Passemos à frente da perplexidade óbvia. Há, provavelmente, duas razões muito sólidas para que nos seja difícil aceitar que Harrison Ford tenha acabado de fazer 80 anos (nasceu a 13 de julho de 1942). A primeira é que a maioria de nós já o começou a ver tarde. Tinha 39 anos quando vestiu, pela primeira vez, a pele (e o chapéu) de Indiana Jones. Um pouco antes, aos 35, fora já Han Solo, mas notem como já não era o miúdo do filme. O príncipe, a nova geração, era Mark Hammill; a princesa (literalmente), Carrie Fischer. Ford era como a sua nave: batido, vivido, já lá tinha estado e feito coisas.
A partir daqui, alguns poderão ter feito o exercício de o ir procurar em “American Graffiti” também de Lucas, ou nas discretas aparições nos filmes de Coppola “O Vigilante” e “Apocalipse Now”. Mas Ford nunca foi um Tom Cruise ou um DiCaprio. Nunca foi o miúdo. Não cresceu no ecrã. Foi sempre o homem feito. As suas personagens não estavam lá para aprenderem ou dececionarem-se, para o deslumbre ou a perdição. Ele guia a ação; jamais o contrário. E isso, a falta da transmutação que é o golpe de magia que eternamente nos há-de conquistar nas histórias, poderá tê-lo prejudicado na hora de receber um Óscar – que nunca chegou. Mas como ele disse a propósito: “I’ll be OK.”
A segunda razão é que talvez tenhamos de aceitar que há tipos realmente diferentes. Harrison Ford não é exatamente a figura que temos em mente quando pensamos em octogenários. E não se pode propriamente dizer que esteja cheio de plásticas ou tenha levado uma vida muito cuidada. Pelo contrário. Foi sempre daquelas raras estrelas que quis fazer o maior número possível das suas cenas de ação. Partiu (e continua a partir), tornozelos, dentes, queixo, pélvis, em cena e fora dela. É piloto de aviões – voa regularmente entre o rancho no Wyoming e Nova Iorque (tem casa em TriBeCa, o mesmo bairro da escola de De Niro) – e não é um passatempo de menino rico a que se dedicou depois de ter tempo e dinheiro; fá-lo desde os anos 60, antes de conseguir sequer um papel fixo no elenco de uma série de televisão, que era o então o grande objetivo da sua vida. Comentou, uma vez, que, se não fizesse as suas próprias cenas de ação em Indiana Jones, lhe restaria muito pouco para fazer. Na rodagem de “E o Templo Perdido”, gelou a equipa quando decidiu ir ele próprio testar a ponte de corda, antes de sequer do pessoal dos cenários. “O que é que eu posso dizer?”, comentou Steven Spielberg na altura, “ele É o Indiana Jones.” Com a vantagem de, na realidade, nem sequer ter medo de cobras.
Há muitas coisas curiosas quando olhamos para a carreira de Harrison Ford. A quantidade de filmes dos comercialmente mais bem-sucedidos da história em que entrou. A quantidade de filmes considerados património cultural para a Biblioteca do Congresso. A quantidade de vezes em que repetiu realizadores – e sempre grandes realizadores (é, até hoje, o único actor a ter trabalhado com o trio mágico Lucas-Coppola-Spielberg, repetiu também com Peter Weir, Alan J. Pakula, Mike Nichols, Sidney Pollack. E, entre aqueles com quem só colaborou uma vez, quase tudo também primeira classe: Ridley Scott, Kathryn Bigelow, Roman Polanski. Não entrou num mau filme em 50 anos de carreira. Entrou nalguns – poucos – assim-assim, e todos de meados de 90 para cá.
Mas talvez o aspeto mais singular da carreira de Harrison Ford seja notar como ela poderia, simplesmente, nunca ter acontecido – ou, por outro lado, pareça tão destinada, desde o início, a acontecer.
Depois das primeiras aparições fugazes em filmes obscuros e episódios de séries de televisão, Harrison Ford, filho de uma atriz de radionovelas e de um ator que, depois, se virou para o então florescente negócio da publicidade, começou a duvidar de que, alguma vez, viesse a conseguir fazer vida naquele ramo. Então, tornou-se carpinteiro – e dizem que dos bons. E há qualquer coisa – arriscaríamos dizer – da verdade desse homem que põe as mãos na massa, como Daniel Day-Lewis com a atividade de sapateiro, na razão do sucesso de todo o seu trabalho de ator.
É “American Graffiti”, em 73, que desbloqueia a vida que aguardava Harrison Ford. George Lucas leva-o para o casting de “Guerra das Estrelas” apenas para dar a contracena aos atores candidatos e acaba a perceber que não tem como não lhe entregar o papel de Han Solo. E o resto é história. Não era para ser Indiana Jones porque Lucas não queria fazer deles o “seu De Niro” (referindo-se ao fétiche de Scorsese), mas aqui teve de ser Spielberg a fazê-lo ver o óbvio e a entregar-lhe o papel seis semanas antes do começo da rodagem. Como é possível? Mas, se nos diz alguma coisa, é uma dessas mensagens de livro de auto-ajuda, com a vantagem de Ford estar aí para provar que é testada e verdadeira: não desistas ao primeiro não, nem ao segundo, nem ao terceiro. Mesmo quando se trata de ser “o tal”, de ter o “fator x”, a “star quality”, talvez até de se ser o amor da vida de, claramente não, a coisa não tem de acontecer necessariamente logo. A verdade não é apenas um raio fulminante. Também é como a noite ou o dia que cai lentamente ou se levanta sobre nós.
A sequência de filmes nos anos 80, quase à razão de um por ano, é impressionante de imaculada. 1980: “O Império Contra-Ataca”. 81: “Os Salteadores da Arca Perdida”. 82: “Blade Runner”. 83: “O Regresso de Jedi”. 84: “Indiana Jones e o Templo Perdido”. 85: “A Testemunha”. 86: “A Costa do Mosquito”. 88: “Frenético” e “Uma Mulher de Sucesso” (a primeira vez em que era incrível). 89: “Indiana Jones e a Grande Cruzada”. E seguiria, entrando pela década seguinte com “Presumível Inocente”, o comovente “O Regresso de Henry”, “O Fugitivo”, “Sabrina” e até a permitir-se dar uma segunda oportunidade a Jack Ryan, que recusara anos antes em “Caça ao Outubro Vermelho”, dando-lhe vida em “Jogos de Poder” e “Perigo Imediato”, antes de o deixar de novo desocupado, porventura no único caso de personagem “serial” que, não sendo um fracasso, também não lhe garantiria por si só um lugar na história.
Dito isto tudo, aquilo de que queríamos falar era de outra coisa. Era de como Harrison Ford nos resolveu desde cedo o problema daquelas perguntas muito óbvias: “Ai, gostas de cinema? Quem é o teu ator preferido?” “Gostas de ler? Quem é o teu escritor preferido?” “Gostas de sumo de laranja? Qual é a tua marca de espremedores de citrinos preferida?” Enfim, como se gostar muito de determinado assunto não quisesse dizer, provavelmente, o contrário; que, dentro desse assunto, conhecemos muita coisa, gostamos de muita coisa, temos muitos “preferidos” e, portanto, que vamos fazer figura de idiotas e gaguejar na resposta, parecendo que na verdade sabemos muito menos do tema em questão do que o inquiridor, que logo dispara o nome do preferido dele, uma escolha qualquer óbvia, que, mesmo assim, chega para nos derrotar.
Na música, na literatura, nos lugares, nas cores – talvez até nos espremedores de citrinos – nunca tivemos, enquanto crescíamos, uma resposta pronta, firme, única, exceto talvez nesta: quem é o teu ator preferido? Harrison Ford, é claro. Próxima…
Porquê? Bom, não foi só por ele ter, como vimos, protagonizado um filme por ano, todos os anos, enquanto crescíamos; foi a forma como o fez. Como ele foi essas personagens.
Harrison Ford tem aquela rara característica de um Cary Grant ou de um Gregory Peck (não por acaso os seus atores preferidos). Uma integridade qualquer. Uma credibilidade. Essa verdade de carpinteiro que parece trazer algo mais do que outras verdades. Uma ética. Uma sobriedade. Ele não era o puto em que nos pudéssemos rever. Não era o herói de ação mais corajoso e capaz dos golpes mais incríveis. Não era o menino bonito que conquistava todas as raparigas. Não tem, em nenhum dos seus filmes, super-poderes – a não ser essa verdade confiável. Harrison Ford nunca fez de nós; nunca fez de deus impossível do Olimpo; fez sempre de alguém excelente, mas possível. Referência moral, padrão, bitola, bússola. O herói formidável que, um dia, também morrerá.
Filmes preferidos? Personagens preferidas? Lá vêm as perguntas difíceis. Fiquemos com estes três flashes. A descobrir o graal da mesma verdade de outro carpinteiro célebre no final de “A Grande Cruzada”. Com Anette Bening, a tentar reaprender a intimidade e o amor depois das graves lesões cerebrais causadas por uma bala em “Regarding Henry”. Sem dizer nada, cedendo todo o protagonismo do filme, servindo a cena, assombrado, deslumbrado, impotente e, ao mesmo tempo, o eleito, ouvindo o discurso final de Rutger Hauer em “Blade Runner”.
Muitos parabéns, sr. Ford. A vida teria sido tão diferente sem si.