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Quase oito anos após o início das investigações e cerca de dois anos após a acusação do processo principal, o caso Banco Espírito Santo (BES)/Grupo Espírito Santo (GES) ainda nem sequer chegou a julgamento em Portugal — e arrisca mesmo a prescrição de cerca de 40 crimes menos graves. Mais: uma das várias investigações autónomas do caso BES/GES, relacionada com um esquema de corrupção e branqueamento de capitais com origem na Venezuela, nem sequer teve acusação e continua em investigação. Nos Estados Unidos da América (EUA), contudo, a velocidade do processo penal é outra.
Paulo Murta, um ex-diretor do GES e um dos homens de Ricardo Salgado (ex-líder do BES) que é acusado de ter criado uma rede de sociedades offshore e respetivos esquemas de branqueamento de capitais para facilitar o pagamento de alegadas ‘luvas’ a responsáveis políticos e gestores públicos venezuelanos através do banco do GES no Dubai, vai ser julgado no próximo dia 25 de julho em Houston, no Texas. A informação foi confirmado ao Observador por fonte oficial do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Homem de Salgado para a Venezuela prestes a ser extraditado para os Estados Unidos
Este é só um caso dos muitos processos que as autoridades federais norte-americanas abriram contra várias figuras do regime venezuelano e que já levou, segundo fonte oficial do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, ao congelamento e à apreensão de mais de mil milhões de euros em fundos que terão sido desviados dos cofres da empresa pública PDVSA — que já foi uma das principais petrolíferas do mundo e hoje é uma sombra do seu passado — e de um conjunto indeterminado de imóveis, automóveis e jóias.
Como é que os Estados Unidos combatem a corrupção na Venezuela?
Paulo Murta foi formalmente acusado e pronunciado para julgamento pelo “Grand Jury” do Tribunal Judicial do Sul do Texas pelos crimes de conspiração para promover atos de corrupção e branqueamento de capitais a 24 de abril de 2019. Apesar de não ter um paralelo direto com o processo penal português, o “Grand Jury” reúne algumas características da fase de instrução do processo penal português, com uma grande diferença: apesar de as diligências serem presididas por um juiz de direito, é um grupo de cidadãos (o “Grand Jury”) quem acusa formalmente (ou arquiva os autos) e pronuncia os suspeitos para julgamento.
Além de Murta, o “Grand Jury” acusou ainda diversos responsáveis da PDVSA, nomeadamente Nervis Villalobos Cardenas (ex-vice-ministro de Energia Eléctrica da Venezuela entre 2001 e 2006), Javier Alvarado Ochoa (ex-vice-ministro do Desenvolvimento Elétrico e ex-presidente da Bariven e da Electridade Caracas, ambas entidades filiais da PDVSA), Alejandro Isturiz Chiesa (ex-assistente de Alvarado Ochoa na Bariven), Rafael Reiter Munoz (ex-responsável pela polícia interna da PDVSA denominada de Prevenção e Controle de Perdas). Os dois primeiros foram presos em Espanha e extraditados para os Estados Unidos e também estão a ser investigados em Portugal. Para já, serão todos julgados nos Estados Unidos.
Todos estes ex-responsáveis venezuelanos têm ou tiveram ligações próximas a Hugo Chávez e a Nicolás Maduro, assim como a Rafael Ramirez, o ex-ministro da Energia e ex-presidente da PDVSA que se incompatibilizou com Maduro.
Mas há mais suspeitos e cúmplices. Desde 2018 que o Departamento de Justiça já acusou nos estados do Texas, Flórida e Nova Iorque mais de 60 ex-responsáveis políticos venezuelanos ou ex-administradores e ex-diretores da PDVSA com base nas investigações norte-americanas abertas ao esquema de corrupção e branqueamento de capitais centrada na PDVSA Services, filial da petrolífera venezuelana com sede em Houston (Texas) que era responsável pela importação de produtos e serviços em nome da Bariven — outra filial da PDVSA que importava os bens alimentares de que a Venezuela necessitava.
No centro do esquema de corrupção que terá levado ao desvio dos cofres da PDVSA de mais de 3,5 mil milhões de euros estão dois empresários venezuelanos chamados Roberto Rincon e Abraham Shiera que residiam nos Estados Unidos. Era através de empresas sediadas em Houston (Texas) e em Miami (Flórida) que Rincon e Shiera ganhavam os concursos do Grupo PDVSA e da Bariven depois de alegadamente corromperem os responsáveis daquelas entidades públicas, como o Observador já tinha noticiado.
Apesar de a maior parte dos suspeitos não serem cidadãos norte-americanos (como é o caso de Paulo Murta, que apenas tem cidadania suíça e desistiu da cidadania portuguesa), a acusação confirmada pelo “Grand Jury” foi deduzida com base numa lei norte-americana especial denominada de “Foreign Corrupt Pratices Act” (que pode ser traduzido para Lei de Práticas de Corrupção Estrangeira), aprovada em 1977 e alterada em 1998. Ao abrigo desta lei, os Estados Unidos podem acusar qualquer cidadão ou empresa estrangeira que pratique ou seja cúmplice com atos de corrupção e branqueamento de capitais de titulares de cargos políticos e públicos em qualquer parte do mundo desde que se verifique alguma destas condições:
- Os autores ou beneficiários desses atos de corrupção sejam cidadãos norte-americanos ou residentes nos Estados Unidos;
- Estejam envolvidas empresas norte-americanas ou estrangeiras que operem nos mercados de capitais dos EUA;
- O “foreign official” (representante público da entidade prejudicada) tanto pode ser um titular de cargo político ou representante da administração pública, mas também pode ser um administrador ou funcionário de empresas públicas. Apesar de a perseguição penal deste “foreign official” só se verificar se o mesmo entrar na jurisdição territorial dos EUA, certo é que a lei americana também permite o congelamento de ativos que sejam adquiridos nos Estados Unidos com fundos que tenham uma origem ilícita, explicou ao Observador o agente especial de supervisão Jeffrey Coleman, do FBI, num briefing organizado pelo Departamento de Estado.
Alegadamente é o que acontece com todas as acusações, visto que os corruptores ativos são empresários venezuelanos com residência em Houston (Roberto Rincon e Abraham Shiera) e as empresas daqueles gestores que beneficiaram das adjudicações da PDVSA também têm sede nos Estados Unidos. Rincon e Shiera chegaram a ser detidos no Texas em 2015, tendo confessado os crimes de corrupção ativa, branqueamento de capitais e conspiração e negociado uma sentença com as autoridades norte-americanas após a acusação do “Grand Jury”.
A cooperação judiciária internacional entre Portugal e os Estados Unidos, contudo, não se resumiu apenas a entregar Paulo Murta — a extradição foi autorizada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 2020 mas só foi concretizada no verão de 2021, na condição de as autoridades norte-americanas entregarem Murta, que é arguido pelos crimes de corrupção e branqueamento de capitais no caso BES/GES, sempre que a Justiça portuguesa requerer.
Além de vários responsáveis do Departamento de Justiça e do FBI pelas investigações à Venezuela terem vindo a Lisboa assistir ao interrogatório de vários arguidos do caso BES/GES, nomeadamente de João Alexandre Silva, o ex-responsável pelo BES Madeira e pela respetiva Sucursal Financeira Exterior (a subsidiária do BES na Zona Franca da Madeira), a Justiça portuguesa também cedeu um conjunto alargado de documentação bancária do BES relacionada com diversos venezuelanos que estão sob investigação nos Estados Unidos.
O papel de Murta no esquema venezuelano e as ligações ao caso BES/GES
Ex-funcionário da Gestar, uma empresa de serviços de gestão de fortunas do GES, Paulo Murta passou a trabalhar com Michel Ostertag desde os finais dos anos 90. O suíço Ostertag, conhecido pela alcunha de ‘O Fininho’, era um elemento importante na Gestar e trabalhava de forma direta com Ricardo Salgado.
Apesar de viver no Dubai na data dos factos descritos na acusação, Paulo Murta era o braço direito de Michel Ostertag na ICG Wealth Management, uma sociedade semelhante à Gestar, e passava a vida entre os Emirados Árabes Unidos, a Suíça e Caracas. Era na capital venezuelana que se encontrava com Nervis Villalobos Cardenas, Javier Alvarado Ochoa, Alejandro Isturiz Chiesa e Rafael Retier Munoz, entre outros, para dar documentação que era necessário assinar pelos próprios ou pelos seus testas-de-ferro. Entre essa documentação encontrava-se não só a criação das sociedades offshore e abertura de contas bancárias, mas também a assinatura de contratos falsos de prestação de serviços que justificavam as transferências bancárias do carrossel financeiro por si criado.
Tal como o Observador já noticiou, Ricardo Salgado e a sua estrutura terá tido conhecimento entre 2010 e 2011 do alegado esquema de corrupção liderado por Rincon e Shiera e terá alegadamente oferecido os serviços do Grupo Espírito Santo. Foi assim que o BES começou por assegurar linhas de crédito à PDVSA para financiar o pagamento das faturas devidas ao grupo de Rincon e Shiera — sendo que muitas delas tinham valores claramente empolados para financiar o pagamento das alegadas ‘luvas’ a responsáveis venezuelanos. Não só diversas entidades da PDVSA como a Bariven abriram contas no BES, tendo transferido vários milhares de milhões de euros de bancos suíços para a sede do BES em Lisboa — o pico máximo chegou a ultrapassar os 8 mil milhões de euros em 2009
Numa segunda fase, Salgado e João Alexandre Silva, o então responsável pelo BES Madeira e pela Sucursal Financeira Exterior (SFE) do banco na Zona Franca da Madeira, terão passado a disponibilizar os serviços do Grupo Espírito Santo (GES) na criação de entidades offshore e abertura de contas bancárias nos diversos bancos da família Espírito Santo para que Rincon e Shiera efetuassem os pagamentos de ‘luvas’ a diversos responsáveis venezuelanos. Foram assim abertas dezenas de contas bancárias em nome de mais de 30 sociedades offshore na SFE do BES na Zona Franca da Madeira, no Banque Privée Espírito Santo (Suíça) e no Espírito Santo Dubai Bankers (Emirados Árabes Unidos).
Na prática, e de acordo com a acusação, Murta não só criou as sociedades offshore que foram utilizadas por Rincon e Shiera e pelos responsáveis da PDVSA (que costumavam escolher familiares como testas-de-ferro), como abriu as contas bancárias nos diversos bancos do Grupo Espírito Santo para promover um pequeno carrossel financeiro entre o Texas (Estados Unidos) e a Zona Franca da Madeira, a Suíça, o Dubai e o paraíso fiscal do Curaçao.
Salgado e BES envolvidos em esquema de corrupção de 3,5 mil milhões de euros na Venezuela
É precisamente este envolvimento do GES no esquema de corrupção do caso PDVSA que está no centro da acusação deduzida pelo Tribunal Judicial do Sul do Texas contra Paulo Murta.
No centro desta acusação contra Murta estão dois tipos de alegados benefícios concedidos às empresas de Roberto Rincon e Abraham Shiera entre 2011 e 2013. Por um lado, um favorecimento na adjudicação dos concursos e ajustes diretos realizados pela PDVSA, PDVSA Services e Bariven; por outro, com a crise de liquidez que a Venezuela começou a viver a partir de 2012, as empresas de Rincon e Shiera passaram a receber os pagamentos da PDVSA mais depressa do que os seus concorrentes.
As autoridades norte-americanas estão ainda a investigar mais dois ex-responsáveis do BES, cuja identidade ainda não é conhecida.
Mais processos na Flórida e em Nova Iorque
O Texas, contudo, não é o único estado norte-americano com processos já concluídos ou ainda a decorrer contra indivíduos direta ou indiretamente relacionados com a Venezuela.
Questionada pelo Observador, fonte oficial do Departamento de Justiça dos Estados Unidos informou que foram “acusados 67 indivíduos relacionados com esquemas de corrupção na Venezuela, incluindo 27 responsáveis governamentais”. Estes casos foram alvo de acusação no Distrito Judicial do Sul do Texas, no Distrito Judicial do Sul da Flórida e no Distrito Judicial do Leste de Nova Iorque.
Além do “Foreign Corrupt Pratices Act”, os Estados Unidos reforçaram nos últimos anos os instrumentos legais que permitem igualmente congelar e apreender fundos com origem ilícita, nomeadamente com origem em práticas de corrupção e branqueamento de capitais. Desde 2010 que o Departamento de Justiça passou a executar a “Kleptocracy Asset Recovery Initiative” (que pode ser traduzido para “Iniciativa de Recuperação de Ativos de Cleptocratas”) de forma a conseguir congelar fundos com origem ilícita que tenham sido levados para território norte-americano e também os bens que tenham sido adquiridos com tais fundos.
No total, esta iniciativa conjunta do Departamento de Justiça com o Departamento de Estado (o equivalente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Governo português) e outras agências federais dos Estados Unidos já permitiu congelar mais 1,9 biliões de dólares (cerca de 1,7 mil milhões de euros), sendo que uma boa parte desses fundos são devolvidos aos países prejudicados. Por exemplo, a Malásia recebeu cerca de 1,1 mil milhões de euros entre 2018 e 2021 que serviram para abater a respetiva dívida pública, enquanto que a Nigéria viu em 2020 serem devolvidos cerca de 288 milhões de euros que financiaram a construção de estradas.
Acresce a tudo isto, como recordou Chandana Ravindranath, diretora do Departamento Anti-Corrupção no Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos, num briefing organizado pelo Departamento de Estado no qual o Observador participou, o Presidente Joe Biden classificou a tema da corrupção como “um problema de segurança nacional para os Estados Unidos” num memorando assinado no dia 3 de junho de 2021. E, no final do ano passado, a Administração Biden aprovou mesmo uma Estratégia Nacional Contra a Corrupção na qual os Estados Unidos reforçam a sua aposta no combate ao crime económico-financeiro em termos internos e reforçam a cooperação judiciária internacional para ajudar a combater a corrupção à escala global, nomeadamente na recuperação de ativos.
No caso dos processos relacionados com a Venezuela, os Estados Unidos já apreenderam até ao momento um valor de cerca de 1.114 milhões de dólares (cerca de 1.032.953,30 euros).
Fonte oficial do Departamento de Justiça apenas confirmou ao Observador os congelamentos e apreensões relacionados com processos já concluídos, tendo identificado os nomes dos 22 réus com contas bancárias e bens apreendidos, assim como o respetivo valor.
Desses 22 réus, saltam à vista os seguintes nomes:
- Alejandro Andrade Cedeño (ex-tesoureiro nacional da Venezuela durante o Governo de Hugo Chávez) foi detido em 2019 e viu serem-lhe apreendidos cerca de mil milhões de dólares (cerca de 926 milhões de euros) em fundos. Fechou um acordo de colaboração premiada (denominado de “plea bargain” e que pode ser consultado aqui) com o Departamento de Justiça num processo aberto no Distrito Judicial do Sul da Flórida, confessando-se culpado dos crimes de corrupção e branqueamento de capitais em 2018, foi condenado a uma pena de 10 anos de prisão. Recebeu mais tarde uma redução de 65% da pena e foi libertado em fevereiro deste ano. Até ao momento, foi o ex-responsável venezuelano mais importante a colaborar com os Estados Unidos.
- José Orlando Camacho (ex-vice-presidente financeiro da PDVSA) foi acusado pelo Departamento de Justiça de ter sido subornado, juntamente com Ivan Alexis Guedes (ex-diretor de compras da PDVSA), por dois empresários venezuelanos. Foi condenado em maio de 2021 no Texas a uma pena de prisão efetiva de um ano e dois meses de liberdade condicional. Ficou sem 1,3 milhões de euros que lhe foram apreendidos em contas bancárias nos Estados Unidos.
- Gabriel Arturo Jimenez Aray (ex-dono do Banco Peravia da República Dominicana) foi condenado em 2018 a uma pena de prisão de três anos por ter utilizado a sua instituição financeira para pagar subornos a diversos responsáveis políticos venezuelanos — um ponto em comum com o que se suspeita que tenha acontecido no BES e nas suas subsidiárias internacionais, nomeadamente no Dubai. Foram-lhe apreendidos cerca de 38 milhões de dólares (cerca de 35,2 milhões de euros).
- Abraham Edgardo Ortega (ex-administrador executivo da PDVSA entre 2014 e 2016) foi condenado a uma pena de prisão efetiva de dois anos em maio de 2021. Antes tinha feito um acordo de colaboração premiada, tendo confessado que tinha aceite subornos de cinco milhões de dólares (cerca de 4,6 milhões de euro) de um banco francês e de um banco russo que assinaram acordos com a PDVSA. Ortega terá ainda participado em esquemas de branqueamento de capitais superiores a cerca de mil milhões de euros.
Apesar de já ser impossível que a Justiça portuguesa consiga acompanhar este ritmo intenso das autoridades norte-americanas na luta contra a corrupção na Venezuela, é expectável que até ao final do ano seja deduzida a acusação do processo do caso GES/BES relacionado com o regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.
O Observador participou no “U.S. Anticorruption Efforts Virtual Reporting Tour” a convite do Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos da América. Os briefings com responsáveis norte-americanos citados neste artigo fazem parte desse programa.