O hidrogénio verde é a nova coqueluche das energias renováveis. É visto como a solução para descarbonizar os setores para os quais a eletrificação não é a resposta: a indústria, em particular a que usa muito calor, e os transportes. O hidrogénio pode ainda ajudar a estabilizar a injeção de fluxos de renováveis nas redes elétricas na medida em que consegue absorver a produção excedentária e proporcionar algum armazenamento. E promete, nestes tempos de insegurança no acesso ao gás e ao petróleo, alguma independência energética para os países que não produzem combustíveis fósseis.
É o caso de Portugal, que tem um trunfo neste jogo — as condições geográficas e climatéricas para produzir energia renovável barata. Esta é uma peça fundamental para a equação do hidrogénio verde funcionar. Mas está longe de ser suficiente e até os mais entusiásticos promotores estão a revelar sinais de frustração perante as muitas incertezas que estão a travar o avanço dos projetos de mil milhões.
Alguns projetos anunciados para Portugal
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- O MadoquaPower2X é uma parceria que junta a portuguesa Madoqua Renewables, a Power2X dos Países Baixos e a gestora de fundos dinamarquesa CIP. O investimento de mil milhões de euros foi anunciado para Sines em abril e prevê a instalação de unidades de eletrólise com potência de 500 MW para produzir 50 mil toneladas de hidrogénio verde e 500 mil toneladas de amónia verde. Para garantir que é tudo verde, a Madoqua conta com geração renovável portuguesa em projetos desenvolver em paralelo. A decisão final de investimento está prevista para 2023.
- Em meados de novembro foi assinado um contrato para instalar uma fábrica de hidrogénio verde. A NeoGreen Energy é uma joint-venture luso canadiana que pretende instalar um eletrolisador de 500 MW (megawatts), mas apesar do contrato para reserva de espaço — 10.000 hectares em Sines, o local mais procurado pelos promotores desta tecnologia — a decisão final de avançar só será tomada em 2023.
- Mais nacional, a Galp e a EDP e mais parceiros (Bondalti, Engie e Efacec, entre outros) apostam no GreenH2Atlantic que quer instalar uma unidade de produção nos terrenos da central a carvão de Sines, desativada desde 2021. A unidade com capacidade de eletrólise de 96 megawatts espera produzir 9 mil toneladas de hidrogénio verde que terá como clientes a refinaria da Galp, mas também a injeção na rede gerida pela REN. O projeto está na fase inicial de licenciamento ambiental e tem data prevista de operação para 2026. O investimento de 76 milhões de euros teve um apoio comunitário de 30 milhões de euros.
- Na fileira industrial, que são os primeiros clientes interessados na solução mágica que promete limpar a indústria dos gases de efeitos de estufa a preços atrativos, também se multiplicam os projetos. A Bondalti (grupo químico da José de Mello com instalações em Estarreja) é um grande produtor de hidrogénio cinzento e pretende investir 142 milhões de euros até 2026 para descarbonizar o seu processo industrial. A Rega Energy, empresa liderada por um antigo gestor da Air Liquide, junta várias indústrias da região centro (Marinha Grande), do vidro aos cimentos, num projeto de 100 milhões de euros chamado de Nazaré Green Hydrogen e que pretende replicar em Coimbra.
Estes sinais foram evidentes num debate promovido na última conferência da APREN (Associação das Empresas Renováveis) que se realizou em Lisboa nos dias 16 e 17 de novembro e que juntou representantes da EDP, Galp, Efacec, Smart Energy, Madoqua Renewables (que tem outro projeto de grande dimensão para Sines) e o especialista Nuno Ribeiro da Silva. O presidente da Endesa Portugal (cujas declarações sobre o custo do mecanismo ibérico provocaram uma forte reação por parte do Governo, polémica sobre o qual o gestor ainda não quer prestar declarações) trouxe para a discussão a experiência do desenvolvimento passado de outras tecnologias renováveis.
“Todos querem ser campeões do hidrogénio — Portugal, Espanha, Itália —, mas estamos completamente fora do timing“. E se é certo que o recurso está cá (o sol e o vento) e que o para-arranca marca também o passado do solar e do eólico que depois “deram o salto”, aqui os timings são muitos mais exigentes e ainda faltam os pilares que balizem o caminho que leve as pessoas à ação. Nuno Ribeiro da Silva defendeu que são necessárias medidas de apoio, seja metas obrigatórias, sejam incentivos ao investimento, para que “o hidrogénio deixe de ser um pudim flan, ganhe consistência e as pessoas não tenham medo de se meter lá debaixo”.
Sem essa rede de segurança estão todos à espera “para ver quem é o maluco que vai saltar primeiro e dizer eu pago”, referiu Rogaciano Rebelo, fundador e presidente da Madoqua Renewables, empresa que apresentou em abril um projeto de mil milhões de euros para Sines. O promotor apontou os três “problemas práticos que nos estão a chatear”: acesso à tecnologia, capacidades das redes e regulamentação. E sem esses obstáculos resolvidos tem sido muito complicado fechar o ciclo: conseguir compradores e contratos de venda de forma a garantir o financiamento para avançar.
O risco de repetir o erro do solar e ficar dependente da China
Ana Quelhas, diretora da EDP Renováveis para o hidrogénio, usa a palavra “brutal” para descrever o desenvolvimento das renováveis que será necessário. Também Sérgio Goulart Machado da Galp tem dúvidas. “Se queremos fazer 10 milhões de toneladas de hidrogénio até 2030 na Europa, precisamos de 200 a 300 gigas de renováveis, em cima da potência adicional que já é necessária para eletrificar” .
Para a quantidade de hidrogénio que se quer produzir em Portugal é preciso que a rede tenha uma capacidade para 50 gigawatts e hoje essa capacidade é metade, indicou Rogaciono Rebelo. “A este ritmo não chegamos lá”.
As limitações na frente tecnológica são também de escala. Ana Quelhas indica que a Europa precisa de seis gigawatts de eletrolisadores, mas há falta de equipamentos no mercado. Os fornecedores não estão a conseguir encontrar o material necessário para os fabricar. Mas também de acesso. A cadeia de abastecimento está estrangulada, indica Sérgio Goulart Machado da Galp: “Estamos todos no mercado a comprar eletrolisadores.”
Com a pressão da procura a subir, o gestor da Efacec, Nuno Silva, assume a “preocupação” com a capacidade de produção na Europa. “Corremos o risco de cair na mesma armadilha do solar”. Isto porque a maior parte da produção está na China. Rogaciono Rebelo concorda. “Se não conseguirmos produzir os eletrolisadores a um preço como deve ser, vamos assistir a um déjà vu” do que aconteceu no fabrico de painéis solares que acabou concentrado na China. Defende, por isso, que a Europa deve criar regras que permitam proteger a produção destes equipamentos para que se possa promover um equilíbrio com outros países que têm recursos melhores ou os podem aproveitar melhor.
O gestor da Madoqua Renewables refere que é preciso “misturar os MW (medida de potência elétrica) com as moléculas (o gás). E isso exige muito mais capacidade de injeção na rede elétrica e esse vai ser um “ponto crítico. Não há muito espaço em Portugal (nem na Europa) para reforçar a capacidade da rede — e, quando há, existem outros obstáculos, como alertou no mesmo evento o administrador da REN, João Conceição. O tempo médio de licenciamento de projetos renováveis é de 40 meses. E mesmo com as iniciativas portuguesa e, mais recentemente, europeia para agilizar estes processos é preciso um “simplex para simplificar o simplex” anunciado pelo Executivo para este setor, ironizou um dos participantes.
Regulamentação precisa-se
Apesar da boa vontade política e dos programas europeus e nacionais, há ainda muita indefinição regulatória e nas políticas públicas, aponta Ana Quelhas da EDP Renováveis. Nem sequer está fechado o conceito legal do que é hidrogénio renovável. “Estamos a desenhar projetos sem sabermos as regras do jogo” e isso penaliza os custos da tomada de decisão. “É uma discussão que dura há dois anos e precisamos de clareza.”
A gestora da EDP Renováveis também defende a importância de metas obrigatórias de transição para os atuais consumidores do hidrogénio cinzento. E admite que o Banco de Hidrogénio anunciado pela Comissão Europeia pode ajudar, mas é “uma gota no oceano” porque os 3.000 milhões de euros previstos para este banco só dariam para apoiar 5% do total de produção prevista para a Europa (assumindo o mesmo apoio financeiro anunciado nos Estados Unidos). Ainda assim, pode contribuir para criar mercado.
Tal como em Portugal, o leilão de hidrogénio planeado pelo Governo e que tem como destinatários os clientes industriais poderia ajudar a preencher alguns dos vazios que travam o arranque do setor. Mas esta iniciativa já foi adiada duas vezes desde o ano passado e ainda não tem data para avançar.
Como o pragmatismo americano está a ultrapassar a Europa
Ana Quelhas conhece bem o que se passa do outro lado do Atlântico onde a EDP Renováveis (EDPR) tem uma presença forte e no qual foi aprovada uma medida fiscal, ao abrigo da Inflaction Reduction Act, para apoiar o hidrogénio, que reproduz o modelo já adotado para outras energias renováveis como a eólica. Esse incentivo pode chegar aos três dólares por quilo em dez anos, em função da redução de emissões alcançada. Ainda não está tudo definido, mas “achamos que vai ser mais rápido e pragmático”, diz. A gestora da EDPR admite que a Europa pode beneficiar por tabela deste crescimento do mercado que traz consigo a redução dos custos e assinala que o apoio dado não chega para compensar os custos de transportar o hidrogénio, mas destaca a diferença na política energética dos dois blocos. Lá “é mais a cenoura”, enquanto cá “é mais o chicote”.
Para o fundador da Madoqua, os americanos “têm um pensamento mais prático” e já assumem que neste percurso nem todo o hidrogénio será verde. O pragmatismo americano também se vê ao nível das cores na medida em que lá “vale tudo”, afirma Nuno Silva, administrador da Efacec. O que ajuda a tornar o hidrogénio americano mais competitivo. Pedro Amaral Jorge, presidente da APREN, interveio para lembrar que os EUA têm projetos de gás de xisto “encalhados” que precisam de desbloquear, daí que aceitem o chamado hidrogénio cinzento associado ao sequestro do CO2 que o torna azul.
Independentemente da motivação, refere Nuno Silva, a consequência pode ser uma “espiral virtuosa que vai atrair o investimento porque os projetos estão a acontecer. E a cadeia de abastecimento mundial não chega para tudo.
Goulart Machado da Galp pede realismo e avisa que “este movimento nos EUA vai ter tanta força que vai secar recursos que podiam estar na Europa. No dia em que foi anunciada a estratégia sabíamos que as nossas dificuldades em contratar eletrolisadores iam aumentar”. A dinâmica americana ameaça também desviar recursos humanos e financeiros da Europa. Para João Cunha, da Smart Energy, os Estados Unidos estão logo a querer fazer enquanto decidem. É mais fácil para eles porque não têm de coordenar… e a Europa vai perder o pelotão da frente “porque quer que tudo faça sentido antes de dar o primeiro passo e assim corre o risco de perder a oportunidade de se tornar o exemplo”.
Nuno Ribeiro da Silva desvaloriza: “Não me preocupa tanto que os Estados Unidos sigam à frente. Se fizermos as coisas bem os investidores aparecem”. E temos os recursos primários (o sol e o vento).
Mas os promotores admitem que, se não se conseguir dar uma visão de como tudo isto vai evoluir nos próximos cinco anos, não haverá investidores a colocar capital. “Temos muitos contactos com empresas que precisam de descarbonizar, mas não há vontade de assinar. Estão todos à espera para ver quem é o maluco que vai saltar primeiro”, ilustra o fundador da Madoqua Renewables.
Ana Quelhas da EDP Renováveis bate na mesma tecla quando desafiada a identificar os maiores desafios e fala da procura. “O mercado não existe porque não há procura disposta a pagar os custos de produção do hidrogénio”. Quem está do lado da produção ainda não sabe como fechar o gap e obter o financiamento para avançar.
Para o gestor da Madoqua Renwables, “estamos na típica situação do ovo e da galinha. Os promotores querem construir, mas os offtakers (compradores) não querem assinar contratos de compra porque acham que vai ser tudo — o hidrogénio verde, a amónia — muito barato (e neste momento não é)”. Mas o custo da eletricidade não vai baixar, avisa. Há dois anos, vários relatórios apontavam para preços de 20 euros por MW hora. Agora é impossível. E o custo do investimento também subiu.