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Há 50 anos começava o fim dos Beatles e o renascimento dos Rolling Stones

Há 50 anos, o Álbum Branco é o início do fim para os quatro de Liverpool, enquanto Mick Jagger e Keith Richards captam o caos em Beggars Banquet. Uma mesma história de revolução, refúgio e desilusão.

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O plano estava escrito nas paredes. “As barricadas bloqueiam as ruas, mas abrem o caminho”. Realistas, a sonhar o impossível, a proibir o proibido, milhares de estudantes, ativistas, anarquistas, miúdos, em marcha contra a polícia, escrevem frases de efeito nas paredes, enfrentam de punho erguido a força do Estado francês. Durante dias, a cidade é paralisada pela chuva de pedras, cocktails molotov, gás lacrimogéneo, greves, as barricadas chegam a assustar o presidente Charles de Gaulle, destemido herói de guerra, que abandona o Eliseu rumo ao salve-se-quem-puder. Quem eram, e o que queriam estes miúdos, pensava o mundo ocidental a assistir aterrorizado o revirar da capital iluminista. “Revolução”, respondiam, “revolução”.

“You say you want a revolution”, consente John Lennon, ao receber a mensagem da mesma rapaziada parisiense que há poucos anos corria atrás do seu carro, quando Les Beatles ainda se faziam à estrada. “Well, you know/ We all want to change the world”, responde, cético, a desdenhar a brincadeira. A versão original de “Revolution” — em formato blues arrastados, que ficou conhecida como “Revolution 1” — era a proposta acabada de Lennon para reagir ao Maio de 68, à violência generalizada, aos estudantes com fúria nos olhos e fotografias de Mao Tsé-Tung nas mãos. Seria ainda a primeira amostra do novo álbum dos Beatles, um ano após estabelecerem o norte da cultura popular com Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e provarem que eram realmente maiores que Cristo (ups!).

“A canção gerou alguma controvérsia”, explica John no documentário “The Beatles Anthology”. “Eu achava que era, como se costuma dizer, ‘au courant’, sobre o que se passava na época, e eu queria fazer disso um single, disse-lhes que devíamos dizer alguma coisa e isto é o que eu gostava de dizer”. Porém, a versão que saiu em single, a pedido dos três colegas, ganhou de bónus um grito de guerra e um metralhar elétrico, um som desolador, que mais depressa nos convence que estamos todos ao molho e sem Deus, que “it’s going to be alright”. “Revolution” foi o lado B de “Hey Jude”, o primeiro single da banda na própria editora, a Apple Records, uma empresa que tal como os outros sonhos idílicos que floresceram nesta década, estava prestes a murchar. Afinal — pareciam dizer os protestos dos estudantes em Paris, dos ativistas negros nos EUA, dos resistentes checoslovacos — o amor não é tudo o que precisamos.

[“Revolution”, The Beatles:]

Outro slogan vindo de maio em 1968: “A arte está morta. Godard não pode fazer nada”. Em Londres, o realizador francês queria pegar pelos cornos o zeitgeist revolucionário, fazer sentido a partir do caos, justificar os motins como uma consequência natural das mudanças sociais na cultura popular anglófona. No desenrolar de “One Plus One” (ou “Sympathy for the Devil”), Black Panthers e hippies maoistas debatem numa incoerência sem fim, uma dança desajustada que só alinha o passo quando a câmara aterra no Olympic Studios. Indiferentes ao mestre da nouvelle vague, uns desgrenhados Rolling Stones, ressacados de ácidos e prisões, dão ao filme a única explicação razoável para esta época tumultuosa, para como é avassalador estar vivo, sofrer na pele as desilusões utópicas. A única solução, garante-nos Jagger, é abraçar esta desgraça, dançar em cima da fogueira.

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Na primeira sessão dos Olympic Studios, os Rolling Stones estavam decididos a renascer. Deitam-se no colo do produtor Jimmy Miller, engenheiro responsável por captar a mudança de perceção na cabeça de Mick Jagger e Keith Richards, eternos irmãos despertos para todas as insurreições. De rajada, gravam “Jumpin’ Jack Flash” — o blues maléfico que sentencia a nossa miserabilidade: estamos condenados mas não faz mal, até é engraçado — e “Street Fighting Man”, a resposta lírica de Jagger aos protestos. “Era a primavera de 1968 e lutava-se nas ruas de Paris”, recorda Keith na autobiografia Life. “De repente, começou a florescer entre nós esta nova ideia”. A ideia era acordar do sonho lisérgico, olhar pela janela e fazer canções sobre o fim do mundo, com um sorriso nos lábios.

[“Street Fighting Man”, The Rolling Stones:]

Assim como “Revolution”, “Street Fighting Man” consentia que o ano era marcado por gritos e marchas, ao contrário do descrente Lennon, Jagger sabia exatamente o que levava miúdos apedrejar polícias na rua. Para começar, estava bom tempo (“Because summer’s here”). Depois, era o momento certo (“time is right for fighting in the street boy”). 1968, ano que jorra o sangue de Martin Luther King, ano em que a fúria e a inquietação passam a norma. A canção é banida das rádios em Chicago, acusada de exaltar, e até convidar, a atos de violência. Se os Beatles queriam refúgio e sossego — longe dos holofotes, dos fãs, da sociedade — os Stones sobem ao palco e aclamam a extinção do peace and love, dedicados agora à perversão humana. Separados, mas sempre em comunhão, os dois maiores grupos do planeta queriam o mesmo, passar a branco todas as cores.

Toda a gente tem alguma coisa a esconder

O White Album, ou se formos picuinhas, o homónimo de capa branca, começou a ganhar forma num retiro espiritual na companhia do guru sorridente Maharishi Mahesh Yogi, numa viagem dos Beatles aos confins da Índia que já falamos em detalhe por aqui. “No fundo, a viagem foi uma oportunidade única para os Beatles encontrarem alguma serenidade, longe dos milhões de fãs e das coisas que tinham de tratar, mesmo que não tenha sido o que esperavam, deu essa oportunidade para olhar com mais atenção para dentro deles”, contou então ao Observador Jenny Boyd, cunhada de George Harrison e parceira da meditação em Rishikesh. A excursão foi um fracasso, o guru não passou debaixo da manga a resposta para as questões da humanidade e todos continuavam com uma profunda, e imperturbável, deceção.

Há 50 anos os Beatles chegaram à Índia. Prudence, Jenny e Paul estiveram lá e contam como foi

No ano anterior, o Verão de Amor teve a cereja no topo de bolo com Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, e logo depois, a confirmação deste caminho evangelizador no hino “All You Need Is Love” e o consequente álbum sorridente Magical Mystery Tour. Em janeiro, começava a batalha sangrenta de Khe Sanh, Vietname, cinco meses de estupidez humana, teimosia e morte. As promessas de São Francisco, de revelações clarividentes e paz eterna através da injeção de LSD, eram cada vez mais uma miragem. “Quando fui para Haight-Ashbury, esperava que fosse um sítio genial, com pessoas groovy, meio ciganas, com pequenas lojas a criar arte, pinturas e esculturas”, contou Harrison sobre o epicentro da cena de São Francisco. “Afinal eram apenas um bando de vagabundos, e muitos deles bastantes jovens. Isso mostrou-me o que estava realmente a acontecer com o culto das drogas.”

A desilusão de Harrison manifesta-se numa melodia ondulante, chorosa, liderada pela voz amargurada e verso profético:

“I look at you all, see the love there that’s sleeping
While my guitar gently weeps”

A guitarra de George, Eric Clapton, e já agora Prince, era o sofrimento pela geração que não se cumpriu. A segunda amostra de desgosto no Álbum Branco é “Sexy Sadie”, o ataque feroz de Lennon ao Maharishi, engodo de palavras sensuais, fez todos de tolos e um dia vai ter o que merece, promessa de um Beatle:

“Sexy Sadie you’ll get yours yet
However big you think you are”

“Havia pistas no White Album, até havia pistas na Índia, quando George e eu ficamos e o Paul e Ringo foram embora”, revela Lennon em Anthology, sobre o inevitável fim da banda. “Foi uma morte lenta”.

O rancor e a desilusão, a atitude desesperante de Lennon e Harrison perante o futuro, contrastam com a ideia original do White Album: um desenho de recomeço, voltar em branco do refúgio indiano para encarar qualquer vicissitude, como gerir uma empresa, ou sobreviver à desintegração de uma amizade. Permanece a promessa desta ideia, representada pela obra conceptual de Richard Hamilton, uma capa de claridade platinada com um número de série, um pedaço de arte exclusivo para cada fã. “Dear Prudence” e “The Continuing Story of Bungalow Bill” são das poucas a cumprir o plano, das raras que conseguem alguma inspiração sóbria num retiro bucólico. “Havia pistas no White Album, até havia pistas na Índia, quando George e eu ficamos e o Paul e Ringo foram embora”, revela Lennon em Anthology, sobre o inevitável fim da banda. “Foi uma morte lenta”.

Simpatia pelo diabo

Não havia dúvidas dentro de estúdio: estas sim, eram canções dos Rolling Stones. E que imagem sacra podia representar esta ressurreição, este som imundo, de alma suja, um caos de ruído, pujança e testosterona, controlado pela secção de ritmo imóvel? Uma casa-de-banho pública pois claro, com desenhos da dupla Jagger/Richards e frases daquelas que surgem nesses espaços privados. Beggars Banquet estava pronto para ser lançado em agosto, até a editora censurar esta arte de chiqueiro. A banda tenta defender a sua visão, enquanto nos tribunais o manager Andrew Loog Oldham queria um pagamento chorudo para se afastar da festa. O lançamento arrasta-se durante meses, até sair no final do ano, com uma capa em branco, mais uma, e o conteúdo intocável, sujo e necessário como uma sanita.

Uma mulher geme e entra o elemento primordial nesta história da canção Rolling Stones, o narrador de lábios carnudos. “Stray Cat Blues” é Jagger no seu melhor, o padre a professar sobre mulheres desavergonhadas, a gritar por cima de uma desconcertante melodia que parece que nunca foi ensaiada, que obrigaram Nicky Hopkins a tentar acompanhar ao piano. O resultado é catártico, paranoico, como em “Parachute Woman”, gravado em quartos claustrofóbicos com instrumentos espremidos entre preservativos usados e whisky amargo. “Aquele som triturado, sujo, vinha daqueles motéis apertados”, confirma Keith. “A única coisa que tínhamos era uma nova invenção, o gravador de cassetes”.

[“Parachute Woman”, The Rolling Stones:]

https://www.youtube.com/watch?v=msLpn4r-Zw0

“Ela vem de todas as cores, penteia o cabelo e é como uma arco-íris.”

Ela era Marianne Faithfull, namorada de Jagger e musa de “She’s a Rainbow”, canção estandarte da banda para corresponder ao flower power, à Swinging London de dandys, desfiles em boutiques. Depois, ela estava nua, enrolada num tapete e rodeada pela polícia numa bizarra rusga policial em casa de Keith Richards. Saem ilesos da prisão, Jagger nunca recupera do choque, são incapazes de voltar ao singular pop barroco de outrora, e Richards carrega uma mágoa que definiria a sua atitude na vida perante a lei, a responder à sentença com uma frase memorável: “I’m not interested in your petty morals”. “Estava furioso por ter sido preso e foi tipo, OK, agora vamos despir completamente as canções”, conta na autobiografia. “Aquele período era movido a muita raiva.”

E após todo carnaval de camisas fluorescentes com folhos, era difícil conseguir um arranjo mais despido que “Prodigal Son”, blues profundos do reverendo Robert Wilkins, ou “Dear Doctor”, blues de negro velho a reclamar de desamores, de cabeça baixa num escuro honky-tonk. “Factory Girl” é canção de celeiro sulista, sexta à noite, cada um à espera da sorte, que é como quem diz, espreitar debaixo da saia. Este caminho era sem retorno, os Rolling Stones nunca mais seriam ingleses. “Quando começámos queríamos ser uma banda blues e depois ficámos mais orientados para a pop — porque queríamos ser populares e passar na rádio — e depois começamos a ficar mais ecléticos”, justifica Jagger em According to The Rolling Stones. “Não sei o que é que aquele período teve que nos correu tão bem”, reflete Keith. “Ainda não tínhamos explorado as coisas de onde tínhamos vindo, e a mistura de preto e branco na música americana tinha muito espaço para ser explorada”.

A felicidade é uma arma quente

Se Bob Dylan era o mais representativo da música daquela década de pensamento livre, contracultura e juventude desperta, a hibernação do profeta numa gruta suburbana em Woodstock seria mais do que suficiente para justificar o fim do sonho. Obstinado, Dylan não queria sair de casa, estava cansado de ser divino, não queria morrer nem renascer, queria simplesmente viver. As roupas coloridas ficaram no armário, os alucinógenos no lixo, Ken Kesey estava reformado a morar com os pais, e Timothy Leary foi travado pelo FBI. O objetivo ainda era, como cantou Lennon, desligar a mente e relaxar, mas desta vez sem ajuda de Dr. Robert. Dylan passa os dias numa cave com uma monte de canadianos, recluso nas canções que parecem procurar um país que se perdeu neste frenesim de novidades e cores. O resultado foi Music from Big Pink, primeiro álbum dos The Band.

“A música deles deu-nos a sensação que o país era mais rico do que pensávamos, que tinha possibilidades que só agora começaríamos a perceber”, explica o crítico de música Greil Marcus em Mystery Train sobre o álbum que revirou o paradigma da música popular. “As canções capturaram uma certa saudade de casa e o sentimento de deslocação que reinava as nossas vidas.” A mensagem é clara, tentámos conquistar o mundo mas falhámos, está na hora de voltar para casa, conhecer o nosso jardim. No mesmo dia do White Album, é lançado The Kinks Are the Village Green Preservation Society, uma reflexão dos trejeitos da sociedade britânica. O mesmo 1968 em que Van Morrison, escondido em Boston, revela o surpreendente melancólico Astral Weeks, e os Byrds, com ajuda de Gram Parsons, arriscam-se no universo esquecido da country, com Sweetheart of the Rodeo. Até os Beatles, sempre alerta, seguem enrolados pela maré, contratam James Taylor, e estava trilhado o caminho para todos os singer songwriters que marcariam a próxima década.

Os Beatles em 1968

As acústicas “Mother Nature’s Son” e “Blackbird”, ainda no espírito contemplativo de Rishikesh, são o melhor exemplo dos quatro de Liverpool, ou melhor, de McCartney, a responder à competição. A segunda canção, com aquela tenra entrada em quatro tempos, era uma sincera homenagem aos negros norte-americanos, quando se discutia o Civil Rights Act de Lyndon B. Johnson, e, num espelho de 2018, os atletas olímpicos Tommie Smith e John Carlos levantavam o punho em protesto, durante o hino nacional. “Rocky Raccoon” é outra, ou “Don’t Pass Me By”, de Ringo. O reencontro de Macca com a guitarra acústica, único instrumento disponível na Índia, aconteceu ao lado de Donovan, o bondoso cantor folk que decidira trocar as alterações da mente por meditação. Donovan seria outra peça importante deste puzzle, inspira os Beatles a estudarem a viola e abre o espaço para a folk britânica, outro braço no movimento de regresso a casa, dos Fairport Convention a John Martyn.

Além da reclusão, do reencontro com a génese da música popular, em 68 havia outra estratégia para abafar o ruído: fazer ainda mais barulho. Ecoa nos televisores o napalm de Vietname, Walter Cronkite declara a guerra perdida, as baixas aumentam drasticamente e ninguém é capaz de ignorar um conflito que atinge um momento de rutura. Apenas um monte de amplificadores consegue gritar mais alto, acompanhado por uma dose tremenda de heroína para amolecer o espírito, receita dos Cream, da magia negra de Jimi Hendrix em Electric Ladyland, ou qualquer uma das bandas que surgiam a cada esquina, desde Led Zeppelin e King Crimson a Yes e Rush. O reino do singelo pop psicadélico estava a ruir, dava suas últimas cartas com Ogdens’ Nut Gone Flake dos Small Faces e Odessey and Oracle dos The Zombies. A lisergia evoluía para um estranhamento obsessivo, alienado, complexo, liderado por gente como Pink Floyd, agora com David Gilmour, e os Grateful Dead.

“Eles convenceram o público que que somos todos um, que somos nós contra eles, contra Washington, sem partido, contra a guerra do Vietname, a favor da legalização das drogas, tudo é lindo”, diz Bill Graham, promotor de concertos de todas estas bandas, no documentário “All You Need Is Love”. “Mas quantos é que realmente foram para o palco e disseram, não tomes ácido, fode-te a cabeça. Nem um!” O idealismo de paz e drogas ainda se arrasta até ao final do ano no lamacento Woodstock, mas entre as bandas era claro o embaraço com esta ingenuidade. John Lennon, o mesmo que cantou que só precisamos de amor, passa a berrar, estridente, que resta estar só e morrer. “Yer Blues” ao lado da montanha russa “Helter Skelter” — de cima para baixo, da glória à queda — são a réplica beatlemaníaca ao tremor barulhento que assola o rock.

[“Yer Blues”, aquilo pelos Dirty Mac, com Lennon, Clapton, Keith Richards e Mitch Mitchell:]

https://www.youtube.com/watch?v=fj4aJ8R0k2Y

Heroína era a solução recorrente para não se deixar afetar pela queda do império, ou como diria Lennon, todos têm alguma coisa para esconder, exceto eu e o meu macaco. O quê? “Ele estava a meter-se em drogas pesadas e por isso as canções estavam cada vez com mais referências a heroína”, clarifica Macca em “Many Years From Now”. “Até aquele momento, tínhamos feito referências oblíquas bastante suaves a erva ou LSD, mas agora John começa a falar sobre injetar-se e macacos”. “Happiness Is a Warm Gun”, a analogia arma/sexo ao bom estilo Mapplethorpe, revela a obsessão carnal com Yoko Ono e, em linguajar junkie, um “fix” para não ir abaixo. “Nós cheirámos um pouco quando estávamos com dor. As pessoas estavam a fazer-nos passar por um mau bocado”, admitiu nas entrevistas à Rolling Stone em 1970. “Estávamos com tanta dor que tivemos de fazer alguma coisa. E isso foi o que aconteceu. Tomamos H por causa do que os Beatles e seus amigos estavam a fazer connosco”.

Nem sempre podes ter aquilo que queres

Segundo um mito popular, Anita Pallenberg não gostou de Beggars Banquet à primeira audição, julgamento mais do que suficiente para voltarem a misturar o disco. Anita, que tinha acabado de trocar os lençóis da cama, ou seja, um (Brian Jones) Rolling Stone por outro (Keith Richards), era, segundo a própria, uma bruxa, fluente em magia negra. Jagger, deixa seduzir-se pela feitiçaria, estuda os livros esotéricos da atriz, conhece Baudelaire, e encontra a personagem que seria o definitivo narrador de 68. Por sorte, Godard chega exatamente neste momento ao estúdio, a encarnação do vocalista em gentleman com gosto refinado, que anda por aí desde as primeiras dúvidas de Cristo até à morte dos Kennedys, e os culpados somos nós, por isso respeitinho que é bonito, ou este senhor executa as nossas almas. Não existe qualquer ponto de referência anterior a este embalar tribal, diabólico, de “Sympathy for the Devil”, isto era terra inexplorada, era a morte à espreita, um ritual satânico que consegue superar a própria realidade tenebrosa, de tal forma, que deveríamos inclusive celebrar este inferno, em cima de brasas.

Os Rolling Stones podiam cair no risco de descarrilar como os Beatles, seguirem novamente o trilho da banda melhor sucedida. Afinal, estavam no momento mais débil da carreira, na sequência de um álbum fora do percurso (Their Satanic Majesties Request), sem manager, acabados de sair da prisão, e com o antigo líder da banda, Brian Jones, transformado numa assombração de cabeleira loira, espectro que lentamente se despede do mundo. O slide de Brian em “No Expectations” soa a nota de suicídio, uma alma a dissipar-se, uma última prova de amor pela música, nas palavras de Jagger:

“Our love is like our music
It’s here, and then it’s gone”

Na ruínas do turbilhão, de drogas, protestos e violência, os dois compositores dos Rolling Stones aproximaram-se como nunca antes, entenderam que a chave da sobrevivência estava nesta amizade, neste conflito de irmãos, e selam um pacto de sangue que permanece 50 anos depois.

“O Brian não estava realmente envolvido no disco, tirando o slide de ‘No Expectations’”, confirma Jagger em According to The Rolling Stones. “Ele não estava bem e não aparecia nas sessões. Na verdade, acho que nem queríamos que ele aparecesse”.

Na ruínas do turbilhão, de drogas, protestos e violência, os dois compositores dos Rolling Stones aproximaram-se como nunca antes, entenderam que a chave da sobrevivência estava nesta amizade, neste conflito de irmãos, e selam um pacto de sangue que permanece 50 anos depois. The Rolling Stones Rock and Roll Circus seria — porque o programa nunca foi transmitido — um especial de Natal para acompanhar o lançamento de Beggars Banquet, com a presença ilustre da alguns resistentes de 68, como Lennon e Clapton, e seria também o primeiro contacto com a incerteza do próximo ano. No final, uma aparição magnética, o gentleman diabólico que narra o apocalipse dos últimos 12 meses, Jagger esquio, aos gritos, tatuado pelo demónio, acompanhado pelos anjos da morte, Keith a metralhar o público, de olhos fechados, e Brian Jones em lágrimas, maquilhagem desbotada, com um pé na cova e mão na maraca. Não existe amor, não existe paz, escondam-se, tenham medo, barriquem as ruas, o sonho morreu e estamos todos sozinhos.

[Os Stones no Rock and Roll Circus, com “You Can’t Always Get What You Want”:]

https://www.youtube.com/watch?v=V-7u9usC22o

Enquanto a minha guitarra chora

“Muitas gravações tinham uma ideia base e uma jam session para finalizar, que, por vezes, não ficava muito bem”, reflete o exigente produtor dos Bealtes, George Martin, em Anthology. “Quando fizeram o álbum, achei que devíamos ter feito um disco único muito bom, em vez de um duplo”. A compreensível crítica do produtor, a mirar aquelas músicas de encher chouriços, desde porcos capitalistas (“Piggies”) a Ob-La-Dis, Ob-La-Das, deixam hoje de fazer sentido, quando qualquer descoberta de outtake merece uma edição comemorativa. Os 50 anos do White Album são comandos por Giles Martin, filho de George Martin, que lançou este mês a reedição com mais de 50 novas versões. “O que fazer quando temos tantas canções, e queremos livrar-nos delas, para podermos fazer mais?”, questiona Harrison, acrescentando no entanto que “havia muito ego naquela banda, e muitas canções deveriam ter sido tiradas”. “Não acho que tenha coisas a mais, é ótimo”, defende McCartney. “É o White Album dos Beatles, cala-te!”

A cortina caiu com “Glass Onion”, Strawberry Fields não é real, a pobreza é a única dimensão viva e de uma assentada, Lennon tenta matar os mitos dos Beatles. No fundo, estava cansado, tão cansado, que nem conseguia preparar uma bebida, ou sequer dormir. “I’m So Tired” assim como “Julia”, era Lennon distanciado da banda, solitário, a refletir nos conturbados 28 anos, a cantar uma canção de embalar para a mãe que o abandonou, a reescrever uma relação afetuosa que nunca aconteceu. A única raiz que prende o Beatle à terra é Yoko, detestada por muitos, e sempre necessária, a única boia de salvação para esta depressão. A sombra da artista japonesa paira no álbum, no “Revolution 9” de musique concrète e colagem à la Stockhausen, parte de um conceito maior empregue em Unfinished Music No. 1: Two Virgins, o álbum lançado dias antes do White Album com os dois nus na capa, com o detalhe curioso que Lennon ainda era casado.

Os Rolling Stones no lançamento de "Beggars Banquet", em 1968

Getty Images

“Temos de agradecer ao Paul por termos gravado tantos discos”, admite Ringo em “Living in the Material World”. “Eu e o John morávamos perto um do outro, saímos juntos, estaria um lindo dia num jardim em Inglaterra, o telefone tocava e sabíamos sempre que era ele”. Praticamente líder, responsável pelos conceitos dos últimos, e seguintes, álbuns da banda, começa a germinar em Macca o desassossego que comandaria os anos seguintes de trabalho incansável. Lennon caminha para dentro, e McCartney para fora, numa versatilidade surpreendente, experimental (“Wild Honey Pie”, “Why Don’t We Do It in the Road?”), com a leveza pujante e alegre (“Back in the U.S.S.R”, “Birthday”, “Martha My Dear”), ou simplesmente a adorável disposição de conseguir sempre amar a vida (“I Will”, “Honey Pie”). Paul, quem menos precisava dos Beatles, era o único que não queria largar a banda.

[“Back in the USSR”, The Beatles:]

Uma das célebres histórias de bastidores, é a saída precoce de Ringo Starr durante as gravações, convencido depois que a equação dos Beatles só funciona em quatro. Se Lennon estava perdido no próprio mundo, Harrison estava no seu universo, completamente alienado, na incessante busca pela fé salvadora, a apontar primeiro para o Oriente, e depois para uma reclusão no seu palácio victoriano. “So many tears I was searching/ So many tears I was wasting, oh” confessa em “Long, Long, Long”. “Havia muito mais músicas individuais, era a primeira vez que aceitamos que assim fosse”, diz, acrescentando que, “lembro-me de que estavam três estúdios a funcionar ao mesmo tempo”. Uma das individuais é “Savoy Truffle”, quase funk, sobre o consumo degenerado de Eric Clapton com chocolates, o mesmo melhor amigo que dormia às escondidas com a mulher de Harrison.

Eram tempos estranhos, e para o Beatle mais quieto, o ideal era estar sem chatices, no seu universo hermético rodeado de instrumentos indianos, cítaras e shehnais, como em Wonderwall Music, o primeiro álbum solo de um Beatle. Em um mês, são lançados dois álbuns solo e o White Album, o ambiente de estúdio começa a ficar tenso, e a banda nunca mais recupera. “Foi o período que parecia que estava tudo a correr bem, e de repente as coisas começam a correr mal”, conta George. “Quando as coisas começam a correr mal, quando caímos no chão, aí é que começam a dar-nos pontapés”. 1968 não foi apenas o início do fim para a maior banda do mundo, foi o momento derradeiro. Pela primeira vez tinham ficado atrás, sozinhos e rancorosos. Ringo explica melhor: “É como um divórcio, não se dá de um momento para o outro, são meses e anos de miséria”.

Foto principal deste artigo: Eric Clapton, John Lennon, Mitch Mitchell e Keith Richards, os Dirty Mac no Rock & Roll Circus dos Rolling Stones, em 1968

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