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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Há quem caminhe horas para ajudar os afetados pelas cheias. Voluntários tentam compensar inação das autoridades em Valência

Milhares de voluntários organizados pelas redes sociais deslocam-se às zonas mais afetadas pelas cheias. Levam o que podem e fazem muitas críticas às autoridades, que já os tentaram travar.

São milhares de pessoas as que atravessam uma ponte sobre a V-30, uma via rápida na região de Valência, Espanha. Nas mãos levam pás, baldes, garrafões de água. Às costas, em mochilas, carregam comida, produtos de limpeza. Alguns andam mais de uma hora e não conhecem quem vão ajudar — pouco importa.

“Levo medicamentos e fruta, que é o que as pessoas me têm pedido. Ontem trouxe latas de conserva. Ah, e isto é perfeito para tirar a lama”, diz, erguendo um limpa vidros. Cristina Mansilla, 22 anos, caminha com nove amigos em direção à zona zero do temporal que provavelmente provocou as inundações mais graves deste século em todo o continente europeu.

Há três dias que este grupo de amigos faz o mesmo percurso. Estacionam o carro e prosseguem a passo durante cerca de uma hora por vias e estradas cortadas ao trânsito. “Vamos até Paiporta. Ontem estivemos sete pessoas para esvaziar a casa de uma senhora, mas há milhares. É preciso muita ajuda. Hoje vamos ver se a mesma senhora ainda precisa de ajuda, se não vamos a outro lado.”

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“É um tema muito delicado, mas… Não tenho visto gente. As ruas estão abarrotadas de carros. Chegas e não sabes por onde começar. Há tantos carros, tanta coisa. É difícil sobretudo para as pessoas mais velhas, mais vulneráveis.”

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O amigo, de pá ao ombro, continua: “Quando falas com alguém, a primeira coisa que fazem é chorar. Sabes que precisam de ajuda”. Álvaro Felguera, 21 anos, não tem dúvidas: “Somos poucos para o que é preciso. Que se chame o exército a sério. 500 não são nada.”

São sobretudo jovens os que caminham em direção às povoações mais afetadas pela tempestade — que já matou pelo menos 211 pessoas, segundo os dados mais recentes. Organizam-se pelas redes sociais, em grupos no WhatsApp, Telegram ou Facebook.

A resposta massiva emociona Rosa Colombo, 67 anos, que a um ritmo mais lento vai empurrando o seu carrinho de compras. O marido vai uns metros à frente. “Temos uns amigos em Picanya e levamos-lhes algumas coisas, uma sopa, pão. Vamos ajudar no que pudermos a tirar a lama.” Sorri quando percebe que fala com jornalistas portugueses. Explica que a sobrinha trabalha em Lisboa a monitorizar conteúdos no TikTok.

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Tem a mesma idade dos que a vão ultrapassando, quase todos em grupos. “Vejo tanta juventude que me impressiona muito. Dá-me muita vontade de chorar ver tudo isto”, comenta, de olhos marejados. “A juventude que temos é uma maravilha. Uma maravilha. Eu sei que posso fazer pouco, mas com um baguinho de todos… faz-se um arroz. Mas ponha no jornal o que os jovens estão a fazer. Viva esta juventude!”

As gargalhadas misturam-se com o som das rodas sobre o alcatrão: há carrinhos de mão, de compras e malas de viagem cheias de enlatados, comida, pão, água. Homens, sobretudo, transportam garrafões, bidões de água. Alguns já o fazem há vários dias, percebe-se pelas pás e vassouras com restos de lama.

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“Tenho bolhas nos pés, mas seguimos”, diz uma jovem com entusiasmo. “Viste os números de desaparecidos?”, pergunta outra. O governo não confirma os números avançados pela imprensa espanhola, citando um documento da reunião com o gabinete de crise esta sexta feira.

Maria destaca-se por ser das poucas que caminha sozinha. A enfermeira de 29 anos vai ter com a família a uma povoação próxima. “No hospital ainda não nos chamaram para nada”, nota. Com as mãos livres, vai pouco carregada. “Pelo menos nesta zona, comida têm. O que precisam é de ajuda.”

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Um grupo de rapazes faz uma pausa para esticar fita cola preta e envolver os tornozelos com ela. Entre os sacos de plástico que têm nos pés e as calças que vestem não entrará água, asseguram. “Isto parece os Caminhos de Santiago”, lança um.

Tal como os peregrinos até Compostela, também estes por fim chegam ao destino. Picanya é, este sábado, uma cidade ocupada por voluntários. “É-nos indiferente que seja conhecido ou desconhecido. Viemos para ajudar.” Elena, 49 anos, veio com nove pessoas a pé desde Valência. Usa uma máscara respiratória. “As águas estão estagnadas desde terça. Todos devíamos estar a usar máscaras. Pode haver bactérias, vírus, infeções. O melhor é estarmos prevenidos, para evitar mais problemas.” Este sábado, 19 voluntários ficaram intoxicados por monóxido de carbono durante a limpeza de uma garagem em Chiva.

“Vai ser preciso passar um pouco de tempo para que [as autoridades] pensem bem na gestão que fizeram”, diz. “Conheço pessoas que estão na zona zero, em Paiporta, e que não chegou ninguém a ajudar além de voluntários. Creio que o que querem é evitar perigo. Mas, no final, quem está na rua? Se não são os voluntários quem está?”

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Nos portões de uma moradia em Picanya há várias mochilas penduradas. São 12 pessoas que, numa dança coordenada, despejam bacias de lama da garagem para a rua. Não se conhecem, mas juntaram-se através de um grupo de WhatsApp. “Se não viéssemos, vinha ele? [Carlos Mazón, Presidente da Generalidade Valenciana] Aqui não há ninguém. Fazem falta escavadoras para tirar toda esta água, falta maquinaria pesada. Nós podemos ajudar numa casa, uma garagem, mas na rua. Não se pode fazer nada sem vir alguém que tire todos os escombros. Faz falta muito mais gente, muitos mais voluntários, muito mais tudo. É um desastre.”

As palavras de revolta são de Lucia Piqueras. Tem o cabelo curto e uma medalha de prata ao pescoço que diz “mami” (“mamã”). Os dois filhos pequenos são o que preocupa uma outra mãe na casa ao lado. “O pequeno parece que não, mas também sofre. Foi o Covid e depois isto”, diz ao Observador, no meio dos destroços do primeiro piso da moradia onde a lama foi até ao teto. “O mais importante é vida. Nem quero imaginar o que seja perder alguém. Mas e agora o quê? Agora é preciso limpar.”

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Generalitat pede aos voluntários que “voltem amanhã”

A demonstração massiva de solidariedade em Valência trouxe um pouco de esperança no meio da devastação causada por aquele que se prevê ser o desastre climático mais mortal a atingir o país na história recente. Mas perante a quantidade de pessoas que oferecia a sua ajuda para colaborar em tarefas de limpeza e logística das zonas afetadas, o governo da província de Valência agradeceu, mas disse que a presença de voluntários podia “obstruir os trabalhos dos serviços de emergência”.

Nem 24 horas depois, a Generalitat voltava atrás, pondo em marcha um centro de coordenação de voluntariado, em colaboração com a Plataforma del Voluntariado de la Comunitat Valenciana. De forma a organizar os grupos de trabalho “de forma eficiente e planificada”, os voluntários seriam concentrados na Ciutat de les Arts y Ciências para serem distribuídos adequadamente em autocarros em direção as povoações em que se estão a realizar tarefas de limpeza, informou o governo de Carlos Mazón.

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A resposta da população foi clara: na manhã deste sábado, 10 mil pessoas responderam ao apelo, em filas sem fim. Lorena chegou com o pai, o namorado e um amigo, por volta das 8h30 da manhã, mas a enchente de gente era tal que só conseguiram entrar num autocarro às 12h30. Partiram para o Centro Comercial Bonaire, o ponto de encontro para começar a dividir os voluntários por zonas. Quando lá chegaram, já perto das 13h, mal queriam acreditar no que lhes era dito. “Esperámos dentro do autocarro, acabaram a dizer-nos que não fazíamos falta em nenhum sítio e trouxeram-nos de volta a Valência”, conta a jovem de 23 anos ao Observador. “Levávamos alimentos e voltamos a trazê-los”, recorda, ainda estupefacta.

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“Havia muita indignação com a situação no autocarro, muitos gritos, muitas perguntas sobre o que se ia fazer com estes alimentos”, continua o colega que a acompanha. “E no final ninguém sabe nada, absolutamente nada. No nosso caso, não nos deram nenhuma informação do tipo de trabalho que íamos fazer. É caótico”, lamenta. “Houve gente que saiu do autocarro e que continuou a pé por sua conta.”

De galochas limpas e roupas lavadas, os jovens frustrados contam o que veem nos grupos de WhatsApp: “Aparentemente havia muito má comunicação e gestão dos grupos desde o princípio. Foi o que fez com que muita gente acabasse enfurecida.”

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Perante a resposta da organização (“voltem amanhã”), os amigos admitem: “Esperemos que que amanhã seja melhor. Supõem-se que venha menos gente e que seja mais fácil de gerir”, arrisca Lorena. Mas para ali não voltarão. “Pensámos que iríamos mais longe, por causa do autocarro. Mas amanhã tentaremos ir sozinhos.”

Várias horas mais tarde, o centro de voluntários foi praticamente desmantelado, e poucas pessoas se veem. Uma carrinha é descarregada por um grupo de gente com coletes do banco alimentar. Questionados pelo Observador, dizem não saber de onde vêm nem para onde vão os alimentos. Responsáveis? “Não está aqui ninguém”, respondem.

“Não estou de acordo”, repete Lorena. “Não estive nas povoações porque não pude lá chegar, mas quero muito ir. Temos amigos afetados e queremos ajudá-los, mas sinto que não me estão a deixar.”

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