Este artigo foi publicado originalmente em maio de 2023 e é agora recuperado na sequência da morte de Henry Kissinger.
É difícil não nos deixarmos fascinar por Henry Kissinger. Um daqueles fascínios culpados e magnéticos por esta estranha figura com uma frieza que não quadra com uma ambição burlesca de tão óbvia, com um escopo intelectual larguíssimo, mas vulnerável às maiores mundanidades, sempre à procura de uma solução original, tão próximo do desastre e do grande êxito.
Kissinger (nascido a 27 de maio de 1923 em Fürth, na Alemanha) é um filho da segunda guerra, mais um dos judeus alemães que atravessaram o Atlântico para escaparem à perseguição nazi e encontraram nos Estados Unidos um mundo que os absorveu e os engrandeceu como nunca na Europa poderia acontecer. Kissinger, que não era propriamente um herdeiro magnata, entrou na América nos tempos de liceu, passou da escola à tropa e da tropa, num daqueles encontros fortuitos que abrilhantam o sonho americano, ao mundo académico. Aos vinte e poucos anos entregava em Harvard uma tese monumental sobre o significado da História, seguido daquela que se tornou a sua primeira obra publicada, cheia de pistas para o seu pensamento que só passados estes anos podem ser verdadeiramente percebidas: Um mundo reconstruído: Metternich, Castlereagh e os problemas da paz (1957).
Kissinger podia ser mais um académico erudito, mesmo que Harvard facilitasse a sua integração nos programas de governo. Não escasseiam os teóricos das relações internacionais discretos que tiveram passagens pelo governo americano, quer em serviços de consultoria, quer em organismos mais permanentes; Kissinger, no entanto, não só procura sempre alargar o a influência e o poder dos seus projetos – é o caso do OCB, que Kissinger transformou, de um órgão marginal dentro do Conselho Nacional de Segurança, numa organização até problemática de tão influente – como deixa transparecer uma vontade de se dar com gente influente e um inegável fascínio pelo poder. Os seus anos como diretor do Seminário Internacional de Harvard mostram isso mesmo: um Kissinger diplomata, sempre à procura de alargar a sua influência, de um modo que o tornará, anos depois, tão polémico quanto essencial para Nixon.
A entrada de Kissinger na vida política partidária dá-se pela mão de Nelson Rockefeller, o republicano moderado que governou Nova Iorque e chegou a vice-presidente dos EUA durante a presidência de Ford. Kissinger trabalhava já há uns anos para o Rockefeller Brothers Fund, pelo que quando Nelson Rockefeller se decide candidatar à primárias republicanas – coisa que aconteceu várias vezes – Kissinger é um conselheiro natural. Esta aliança com Rockefeller experimentá-lo-á dentro das estruturas do GOP e abrirá o caminho para a sua entrada no governo de Nixon.
Muito se tem escrito, já, sobre a relação entre Nixon e Kissinger. O americano típico e o cidadão do mundo, o básico e o cínico, o direto e o oblíquo, o cultivado e sofisticado professor de Harvard, conselheiro do bem-pensante Nelson Rockefeller, junto do obstinado, insensato e provinciano Nixon. Que seria a prova da ambição de Kissinger, da sua falta de escrúpulos, até de uma hipocrisia que se manifestaria nos círculos intelectuais, em que Nixon seria um dos alvos preferidos de chacota de Kissinger. A verdade é que Kissinger encontrou em Nixon um presidente que lhe deu um poder que poucos Secretários de Estado tiveram na história. Antes do Watergate, Kissinger sai do governo como o arquiteto da aproximação à China, do pouco duradouro cessar-fogo no Vietname, da contenção da ameaça comunista em boa parte da América do Sul, entre tantas outras coisas. Todas elas serão certamente controversas, mas uma coisa é certa: para todos os problemas, Kissinger é capaz de encontrar soluções criativas (mesmo que muitas vezes desastrosas) e de as enquadrar num quadro estratégico mais vasto, que dota a sua política externa de um cunho indubitavelmente pessoal. Poucas vezes a política externa americana foi tanto de um secretário de Estado como a de Nixon foi de Kissinger.
É preciso conter a União Soviética? Kissinger volta à sua tese do equilíbrio de poder e reforça a China, numa jogada indireta que recria o tabuleiro europeu saído de Viena. É preciso conter a expansão do comunismo em África? Reforçam-se os laços com a Rodésia, mesmo que moralmente a América repudie Ian Smith. É verdade que Kissinger atropela uns aliados – como no caso do Vietname – e deixa cair outros – como no caso português, que serviria como a famosa “vacina” anti-comunista capaz de proteger o sul da Europa – sem grandes escrúpulos e com uma frieza quase amoral; no entanto, também é verdade que todas as suas práticas podem ser reconduzidas a um modo mais alargado de pensar o mundo e Kissinger foi, como poucos, capaz de explicar esse modo de pensar o mundo.
É por isso que, embora a intervenção política de Kissinger não possa de maneira nenhuma ser ignorada, nos interessa sobretudo explorar o seu pensamento. Mais: embora a ação de Kissinger se vá formando com a prática e seja sempre reconduzível a um grande quadro de pensamento, está também refém de alguns óbvios defeitos de personalidade que conduziram a desastres quer de imagem – como na famosa entrevista a Oriana Fallaci – quer bélicos, como no caso do Camboja, em que a sua subserviência ficou também à vista.
O pensamento de Kissinger tem uma coerência e uma grandeza em certa medida inesperada. Os equilíbrios de poder que estudou no princípio da sua carreira estarão presentes no modo como encara a guerra fria e em toda a sua teoria das relações internacionais. A ideia de que a Europa de Metternich consegue a paz através, não de uma irmandade ideológica ou de um domínio de uma ideia sobre outras, mas da coexistência baseada na consciência de que nenhum poder teria forças para se sobrepor a todos os outros, tem uma óbvia ressonância quer na ideia de que é possível manter uma guerra fria com a sua política de détente, quer na ideia de que é necessário acrescentar um poder à equação – no caso, a China – para evitar um conflito aberto.
O que é interessante, porém, é que esta ideia do equilíbrio de poder choca, na perspetiva do próprio Kissinger, se não com a política externa americana desse Monroe, pelo menos desde Wilson. A legitimidade da ação externa americana está tradicionalmente escorada, não numa qualquer diuturnidade de poder, não num poder fáctico – aquele poder que existe e que é entendido como tal, não importa se é justo ou não – mas numa ideia de liberdade como um valor que deve ser garantido e que não pode ser ameaçado nos Estados Unidos.
Ora, um dos pontos mais interessantes do seu livro Diplomacia (1994) está no modo como Kissinger consegue mostrar que esta ideia pode ser torcida de maneiras suficientes a ponto de significar tudo e o seu contrário. Podemos usar a doutrina Monroe para explicar que os Estados Unidos são sempre pela paz de tal modo que adotam uma política não-intervencionista radical, recusando a ideia da guerra como um mal necessário, mas também a podemos usar para mostrar que um cerco anti-liberdade é um perigo para a liberdade dos Estados Unidos, levando assim o exército americano a intervir em conflitos em que é a liberdade que está em jogo. O esvaziamento da doutrina Monroe e a sua substituição por uma ideia de Realpolitik que acaba, ainda assim, por funcionar como uma justificação para a manutenção da paz, para se evitar uma guerra aberta ou um conflito total entre potências é, assim, um dos grandes feitos ideológicos de Kissinger.
É preciso dizer, no entanto, que esta sua ideia traz também alguns problemas na própria conceção da geoestratégia mundial. O insucesso diplomático de Kissinger em África vem, em grande parte, da subestimação do papel ideológico na condução das nações. O equilíbrio de poder só é possível dentro de um quadro muito específico em que as soberanias não estão associadas a uma ideia de justiça particular. Isto é, o poder francês do século XVIII não vê como ilegítima, de todo em todo, a soberania do sacro-império: entende-a como um modo da mesma ideia de soberania. O problema das ideologias do século XX é que empurram os países para os seus blocos ideológicos, que são visto como a configuração do próprio interesse do país. É possível procurar, como Kissinger fez em África, proteger uns líderes em detrimento de outros, para os arregimentar para um bloco de poder; no entanto, a partir do momento em que a legitimidade está associada a um modo de governar, não é possível criar qualquer tipo de independência entre poderes. A realpolitik de Kissinger transformou-se também ela, assim, numa política de confrontos ideológicos em que o que está em causa não é apenas o crescimento de um poder acima dos outros, mas o modo como esse poder se exerce. Por se reconhecer que uma Angola comunista se associará irremediavelmente à URSS, reconhece-se que a questão do modo de governo de Angola é ideológica. A política de Kissinger contribui assim, de um modo complexo, para a negação, pelo menos parcial, dos seus pressupostos.
Há outro aspeto, contudo, em que a política de Kissinger apresenta problemas claros de eficácia. Como Kissinger vê a política como uma questão de poder, o foco da sua ação passa sempre (pelo menos de um ponto de vista teórico) por um entendimento estatal da política. Trata-se de um caso clássico de um autor de um ramo científico que, pelo peso que dá à sua área, acaba por não considerar suficientemente o papel de outras áreas dentro da sua. A sua ideia de legitimidade, que é a base para o seu modo de entender a política externa, parte também ela de um reconhecimento externo. O poder é o poder reconhecido como tal. Esta ideia, no entanto, apenas considera a legitimidade de um ponto de vista externo. É possível que uma nação não se possa arrogar em defensora de uma ideia de justiça universal, de tal modo que se julgue no direito de alterar a ordem política de qualquer país. No entanto, este ceticismo aparentemente sensato só considera o lado externo da legitimidade. A ideia de que um país não pode, nas suas relações externas, depender de uma ideia de justiça no trato com outros choca com a evidência de que um país não existe apenas para fora, de que a sua legitimidade não existe apenas no plano externo.
A tomada do poder pelo comunismo, num país, não é apenas uma matéria de equilíbrio de poder num quadro geopolítico em que se olha apenas para fronteiras. O facto de um governo ter a sua legitimidade interna minada tem também importância geopolítica e é um fator a ter em conta até dentro de uma lógica de equilíbrio de poder. Não é possível aceitar a legitimidade de um bloco por razões geográficas quando esse bloco é perturbado por pressões internas que contestam a própria formação do bloco.
É certo que Kissinger é um diplomata e que olha para as relações entre governos a partir de fora. No entanto, o ponto é exatamente esse: a geopolítica não trata apenas de relações entre governos, mas de relações entre países. Ora, em relação a isso, a mundividência de Kissinger sempre pareceu cega.
É sempre extraordinário ler Kissinger. Das suas teses sobre as guerras nucleares localizadas aos grandes panoramas de história diplomática, tudo está explicado com uma clareza e com uma lucidez quase gloriosas. Nunca se perde de vista uma grande ideia, uma conceção unificada da história que alarga todas as ideias de Kissinger e todos os factos enunciados. Ainda assim, e mesmo que ignoremos os escândalos e os desastres, a aparente indiferença com que se joga com os destinos do mundo e se sacrifica uma ordem pacientemente construída em troca de uma ideia brilhante, todo este brilhantismo parece sempre construído sobre areias movediças, como se nos pudesse levar, através de ideias justas e sensatas, até crimes impensáveis.