A subida nos preços da habitação tem superado os aumentos salariais, dificultando o acesso à habitação, quer na compra, quer no arrendamento. A situação piorou a partir de 2017, o que se deve a fatores do lado da oferta mas também da procura. Em Lisboa e Porto há sinais de exuberância nos preços. Estas são algumas das conclusões da análise “A crise da habitação nas grandes cidades”, que atualiza o estudo sobre o mercado imobiliário português realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, avançando-se um conjunto de objetivos e soluções (policy paper) para este setor. O documento é da autoria de Rita Fradique Lourenço, Paulo Rodrigues e Hugo de Almeida Vilares.
Mesmo com a pandemia de Covid-19 os preços das casas continuaram a subir em Portugal, o que se acredita poder estar relacionado com a proteção aos rendimentos pelas ajudas públicas e com a poupança que foi conseguida nesse período, já que foi possível, assim, continuar a aumentar os empréstimos para habitação, “estimulando um segmento de mercado, nomeadamente na aquisição, que acabou por ter algum impacto, mas não o medimos, no preço das habitações”. Com o crescimento de novos empréstimos, há mais procura, o que deverá conduzir à subida de preços, sustenta Hugo de Almeida Vilares, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Só em 2022 o recurso ao crédito travou um pouco devido à inflação e à subida de juros.
O aumento das casas sentiu-se em particular a partir de 2017 (antes tinha havido descida de preços, mas em 2014 acabou por se abrir o parque habitacional ao turismo). E, de acordo com o estudo, a que o Observador teve acesso, “os preços da habitação estão acima do que seria explicado pelos fatores macroeconómicos”. E isso sugere, segundo os autores do estudo, que “uma possível sobrevalorização do preço das casas”. Neste momento, diz Hugo de Almeida Vilares ao Observador, Lisboa e Porto “registam comportamentos exuberantes e têm vindo a registar comportamentos exuberantes, que se mantêm, desde 2017”. Uma exuberância que não se replica em todo o país. O professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto acrescenta que no final de 2022 na área metropolitana de Lisboa, por exemplo, “já se nota alguma atenuação do processo de exuberância. Em Lisboa [cidade] não”, havendo a inflação que acaba por “esbater um pouco o fenómeno de exuberância de preços reais”, mas ainda não foi suficiente para que o acesso à habitação melhorasse.
Não há dúvidas, segundo o estudo, que “assistiu-se a uma degradação da acessibilidade à habitação. Hoje é significativamente mais difícil entrar no mercado tanto de arrendamento como de aquisição do que era há cinco ou seis anos, mesmo quando se olha para as localizações mais baratas nas áreas metropolitanas ou nas cidades de Lisboa e Porto”. Em alguns casos, as poupanças necessárias para aquisição “duplicaram”, “exigindo um esforço de vários anos de acumulação de capital”, além de que “as próprias avaliações bancárias, mais prudentes, impactam decisivamente nesses valores”. E para adquirir ou arrendar casa é necessário destinar-se uma maior percentagem do rendimento do que há uns anos.
Um exemplo: hoje para um agregado de duas pessoas no ativo conseguir comprar uma casa mediana na freguesia mais barata em Lisboa ou no Porto “é necessario que as duas pessoas atinjam pelo menos o percentil 60 da distribuição de rendimentos dessa zona geográfica, quando em 2017 era acessível a um agregado no percentil 40 em Lisboa ou 20 no Porto”, além de que o capital inicial necessário aumentou de 30 mil para 56 mil no concelho de Lisboa e de 16 mil para 37 mil no Porto entre 2017 e 2022.
No mesmo exemplo conseguiriam arrendar uma casa mediana na mesma zona quando ambos estão no percentil 40 e 60 em Lisboa e Porto, respetivamente. Segundo o estudo, contribuiu para esta evolução a evolução positiva dos rendimentos e a estabilização “e até diminuição em alguns locais” das rendas. “Apesar deste diferencial de dinâmicas entre arrendamento e aquisição, tal como não significa em 2022 diferenças significativas em termos de níveis de acessibilidade, particularmente em Lisboa, sinalizando um processo onde a acessibilidade ao arrendamento já era em 2018 mais limitada”.
Os agregados com apenas uma pessoa a situação é pior, havendo, mesmo, segundo o estudo “uma realidade de quase impossibilidade de acesso (…) para grande parte da população em toda a extensão das áreas metropolitanas”, quer no arrendamento, quer na aquisição.
O processo de compra ou arrendamento, sinaliza o estudo, é “moroso” pelas exigências dos compradores/arrendatários quanto à localização e características da habitação, o que também contribui para que existam casas vazias ou subutilizadas.
No diagnóstico feito verifica-se que contribuíram para ele fatores quer do lado da procura quer da oferta.
6 gráficos que ajudam a perceber o problema da habitação em Portugal
Vistos gold pesam pouco
Do lado da procura, a estrutura familiar mudou. Há mais agregados, mas mais reduzidos.
Há ainda uma maior procura por parte de estrangeiros — ressalvando este estudo que são principalmente cidadãos da União Europeia cujo investimento é impossível de travar. “Os vistos gold [portanto de cidadãos não europeus] são uma parte reduzida desse investimento”, realça o estudo, recordando que entre 2009 e 2020 “existiu um universo limitado, de cerca de 52 mil beneficiários de redução de IRS através do estatuto de residente não habitual”.
No caso dos vistos gold para investimento imobiliário foram atribuídos entre 2012 e 2022 cerca de 10,6 mil autorizações num investimento de 6 mil milhões e que em 2022 representou 0,2% do PIB, quando o investimento imobiliário no total atingiu os 13% do produto.
E é, por isso, que os autores consideram que “restrições absolutas à procura de estrangeiros são de evitar, porque deprimem a atividade económica e têm impacto reduzido dados os direitos constituídos a nível europeu. Porém, importa repensar o valor económico obtido pela fiscalidade mais favorável atribuída a cidadãos estrangeiros no regime de residente não habitual”.
Já o alojamento local, em particular a partir de 2014, “teve um impacto significativo nos preços das habitações, especialmente em áreas turísticas”. Em Lisboa, 90% das unidades existentes em 2022 foram licenciadas entre 2014 e 2019. Hugo de Almeida Vilares diz que não feita a análise neste estudo sobre o impacto real do alojamento local nos preços, mas relata situações internacionais. Ao nível de Barcelona o alojamento local aumentou preços em 15% e as rendas em 6%, e em Los Angeles também foi nessa ordem de grandeza, de 15%.
“Sem dúvida que tem impacto e não é pequeno quando comparamos com outros fatores, é algo que deve merecer atenção, ou pelo menos compreender que o fenómeno naquela altura pode ter contribuído para a situação que temos e agora temos de definir uma estratégia para conter a degradação da acessibilidade e eventualmente revertê-la”, diz o coautor do estudo. Mas ao nível das propostas sugere-se que a decisão seja local, evitando gentrificação de zonas turísticas. “Agora temos situações muito díspares, até dentro de Lisboa”, e por isso tem de ser definida uma estratégia local.
E por outro lado frisa que este é um setor que traz emprego e valor para a economia, pelo que “se conseguirmos conter o problema da acessibilidade à habitação mantendo atividade que traz valor e gere emprego e conseguirmos dispersar de forma harmoniosa dentro das cidades o fenómeno do alojamento local, recomendamos que esse seja o caminho, não sermos favoráveis a proibições absolutas ou a decisões demasiado centralizadas que não se ajustam à realidade de cada local, mesmo ao nível de bairro”.
Hugo de Almeida Vilares admite que o Mais Habitação, que traz limitações ao alojamento local, não foi analisado em detalhe. “Como em qualquer programa é preciso perceber o detalhe da medida”, conclui.
Além da referida fricção entre procura e oferta quanto à localização e tipologia do imóvel e as dificuldades, segundo o estudo, ao nível do financiamento, nomeadamente para compra de casa própria.
Isso induz procura sem conseguir casa, ao mesmo tempo que existem casas subutilizadas ou mesmo vazias. Os investigadores compararam este fenómeno ao do mercado de trabalho: existe desemprego, mas ao mesmo tempo há empresas à procura de trabalhadores sem conseguirem contratar.
Oferta é pouco elástica. Há poucas casas novas
É reduzido o nível de construção de casas novas em Portugal, até pelo foco que houve, nos últimos anos, na reabilitação que é um processo mais demorado e complexo. Também contribui para este panorama as limitações financeiras que o setor da construção teve nas últimas décadas. Entre 2013 e 2022 construíram-se cerca de 150 mil alojamentos, contra 630 mil na década precedente, segundo o INE, citado no estudo. O abrandamento da construção é transversal a todas as regiões.
Falando ainda o estudo de fatores ligados à fiscalidade e à regulação, com o excesso de burocracia e a imprevisibilidade nos licenciamentos (“devido à multiplicidade de normas e interpretações”) a surgir à cabeça, a que se soma “a pouca estabilidade na regulação imobiliária, com frequentes alterações do quadro legal” e a “carga tributária elevada no setor imobiliário” (a taxa de Imposto sobre o Valor Acrescentado IVA na construção nova é de 23%, além de que existe o IMI e o IMT). No último ano juntou-se um outro fator: a subida das taxas de juro e um exigência maior de capitais próprios.
O que fazer?
Nas propostas de políticas para a habitação, este trabalho faz alguns objetivos, estratégia de política pública e eixos de atuação que poderão, admite o coautor, ser mais próximos ao Mais Habitação e outros programas, mas “não fizemos uma análise fina do Mais Habitação, porque o estudo é uma visão estrutural”.
Ainda assim há uma estratégia de curto prazo sugerida, integrada com uma de médio e outra de longo prazo, sugerindo-se que, do lado da oferta haja:
- Definição de áreas de expansão habitacional no seio das áreas metropolitanas, apostando no desenvolvimento de redes de transportes e serviços públicos nessas áreas. Este esforço deve ser conciliado com a disponibilização de solos privados e públicos para construção habitacional, garantindo uma construção sustentável e harmoniosa com uma densidade adequada;
- Redefinição do enquadramento regulatório da construção e reabilitação urbana, apostando num novo processo de licenciamento estável, ágil, previsível, significativamente mais rápido, e menos burocrático que contribua para aumentar a elasticidade da oferta;
- Repensar a fiscalidade, em termos de IRS, IMI e IMT, ao nível da reabilitação e edificação urbanas, privilegiando a estabilidade, fomentando o investimento, evitando distorções arbitrárias entre projetos habitacionais, e promovendo a coesão socioeconómica;
- Aumento do parque habitacional público pensado para fomentar a coesão social;
- Estímulo a projetos built-to-rent com garantias reais de estabilidade fiscal num horizonte temporal alargado.
Se no imediato “é provável que a situação se continue a deteriorar” isso poderá ter de levar a medidas de curto prazo, ainda que os autores do estudo alertem para o facto de essas medidas terem “um efeito multiplicador da despesa pública em investimento habitacional demasiado baixo, sendo globalmente pouco eficientes, equitativas e eficazes”. Apesar disso, “parece-nos possível que se conceba adotar”:
- Subsidiação da procura habitacional que deve focar-se no arrendamento;
- Subsidiação de proprietários para responder à subida rápida de taxas de juro;
- Eventual controlo de rendas deve ser de curta duração, circunscrito a limitação de crescimento de rendas, e idealmente complementado com um regime mais flexível de proteção de arrendatários a implementar no médio prazo.
Controlo de rendas com efeitos negativos
“Preocupa-nos em particular a adoção de controlo de rendas, dados os impactos de médio prazo descritos na literatura. Assim, sendo o risco de efeitos negativos particularmente elevado, a ser equacionada a sua introdução, deve sê-lo no contexto de um pacote de medidas coeso e temporalmente previsível e confiável. O controlo de rendas, a existir, deve ser temporário e sobre atualizações (inclusive intercontratos), que combinado com subsidiação deve providenciar um alívio efetivo da acessibilidade à habitação”, realçam os autores.
Esse controlo de rendas tem “importantes consequências económicas de longo prazo”, porque por um lado “impacta a manutenção das habitações, provoca significativos desajustes entre oferta e procura levando a uma ocupação das habitações de forma desadequada e sub ótima, reduz significativamente a mobilidade dos arrendatários com impactos ao nível da procura de emprego e capacidade de ajustamento a choques económicos, e afeta de forma significativa a composição social dos bairros”.
Além disso, acrescenta o estudo, “não é muitas vezes possível garantir que os agregados familiares com menores rendimentos são os beneficiários, representando frequentemente uma transferência de riqueza arbitrária, com impactos muito relevantes do ponto de vista intergeracional”.
Nos exemplos internacionais analisados verificou-se que em Boston esse controlo de rendas “efetivamente diminuiu as rendas”, mas “não teve grandes efeitos ao nível da construção de novas habitações ou nos preços do mercado não regulado, mas representou uma diminuição da oferta no mercado de arrendamento, com os proprietários a preferirem vender unidades habitacionais afetadas pelo controlo, ou a investirem na sua reabilitação de forma a fugir ao controlo, resultando em que de 50% do parque habitacional arrendado sobre controlo em 1991 se passasse para 14% em 1995 – momento da abolição do sistema”.
Em São Francisco, houve uma redução de 15% na oferta “devido à venda de habitações anteriormente destinadas ao arrendamento, levando a um aumento de rendas no médio-longo prazo que esvaziou os objetivos iniciais do controlo introduzido”.
Na Alemanha, o controlo de rendas de 2015, “que incidiu sobre contratos existentes de casas não remodeladas ou novas, diminuiu as rendas em cerca de 5%, mas o efeito desapareceu ao fim de um ano, devido ao processo de novos contratos, acabando igualmente por aumentar o valor das rendas nos submercados não regulados, e beneficiando mais os agregados familiares de maiores rendimentos”. Em Barcelona, revertido por ordem judicial, o controlo de rendas incidia não apenas na atualização de rendas dos contratos, mas também entre contratos da mesma habitação. Este sistema diminuiu rendas em cerca de 6%, estimando-se um impacto nulo no número de habitações para arrendar disponíveis. Ou seja, no médio prazo, os controlos de rendas que depreciem o retorno do investimento “acabam por reduzir a oferta de casas no arrendamento”.
(corrigido nome da co-autora do trabalho. É Rita Fradique Lourenço)