Este artigo foi inicialmente publicado em 2016 e é agora republicado quando a eutanásia volta a ir a votos no Parlamento
“A morte é um dia que vale a pena viver.” Será, por ventura, difícil encontrar livros com um título que tão diretamente aborda a morte. A obra que Ana Cláudia Quintana Arantes lançou no Brasil em 2016, e que chegou às livrarias portuguesas o ano passado pela editora Oficina do Livro/LeYa, é uma conversa sobre a morte, sobre morrer.
Ana Cláudia trabalha na área de cuidados paliativos há mais de duas décadas. Antes de conversar com o Observador a propósito do livro era conhecida por ser a médica que lê poemas aos pacientes, que “prescreve poesia na lida diária com a morte”. O ato inusitado valeu-lhe, em 2012, a participação numa conferência TEDx, a mesma que, chegada ao YouTube, tornou-se das mais vistas naquele país (são quase 2 milhões de visualizações) e serviu de mote para esta obra.
A mensagem da autora está longe de ser mórbida. Ana Cláudia quer convidar os leitores a fazer melhor uso do tempo, a não ter medo de conversar sobre a morte e a serem protagonistas de uma vida que, se não tivermos atenção, corre depressa demais:
“Podemos transferir a escolha da profissão — podemos fazer algo que a nossa mãe ou o nosso pai quer, mas que não é o que queremos realmente fazer –, podemos casar-nos com uma pessoa que todos acham que é a melhor para nós, mas que não é a pessoa que amamos… Abrimos mão de ser protagonistas da nossa vida. Só que no nosso morrer, não há quem faça isso no nosso lugar, somos nós que temos de o fazer. Há pessoas que só vão ser protagonistas da própria vida na hora de morrer porque nunca foram a pessoa mais importante da própria vida. Morrer é um processo muito intenso e pode ser muito doloroso para aquelas pessoas que nunca viveram a própria vida.”
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Porque é que é tão difícil falar sobre a morte?
Penso que é um problema sobretudo ocidental. Acredito que no nosso mundo ocidental exista muita dificuldade em ter uma vida com sentido, uma vida plena, uma vida verdadeira, com presença. Estamos sempre a adiar o nosso tempo, nunca estamos satisfeitos com aquilo que temos. Achamos que dá sempre para melhorar, que vamos ter mais dinheiro, que vamos ter mais condições, que vamos ser mais felizes e, por isso, adiamos e perdemos tempo. A morte significa que o nosso tempo acabou e quando temos de lidar com o tempo que não existe… aí, não falamos sobre isso, não falamos sobre a morte porque não sabemos cuidar do nosso tempo — não é um tempo de produtividade, é um tempo de vida. Essa imaturidade que temos faz com que tenhamos medo de falar sobre a morte.
O problema não será necessariamente a morte, antes a forma como estamos a viver as nossas vidas?
Exatamente. Porque não queremos falar sobre nada que diga respeito à impossibilidade, ao limite. Então, como não queremos falar sobre limites, não queremos falar sobre a morte.
Quem é Ana Claudia Arantes?
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É médica, formada pela USP, com residência em geriatria e gerontologia no Hospital das Clínicas da FMUSP. Fez pós-graduação em psicologia – Intervenções em Luto pelo Instituto 4 Estações de Piscologia e especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e pela Universidade de Oxford. É coautora dos livros “Cuidado Paliativo” e “Manual de Cuidados Paliativos”; em 2012 publicou o primeiro livro de poesia, “Linhas Pares”.
Acha que isso tem que ver com a forma como as sociedades ocidentais se regem?
Penso que o problema é sermos vítimas de não refletirmos sobre isto. Culpamos a sociedade e o governo, culpamos os nossos pais, a moda e a cultura, mas nenhum destes morre por nós, no nosso lugar. Somos nós que morremos. A responsabilidade é nossa sobre a escolha do que fazer com o nosso tempo, não é da sociedade, não é da cultura, não é dos nossos pais. A responsabilidade é nossa. Quando culpamos os outros sentimo-nos aliviados por termos descoberto o culpado, mas é uma ilusão e o tempo não volta atrás. Não é como um assaltante que nos rouba o dinheiro — o dinheiro pode ser recuperado. Os assaltantes de tempo não têm como devolver-nos o tempo.
Como podemos, então, lidar melhor com o nosso tempo?
Respeitando o nosso tempo. Se estamos num trabalho e oferecemos 40 horas da nossa semana a esse trabalho… Esse trabalho merece 40 horas da nossa vida? Não são 40 horas da semana, mas sim da vida. Esse trabalho transforma-nos numa pessoa melhor ou só numa pessoa mais rica ou mais poderosa? Os ricos e os poderosos também morrem. Podemos morrer numa cama de ouro, mas também morremos. Podemos ter poder, mas não convencemos ninguém a morrer no nosso lugar. Se o tempo que dedicamos ao nosso trabalho é algo que nos transforma numa pessoa mais feliz e transforma a vida das pessoas à volta em pessoas mais felizes, ótimo, estamos a fazer um bom uso do nosso tempo. Se estamos numa relação que nos transforma, que nos desafia, que nos provoca — pode até trazer conflito, mas faz de nós uma pessoa mais forte ou mais leve –, ótimo. Mas se é uma relação que destrói, que consome, que nos transforma numa pessoa mais fraca, aí estamos a usar o tempo no lugar errado.
A noção de que a vida é breve pode ser um obstáculo à forma como a vivemos?
É um espaço bem imaturo. Quando achamos que não temos tempo, queremos correr. Tive um professor que começava as aulas muito devagar, ia exercício por exercício, e a única sensação que toda a gente tinha era de que não ia dar tempo. Mas ele terminava o último exercício, a última resposta, e o sinal tocava. Um dia perguntei-lhe como é que ele conseguia fazer aquilo. Respondeu-me assim: “Quando tiveres uma coisa muito importante para fazer em muito pouco tempo, fá-la muito devagar, só a vais fazer uma vez”. Foi dos melhores conselhos que já recebi. Tinha 18 anos. As pessoas, por norma, fazem as coisas com pressa, com urgência, pelo que não as fazem com presença, num estado de presença. Fazemos tudo já estando no final.
Isso vai dar à questão dos zombies existenciais… O que é um zombie emocional?
É uma pessoa a quem só falta morrer fisicamente. Aparentemente tem saúde, mas não tem nenhuma saúde emocional, nem espiritual. Não tem nenhum sentido na vida, é uma pessoa vazia.
Tem-se cruzado muito com pessoas assim?
A grande maioria das pessoas acaba por se comportar assim. Às vezes, essas pessoas precisam do diagnóstico de uma doença grave para darem conta de que o tempo acaba. Aí já estão atrasadas para viver uma vida muito, muito importante, que está a passar ao lado. A vida não volta, ela está correndo.
Mas, às vezes, cai-se numa rotina difícil de sair, castradora…
A rotina é castradora, mas é mais castrador a forma como vivemos a rotina. O que faz a diferença é a forma como nos relacionamos com o tempo, não exatamente o que fazemos dentro do nosso tempo.
Escreve que a morte é uma parte da vida e que mais difícil do que a morte é morrer. Como assim?
Há uma música do Gilberto Gil que diz qualquer coisa como: “Não tenho medo da morte, tenho medo de morrer, porque na morte já não estou, no morrer sou protagonista, é o meu ato verdadeiro”. O processo de morrer é algo em que não existe a menor possibilidade de transferência. Podemos transferir a escolha da profissão — podemos fazer algo que a nossa mãe ou o nosso pai quer, mas que não é o que queremos realmente fazer –, podemos casar-nos com uma pessoa que todos acham que é a melhor para nós, mas que não é a pessoa que amamos… Abrimos mão de ser protagonistas da nossa vida. Só que no nosso morrer, não há quem faça isso no nosso lugar, somos nós que temos de o fazer. Há pessoas que só vão ser protagonistas da própria vida na hora de morrer porque nunca foram a pessoa mais importante da própria vida. Morrer é um processo muito intenso e pode ser muito doloroso para aquelas pessoas que nunca viveram a própria vida. Vivermos a própria vida só no final dela é algo muito trabalhoso, porque vamos ver coisas e perceber situações e experiências importantes que queremos viver, mas que agora não temos mais tempo. Nesse processo de morrer é onde entram os cuidados paliativos, onde vamos oferecer às pessoas que têm uma doença que ameaça a continuidade da vida delas a possibilidade de alívio de sofrimento em todas as dimensões humanas, não só na fase final, no tempo em que estamos moribundos, mas desde o primeiro dia.
Foram muitas as pessoas que encontrou nessas situações? De serem protagonistas só naquele momento final?
Digo que vejo as pessoas, conheço-as quando elas podem ser quem realmente são. As pessoas de verdade são encantadoras. São únicas. No meu dia a dia, já tive pacientes com os quais partilhei a vida de cuidados por mais de 10 anos. Como sou geriatra, há muitas pessoas a quem faço diagnóstico e de quem cuido ao longo de toda a doença — há pessoas que vivem 10, 15 anos com demência, por exemplo, até com cancro. Já tive pacientes que levaram apenas horas a falecer, o que não deixa de ser uma experiência única. Digo que há sempre algo para ser feito, mesmo que tenha uma hora.
O que pode ser feito nessas circunstâncias?
Os cuidados paliativos implicam o controlo do sofrimento, cada situação vai expressar um sofrimento ou vários sofrimentos simultâneos — o sofrimento físico, emocional, familiar, social e espiritual. Não dá para expressarmos sentimento emocional tendo dor. Primeiro, tem de se tirar a dor. Só depois é que o paciente diz que está com medo. A partir do tratamento da parte física, todo o restante se manifesta. Muitas vezes, o controlo do sofrimento físico também alivia alguma outra dimensão do sofrimento. O paciente pode sentir-se abandonado por Deus, mas quando recebe cuidado de conforto para a parte física, reconhece no médico ou no enfermeiro um instrumento de Deus. Então, sente-se amado porque alguém cuidou dele. As coisas estão muito interligadas, não estão em gavetas.
O seu papel também é de psicóloga, isto é, também cuida da dimensão psicológica?
Não é possível fazer-se cuidados paliativos sozinho, embora eu tenha procurado conhecimento da dimensão humana, emocional, espiritual… Não é possível que eu faça cuidados paliativos na íntegra de uma maneira solitária. Preciso de um psicólogo, de um assistente social, de um enfermeiro… Claro que o conhecimento que procuro da psiquiatria, da psicologia, da teologia e da filosofia ajuda a compor a minha atitude como médica, mas é sempre necessário a presença da equipa.
Estar tão perto destas pessoas, seja por 10 anos ou 1 hora, deve ser complicado a nível emocional. Como é que se consegue conviver com tanta emoção junta?
A carapaça dura não funciona. Quando nos endurecemos diante destas condições está na altura de mudarmos de profissão. Quando não nos importamos mais e achamos que tudo isto é normal, então, está na hora de fazermos outra coisa. Eu aceito a emoção que estas circunstâncias provocam em mim — então, a emoção passa por mim, não me aprisiona. Emociono-me, choro, vou ao velório, vou à missa do sétimo dia sempre que posso, sinto saudades das pessoas, conto as histórias delas, de quem cuidei há muitos anos — as histórias estão vivas e isso ameniza um pouco a saudade.
Existem muitos tabus em relação à morte e aos cuidados paliativos na própria medicina?
Sim. Os médicos fazem parte da mesma cultura, não são seres que estão à parte. Se a cultura tem o preconceito, os médicos também têm — eles estão inseridos nesta cultura e são parte deste processo. Ao facto de aprendermos a curar doenças somamos a necessidade de sermos os heróis da história. O médico é todo-poderoso. Ele não vai aceitar que o paciente vai morrer. Fiz faculdade numa universidade considerada das melhores da América Latina, que tem muita força na ciência, e era quase uma vergonha aceitar que os meus pacientes morrem. Mas há doenças que não têm cura. A morte não é um fracasso, o abandono é fracasso. Dizer que não sei o que fazer é fracasso, isso é vergonha. Os médicos dizem “não há nada a fazer”. Se dizem isso é porque têm coisas a aprender. O cuidado paliativo é uma área da aprendizagem que não é oferecido à grande maioria dos médicos. A maior parte dos médicos não tem acesso a um conhecimento de qualidade em relação aos cuidados, em relação ao sofrimento.
Não chegam a conhecer essa fase?
Não, porque eles abandonam o paciente antes.
É por isso que escreve no livro que “a medicina é simples, a psicologia é que não”? A medicina foca-se muito na doença e pouco no doente?
O profissional de saúde que se relaciona com a doença tem muita dificuldade em avaliar o sofrimento do doente, porque ele quer relacionar-se com a doença e não com o doente. Ele relaciona-se com o processo de diagnóstico, com o processo terapêutico, com os exames e com os resultados do tratamento, mas olha para o paciente como se fosse um osso do ofício, porque o ofício é tratar da doença.
Sofremos com a perda quando não sabemos respeitar o vínculo. Se respeitamos o vínculo que temos com o paciente, então, cuidamos da pessoa e temos afeto por ela, não porque é o paciente, mas sim a pessoa. Se não tivermos medo desse vínculo, não vamos ter medo da perda, porque sei que tudo o que viver com aquela pessoa vai ter uma intensidade de valor para mim e para o outro. Se acontecer a doença da pessoa não ter cura e ela morrer, a pessoa torna-se inesquecível para nós porque cuidámos dela com o melhor que tínhamos ao nosso dispor — então, não há arrependimentos, não há vergonhas, não nos sentimos culpados, não achamos que podíamos fazer mais porque fizemos tudo. O respeito pelo vínculo tira-me esse sofrimento absurdo de perder o paciente.
Enquanto médica, respeita a morte mas não a contraria?
Não acelero a morte, mas também não a adio.
É esta uma perspetiva holística da vida?
Acredito que este estado de presença — quando se está diante de alguém que tem uma doença grave e nós estamos ali para ajudá-la a passar por isso com o menos sofrimento possível — já é, em si, algo muito gostoso de se fazer. Eu sei que vou entrar na vida da pessoa por uma porta que ela sempre quis manter fechada, a da doença, do sofrimento e da morte. Mas eu vou entrar e, quando entrar, não vou trazer o sofrimento e a morte porque isso já está na sua vida, eu vou ajudar aquela pessoa a passar por isso de uma maneira muito mais leve — consigo oferecer-lhe uma hipótese de ser feliz, mesmo que ela esteja a passar por isto. Isso não é um peso para mim, é um privilégio.
Acha que faz falta compaixão aos profissionais de saúde?
Faz muita falta até a auto-compaixão. Em primeiro lugar temos de ter auto-compaixão. Se reconhecermos que estamos a fazer o nosso melhor e que precisamos de cuidar de nós mesmos para conseguirmos cuidar do outro… A compaixão é esse sentimento de que o sofrimento existe; respeitamos o sofrimento e não achamos que ele é mais fácil ou mais difícil de ser vivido — não julgamos o sofrimento do outro com base na nossa experiência. Precisamos de saber o que fazer para ajudar a pessoa a passar por aquilo. A empatia paralisa-te, a compaixão gera atitude. Quando só sentimos e temos pena da pessoa, isso é muito triste, isso adoece-nos. Quando fazemos alguma coisa, isso liberta-nos, deixa-nos mais forte.
Pode haver beleza na morte?
A morte é muito, muito triste, não é uma alegria viver o dia da nossa morte. Mas ela tem uma beleza própria. Não é uma beleza mórbida, mas sim uma beleza que te traz uma sensação de pertença, é um ato humano. Costumo dizer que, quando cuidamos da morte de uma pessoa, ela sai pela porta da frente, embarcou na primeira classe… São expressões que costumo utilizar para esse momento. Quando a pessoa morre e todo o mundo que está à sua volta percebe que aquela missão foi cumprida, então, isso é belo de ver, isso é tocante, isso é intenso e nós sorrimos, mesmo que choremos.
Eutanásia. Ortotanásia e kalotanásia. O que prefere?
A kalotanásia é algo que todos deveriam acreditar que é possível viver: é a morte bela, a morte que faz sentido à sua existência, é o dia, a presença de quem se ama, o sentimento que experimentamos nos minutos finais, são experiências da sua humanidade, da sua história. É a morte bela. A ortotanásia é a morte correta, é a morte que acontece no tempo certo da história da sua doença — não se adia, nem se antecipa. É um termo técnico, a kalotanásia é um termo humano. A eutanásia é a morte antecipada, em que se decide o dia bom para morrer.
A que lhe faz mais sentido é a kalotanásia?
Sim, sem dúvida nenhuma.
E qual é a sua opinião sobre a eutanásia?
Respeito, porque não posso julgar o peso do fardo que não carrego. Se o paciente me diz que isto é insuportável, eu tenho de acreditar. Eu não faço a eutanásia porque acredito que a morte é a experiência humana mais intensa e sagrada que podemos experimentar. Acredito que a eutanásia sequestra-nos esse direito. Não é uma obrigação, mas é um direito. A morte é o ato extremo da entrega e, pela eutanásia, abrimos mão disso, queremos controlar. Acho isso um desperdício.
Mas há situações que serão profundamente difíceis…
Já tive a experiência de vários pacientes me pedirem a eutanásia. Não condeno. Peço uma hipótese. Pergunto há quanto tempo a pessoa está a sofrer: “Faz dois meses, faz três anos”. Pergunto o que mais a incomoda. “A dor, a falta de ar… a tristeza.” Faço um pedido: “Se já deu três meses para o sofrimento, dá-me três dias para usar tudo o que eu sei para poder avaliar a dor”. Só houve uma vez em que o paciente não melhorou e aí eu disse que não tinha como antecipar a morte, porque não faço isso, mas que posso deixá-lo inconsciente perante o sofrimento. É sedação paliativa. Ele aceitou. Ele tornou-se inconsciente ao sofrimento, como se tivesse morrido. Ainda viveu alguns dias a dormir.
Quais são os principais desafios de cuidar de pessoas no fim da vida?
Para mim, o principal desafio é mostrar-lhes que estão vivas, porque quando elas se apercebem que estão gravemente doentes acham que já estão mortas, que não têm nada para ser vivido. Às vezes, as famílias olham para as pessoas dessa forma. A primeira pessoa que olha para nós como se estivéssemos mortos é o nosso médico, quando vê o resultados dos exames. O maior desafio é mostrar para todos os envolvidos, inclusive para o paciente, que ele permanece vivo apesar de estar gravemente enfermo. O segundo desafio é fazer com que todos os envolvidos neste processo se comprometam num estado de presença sem julgamento, sem tirar o protagonismo das decisões do paciente. O terceiro desafio é a verdade, porque muitas pessoas acreditam que não podemos contar ao paciente que a situação é grave — não é preciso dizer que vai morrer daqui a 5 minutos, não é isso, mas é admitir que estão diante de um grande problema e, nessas circunstância, preciso de saber o que é mais importante para o paciente. Esse convite é um convite que às vezes as famílias não me deixam fazer — acham que se falar a verdade, as pessoas morrem de tristeza. Existem estudos que mostram que isso é muito raro acontecer.
Mas é possível morrer de tristeza?
A pessoa desiste da vida porque sabe que vai morrer. Há muita gente que acredita que isso é comum acontecer, mas não é. É como o exemplo que dou: hoje à noite vamos para uma festa maravilhosa, uma festa chique, em que vai ser servido um jantar maravilhoso, vai haver música linda e eu não te falo dela e vais assim, do jeito que estás, até pode comer uma sandes antes [e ir sem fome]. A pessoa vai estar diante um momento magnânimo da vida e não sabe que está nele. Então, perdemos a hipótese de nos prepararmos.
Como é que se ensina um paciente a aceitar a morte?
Penso que deveríamos começar a ensinar as pessoas antes de elas serem pacientes. Este livro… não é preciso ter-se cancro para ler o livro ou para ler sobre este assunto. É melhor que nos comecemos a preparar para perder porque a vida vai oferecer várias oportunidades de perda. Não estou só a falar de perda física, da morte concreta. Perdemos empregos, relações, sonhos, dinheiro… Só fazemos cursos sobre como ganhar. E quando perdemos achamos que fracassámos. Quantas coisas já perdemos e, passado algum tempo, pensámos “ainda bem”? A vida dá-nos oportunidades para aprendermos a perder. Nós é que não queremos.
Temos uma sociedade de conquista. É sempre a somar e, se calhar, é por isso que estamos sempre tão insatisfeitos…
Há sempre algo mais a ganhar. Se aprendermos que tudo o que temos, na verdade, não temos — porque são coisas que vamos perder –, aproveitamos mais. Há uns dias perguntaram-me o seguinte: se tivéssemos uma relação melhor com as perdas, teríamos uma relação melhor com a morte? Disse que não, disse que teríamos uma relação melhor com a vida. Assim, já não vamos achar que, só porque perdemos o emprego, a vida acabou. É chorar até começar a rir, é esgotar o sentimento da experiência. Não devemos negar a experiência, mas sim vivê-la. Se a emoção vem, cabe a nós aceitá-la como se fosse uma visitante, que se senta connosco, toma o café da manha, almoça e janta na nossa companhia. Quando fingimos que as emoções não existem, elas não se vão embora.
Quando foi a primeira vez que se cruzou com a morte?
A primeira grande perda que tive foi a minha avó. Por causa dela decidi fazer medicina, por causa do sofrimento dela. A minha avó morreu no dia em que me licenciei. Durante muito tempo senti-me fracassada por não ter conseguido cuidar dela, quando consegui formar-me para cuidar dela, ela morreu. Entendi que ela viveu para que eu fosse capaz de suportar tudo o que foi difícil com a faculdade — como eu era muito sensível não foi fácil. Ela deu-me de presente esse tempo da vida dela para que eu pudesse completar esta jornada.
Porque é que era tão difícil ser-se uma pessoa sensível na medicina?
Porque há o julgamento de que o médico que se emociona e é sensível é um médico mau, que não vai conseguir fazer o tratamento porque vai sofrer juntamente com o paciente.
Porque os médicos são vistos como “deuses da terra”?
Exatamente. Há um citação engraçada que diz que a diferença entre Deus e os médicos é que Deus sabe que não é médico. Essa perceção se omnipotência é algo que nos é ensinado na faculdade. Brinco a dizer que na faculdade entramos como humanos e saímos médicos.
Este livro foi lançado em 2016 no Brasil e chega agora a Portugal. Tem alguma noção de como são os cuidados paliativo em Portugal?
Na Europa existe uma perceção dos cuidados paliativos muito melhor do que no Brasil. Nos últimos oito anos, sensivelmente, o Brasil conseguiu chegar a um nível muito bom de perceção, mas ainda é insuficiente porque é um país muito grande… é um grande desafio para que todos tenham acesso. Mas estamos num processo bonito, de compreensão e de aprendizagem. As pessoas não querem falar sobre a morte… mas este livro tem duplicado de vendas a cada trimestre. Em vez de ter uma queda, ele sobe. Costumo dizer: pode ser que as pessoas não queiram falar sobre a morte, mas talvez queiram ler.
Tem medo da sua morte?
Neste momento não tenho medo da minha morte, mas quero ter o direito a ter medo. Preciso desse direito. Quero que nos meus tempos finais, se eu tiver com medo, alguém tenha coragem de estar ao meu lado e ficar comigo. Não quero que ninguém fique comigo e depois vá dizer “A doutora Ana, que falou a vida inteira da morte, agora está com medo da morte, que vergonha”. Se alguém me julgar por isso é porque não entendeu nada do que disse até hoje. Quero ter o direito a ter medo.
Desconfia que vai ter um certo fascínio quando chegar a sua vez?
O que sinto pela minha morte é uma curiosidade. Como será? Como será a minha kalotanásia? Como vai ser a minha experiência? Passei agora por uma experiência lúcida de dependência: parti o tornozelo e fiquei dependente durante um mês, sem estar doente. Foi uma experiência em que pude pôr em prática tudo o que eu digo às pessoas para fazerem e funciona, é magnífico. Recebi cuidados, aceitei dar trabalho. Decidi ser verdadeira nessa dependência. Houve momentos em que senti raiva: “Quando é que vou conseguir ir sozinha à casa de banho?”, “Quando é que vou conseguir pôr o pé no chão?”. Aí é preciso ter alguém que apenas nos abrace. Ninguém que diga ” isto vai passar”. O que interessa não é o futuro, é o agora. Foi uma experiência muito valiosa.
*Fotografias de Victor Moryama