passaram para o quarto ao lado e falaram como nunca tinham conversado nos últimos anos. Tiveram uma longa conversa, de horas. Os dois políticos que ascenderam ao topo puseram de lado o que os dividia naquele momento íntimo e trágico. Fizeram um balanço de vida, recordaram a juventude e os tempos do Grupo da Luz. Portugal estava longe, a três horas de avião, os problemas políticos eram nada ao pé da vida de Luísa.

Desabafaram, emocionados. António Guterres estava consternado, naquele era um dos piores momentos da sua vida. Enquanto falava, ia comendo nervosamente chocolates. Marcelo havia de partir dali para Bona, para um conselho do PPE, e telefonaria permanentemente para Guterres a saber notícias. A política estava suspensa enquanto Luísa se mantivesse ligada a uma máquina. A esperança era nula. Zizas morreria no dia 28 de janeiro de 1998, aos 52 anos. O corpo seria colocado em câmara ardente no seminário da Luz, onde tinham casado. Marcelo esteve presente. Cumprimentou Guterres e recuou para um lugar mais discreto. De um lado da capela-mor, onde estava o caixão, sentavam-se os íntimos da família, do outro lado ficava a multidão. A certa altura, o próprio Guterres pediu para irem buscar Marcelo para o lado dos amigos mais próximos. Afinal, ele tinha sido uma das vinte pessoas que participara no casamento há 26 anos naquela mesma igreja.

Fosse qual fosse o resultado das autárquicas de 2001, Marcelo ia ter uma noite divertida, disse-lhe Guterres. Ou ele próprio perdia e Marcelo ficava feliz. Ou Barroso perdia e o próprio Marcelo podia regressar à liderança do PSD

No meio de toda a consternação, com o drama tão fresco, Marcelo não se sentiu bem em avançar para o congresso do partido e retomar a luta política. Decide adiar o congresso de meados de fevereiro para o início de abril, apesar de outras interpretações que tinham a ver com o calendário político. O CDS também tinha um congresso em março e convinha a Marcelo perceber que ia sair como líder.

Estes dois líderes do PS e do PSD seriam dos raros a sair pelo próprio pé do palco político, ficando com o rótulo de desistentes. Marcelo demitiu-se em 1999 porque Paulo Portas matou a aliança do CDS com o PSD ao vivo e a cores na televisão. Guterres, porque perdeu as autárquicas de 2001 e por entender que a falta de maioria estava a conduzir o país a um “pântano político”. No dia da demissão de Marcelo, Guterres tinha em mãos a decisão de apoiar a intervenção da NATO na Sérvia sem mandato das Nações Unidas.

Dois anos depois, em vésperas de autárquicas, já Durão Barroso era o líder do PSD, Marcelo cruzou-se com Guterres no Hotel Ipanema Park, no Porto. Conversaram. Marcelo fica com a impressão de que o primeiro-ministro socialista se ia embora se as autárquicas corressem mal. Sentiu-o desprendido e distanciado. Ter-lhe-á dito que, fosse qual fosse o resultado, Marcelo ia ter uma noite divertida no dia das eleições. Ou ele próprio perdia e Marcelo ficava feliz. Ou Barroso perdia e o próprio Marcelo ainda podia regressar à liderança do PSD. A história acabou como se sabe agora: um à cabeça do mundo; outro à cabeça do país.

Vítor Matos é autor da biografia “Marcelo Rebelo de Sousa”

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