Quando há uma greve ou bloqueio dos camionistas o cenário repete-se. O aeroporto de Lisboa, uma das principais infraestruturas do país que devia estar bem preparada para enfrentar crises, é o primeiro a sofrer os impactos. Agora bastou um dia para que a ANA alertasse para o risco de “disrupções” na operação por causa da interrupção no abastecimento de fuel.
Basta uma rápida consulta pelos sites dos aeroportos das principais capitais europeias para perceber que a situação de Lisboa é uma exceção que revela uma “grande fragilidade” desta infraestrutura como notou o secretário-geral da APETRO (Associação das Empresas Petrolíferas). António Comprido relaciona essa falha com a incerteza que durante décadas rodeou o novo aeroporto de Lisboa, e que serviu de obstáculo à iniciativa privada para avançar com um investimento significativo sem saber quantos anos teria para o recuperar.
Mas essa “fragilidade” é mais difícil de compreender quando desde 2015 está prevista a manutenção do atual aeroporto durante pelo menos por mais umas décadas. E só agora confrontada com mais uma crise de abastecimento é que a ANA veio a público defender, em resposta ao Observador que a construção de um pipeline deve ser ponderada, num futuro próximo, mas atira a competência para as empresas petrolíferas que abastecem o Humberto Delgado.
ANA defende que petrolíferas devem ponderar projeto de oleoduto para aeroporto de Lisboa
Mas se os privados consideravam até agora que não existiam garantias suficientes para a avançar, o que têm feito os governos? Há algumas hipóteses que já foram equacionadas, mas não se conhecem estudos sérios e aprofundado para avançarem no curto prazo. E pela informação recolhida pelo Observador esses estudos fundamentados não foram feitos. E se foram, não tiveram a intervenção da principal empresa de logística de combustíveis, a CLC, que gere o Parque de Aveiras, pelo menos até 2017, segundo confirmou ao Observador o ex-administrador delegado da CLC. José Sepodes esteve na liderança da CLC entre 2006 e 2017 e diz que nesse período os governos nunca mostraram interesse junto da administração da empresa em desenvolver o tema. A CLC também não foi abordada pela concessionária dos aeroportos.
Hipóteses de ligação por pipeline ao aeroporto Humberto Delgado
![](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:1280:720/c:1280:720:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2019/04/18200206/pipeline-01.jpg)
▲ Este mapa foi elaborado pelo Observador com base em informações recolhidas junto de várias fontes
Iniciativa devia partir do Governo. “Está em causa interesse nacional”, diz ex-líder da CLC
A vulnerabilidade do abastecimento ao aeroporto só chega à discussão pública quando os problemas rebentam. Foi assim em 2008 depois do bloqueio contra o aumento do preço do petróleo. Na altura, o Governo — então era ministro das Obras Públicas, Mário Lino, admitiu estudar esse cenário. Mas estava no horizonte um novo aeroporto para substituir a Portela.
A CLC chegou a estudar sim, as ligações por pipeline para os projetos de novos aeroportos na Ota, onde a ligação a Aveiras seria curta e fácil de fazer, e no Campo de Tiro de Alcochete, que seria abastecido através de um bypass do pipeline para jetfuel, uma solução que seria muito mais fácil do que chegar à Portela, mas o projeto caiu quando o novo aeroporto foi congelado com a crise e assistência financeira.
Para o antigo administrador-delegado da principal empresa de logística de combustíveis, a necessidade de um abastecimento mais seguro deveria ter sido suscitado pelos Governos. A discussão não pode ficar apenas do lado dos privados “porque está em causa um tema de interesse nacional e de segurança de abastecimento”. E não apenas por causa do efeito de greves como esta. O que se faz se acontecer um acidente que paralise a CLC? Humberto Delgado está completamente dependente do parque de Aveiras.
![](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:1280:720/c:1280:720:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2019/04/18175311/26048652_1280x720_acf_cropped.jpg)
▲ Abastecimento de camiões tanque em Aveiras
CARLOS BARROSO/LUSA
O ex-administrador-delegado diz que todos os dias saem de Aveiras entre 80 a 120 camiões, em picos de procura, até Portela. Um número inferior aos 180 camiões diários referidos pelo ex-presidente do regulador dos combustíveis, Paulo Carmona. Ainda assim e com 30 mil litros por camião, estamos a falar de mais de 3,5 milhões de litros de jetfuel, um combustível que em Portugal ultrapassa as vendas da gasolina.
José Sepodes defende a criação de uma comissão da iniciativa do Governo que envolva várias entidades para estudar o problema e apresentar propostas fundamentadas. Apesar de concordar com a importância de o aeroporto ser fornecido por oleoduto a partir da CLC, hipótese que chegou a ser considerada nos anos 90, o ex-administrador-delegado da empresa alerta também para a dificuldade de execução” de um pipeline de mais de 30 quilómetros que atravessaria uma zona de grande ocupação do território e densamente povoada. Uma alternativa seria usar os corredores já abertos para infraestruturas como a autoestrada A1 que passa ao lado de Aveiras ou a Linha do Norte.
Pipeline da margem Sul seria mais caro e demorará tempo
E a proposta de abastecer o aeroporto através da margem Sul? Esta semana voltou à discussão uma ideia apresentada inicialmente em 2014 pelo então presidente da entidade pública que gere as reservas estratégicas, atualmente chamada de ENSE (Entidade Nacional para o Setor Energético). Paulo Carmona relembrou a vários órgãos de comunicação, incluindo o Observador, o projeto que chegou a discutir com algumas pessoas no Governo e que passaria por reaproveitar infraestruturas desativadas da NATO na margem Sul, incluindo armazenagem e um oleoduto.
Estas infraestruturas, localizadas na Trafaria, poderiam ser reabilitadas para abastecer o novo aeroporto complementar do Montijo. E mais. Segundo Paulo Carmona poderia atravessar o Tejo e assegurar também o abastecimento via pipeline da Portela, através da Av. Marechal Craveiro Lopes. E até foram alguns passos nesse sentido com um despacho em 2016 do então secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello, a concessionar estas instalações à entidade dos combustíveis que na altura se chamava ENMC.
O ex-presidente da ENMC defendeu que este projeto não seria exigiria grandes recursos financeiros, o valor de referência seria até 10 milhões de euros. Paulo Carmona diz que a ideia estava a ser trabalhada dentro da entidade quando abandonou a presidência da então ENMC no final de 2016. Mas pela informação recolhida o projeto nunca terá sido estudado de forma aprofundada ou fundamentada.
![](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:1280:720/c:1280:720:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2019/04/18175737/72976742_1280x720_acf_cropped.jpg)
▲ O oleoduto que liga a refinaria de Sines a Aveiras é mulitiproduto, tem um pipeline para cada combustível produzido e assegura cerca de 30% a 40% do consumo nacional
Getty Images
José Sepodes, que em 2016 ainda era administrador-delegado da CLC, teve conhecimento desta hipótese. Apesar de a empresa não ter sido consultada sobre o tema, considera que este cenário deve ser estudado para abastecer a Portela, até porque, a necessidade de atravessar o Tejo não é necessariamente impeditiva. “O pipeline que liga Sines a Aveiras, numa extensão de 147 quilómetros, também atravessou os rios Sado e Tejo, passando por baixo dos leitos”.
No entanto, custaria tempo e dinheiro. E muito mais do que os 10 milhões de euros avançados pelo ex-presidente da ENMC, admite o antigo líder da CLC, para quem o valor de 50 milhões de euros como referência faz mais sentido.
Para além da necessidade de reabilitar os oleodutos do lado de Cabo Ruivo, e também na margem Sul, será necessário atravessar uma zona e sensível muito ocupada da cidade de Lisboa — o eixo da Av. Marechal Craveiro Lopes — para chegar até à Portela. “Seria mais caro e depois há o tempo que demora a fazer. Pelo menos três anos”, entre estudos, projeto e construção.
As três hipóteses para fazer o oleoduto
Mas se já está decidido que Humberto Delgado vai ficar durante muitos anos ainda na Portela, como aliás assume a ANA, faz sentido avaliar de forma séria, e pela primeira vez, as opções que existem para libertar o aeroporto da dependência do transporte rodoviário. E para José Sepodes há pelo menos três hipóteses, embora admite mais.
- Construção de um novo pipeline para levar o fuel do parque de Aveiras até à Portela, numa extensão de mais de 30 quilómetros. Para além da distância, a concretização desta solução seria dificultada pelo elevado nível ocupação do território atravessado.
- Utilização das infraestruturas desativadas da NATO na margem Sul que chegariam ao Montijo e daí atravessariam o Tejo para chegar a Cabo Ruivo e seguirem até à Portela. A necessidade de reabilitar oleodutos, a travessia do rio na zona do estuário e o atravessamento de uma área sensível em Lisboa, poderiam ser obstáculos.
- Adotar para a Portela a solução que foi estudada para o Campo de Tiro de Alcochete. Fazer um desvio no oeloduto que transporte jetfuel a partir da refinaria de Sines antes de chegar a Aveiras e num ponto de maior proximidade do atual aeroporto para reduzir a extensão da nova infraestrutura. No entanto, José Sepodes considera que a localização do Campo de Tiro de Alcochete é muito mais favorável para ligar ao pipeline porque se situa a poucos quilómetros desta infraestrutura. “Do ponto de vista do abastecimento por pipeline, esta localização seria muito mais fácil, barata e segura do que a Portela. Mas o Governo já afastou este cenário, quando aprovou a opção Portela mais Montijo, ainda que condicionada ao estudo de impacte ambiental que está para análise da APA (Agência Portuguesa do Ambiente).
![](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:1280:720/c:1280:720:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2019/04/18180017/1q9a8731_1280x720_acf_cropped.jpg)
▲ Pedro Marques, ex-ministro das Infraestruturas, António Costa, e Nicolas Notebaert da Vinci este ano na assinatura do acordo para o aeroporto
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Como chegamos até aqui?
Até ao início da década, a existência de decisões políticas que apontavam para a construção de um novo aeroporto que iria substituir a Portela ajuda a explicar o desinteresse das petrolíferas no projeto. Aliás o argumento do fim da Portela justificou durante anos a não existência de uma ligação de metro ao aeroporto, que só foi feita na década passada e pelo percurso mais longo possível. Mas a partir de 2015, ainda no tempo do anterior Governo, ficou consolidada a opção da Portela mais um, que passa por manter o atual aeroporto apoiado por estrutura complementar no Montijo, aceitando a proposta apresentada pela dona privada da ANA, o grupo francês Vinci que comprou a empresa em 2013.
E já no início deste ano, o Governo assinou um acordo com a dona da concessionária dos aeroportos, a Vinci, para implementar esta solução que prevê a expansão da capacidade aeroportuária do Humberto Delgado e manutenção desta infraestrutura durante várias décadas. Mas pela informação apresentada sobre o projeto e recolhida pelo Observador, esse projeto não contempla a construção de um pipeline para abastecer o atual aeroporto.
Na sequência da crise energética que afetou logo o aeroporto de Lisboa, o Observador contactou o Ministério das Infraestruturas, a ANA e a Galp, a petrolífera que é a maior acionista da Companhia Logística de Combustíveis, sobre a existência de estudos ou interesse em avaliar agora a construção desta infraestrutura. Até quinta-feira, apenas a concessionária do aeroporto respondeu:
“Pelo facto de, agora, haver maior clareza sobre o futuro do Aeroporto Humberto Delgado, acreditamos que a distribuição e o abastecimento de combustível por pipelines, poderá ser um investimento ponderado pelas empresas do sector petrolífero, que é quem tem competência e intervenção nesta área. A ANA Aeroportos de Portugal gostaria que este projeto fosse considerado num futuro próximo”. Um interesse publicamente manifestado mais de 20 anos depois de ter sido desativado o oleoduto que assegurava o abastecimento à Portela a partir da Matinha para dar lugar à Expo 98.