O Hospital de Saint Louis, em Lisboa, perdeu metade dos blocos operatórios desde junho e vai levar a cabo uma reestruturação interna, abandonando várias especialidades não cirúrgicas, e encerrando a clínica que detém no Campo Grande.
Estas duas decisões têm levado muitos médicos a sair do hospital, sabe o Observador, que falou com dois médicos especialistas que trabalham no Saint Louis, e que confirmam que vários clínicos já deixaram de exercer no hospital, e outros se preparam para o fazer quando for encerrada a atividade da clínica do Campo Grande, no final de setembro.
Em junho, o hospital de Saint Louis abandonou o histórico edifício no Bairro Alto, onde funcionava desde o século XVIII e onde tinha a funcionar quatro blocos cirúrgicos, utilizados por médicos de várias especialidades, como Cardiologia, Cirurgia Geral, Oftalmologia e Urologia. A mudança, forçada pelas más condições do edifício — que foi vendido –, resultou numa quebra de 50% na atividade cirúrgica.
Enquanto o hospital não se muda para um novo espaço em Lisboa, já identificado, a proprietária, a Société Française de Bienfaisance — uma sociedade sem fins lucrativos — contratou dois blocos operatórios na Clínica de São Cristóvão, na Baixa de Lisboa, para manter alguma atividade, confirmou ao Observador, o presidente da Comissão Executiva do Saint Louis, José Sousa Barreto. No entanto, as duas salas cirúrgicas são metade da capacidade que existia no Bairro Alto, que tinha quatro espaços.
Vários médicos já deixaram de exercer no hospital e outros deverão sair em setembro
Esta quebra levou vários médicos a procurarem outros hospitais para operar. “Os cirurgiões andam à procura de alternativas”, diz, ao Observador, o neurologista Mário Veloso, que dá consultas na Clínica do Campo Grande e que vai abandonar o hospital quando o espaço encerrar, a 30 de setembro, uma vez que não faz cirurgias. “Vou continuar a trabalhar noutros hospitais e clínicas”, sublinha, acrescentando que o mesmo vai acontecer com vários outros médicos.
Entre as especialidades que deixarão de existir no hospital estarão a Reumatologia, a Endocrinologia, a Dermatologia, a Neurologia ou a Medicina Geral e Familiar, por serem especialidades essencialmente não cirúrgicas. Também as consultas de Nutrição e Psicologia vão desaparecer no Saint Louis, embora José Sousa Barreto não queira ainda adiantar que valências vai o hospital perder.
A decisão de centrar a atividade do hospital nas especialidades cirúrgicas é justificada com as dificuldades financeiras que afetam a sociedade francesa proprietária do Saint Louis. Num email, enviado aos médicos há pouco mais de uma semana, e a que o Observador teve acesso, a Société Française de Bienfaisance admite que, “por motivos de ordem económica e financeira, decidiu proceder à reformulação estratégica do modelo de negócio, sendo que uma das medidas tomadas se traduz no encerramento definitivo da atividade da Clínica do Campo Grande, com efeitos a partir do último dia do mês de setembro de 2023”. Mário Veloso critica a decisão, uma vez que, diz, a mesma “impede o seguimento dos doentes” ali acompanhados.
Ao Observador, o presidente da Comissão Executiva, José Sousa Barreto, explica que as dificuldades financeiras se devem “essencialmente, à quebra da atividade” provocada pelo encerramento dos blocos cirúrgicos do edifício do Bairro Alto, mas também resulta do facto de “as especialidades não cirúrgicas não serem rentáveis”, tendo a sociedade francesa acumulado prejuízo com as mesmas durante anos. “A Clínica do Campo Grande nunca deu um contributo satisfatório, no sentido de trazer as cirurgias para o hospital”, atos que são, esses sim, diz, rentáveis.
Assim, a Société Française de Bienfaisance explica que “a atividade do novo hospital de Saint Louis terá um caráter eminentemente cirúrgico sendo que, no novo espaço, irá coexistir uma área de consultas, exames e análises, nomeadamente das especialidades que referenciam intervenções ciríurgicas a realizar no bloco operatório”.
Hospital demora mais de quatro meses a pagar aos médicos pelas cirurgias
Outro problema relatado pelos médicos ao Observador, e que está a levar muitos a deixarem o hospital, é a demora nos pagamentos pelos serviços prestados no hospital, uma questão que se arrasta há anos. “O hospital paga com meses de atraso. Desde sempre que é assim. Demoram quatro, cinco meses a pagar“, realça Mário Veloso.
Um outro médico, urologista, contactado pelo Observador, e que pediu para não ser identificado, admite que “as pessoas estão desagradadas” com os atrasos nos pagamento. No entanto, o especialista afirma que esses atrasos estão essencialmente relacionados com as cirurgias feitas através do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), um sistema, criado pelo governo em 2004, e que atribui vales-cirurgia, a serem utilizados em hospitais privados ou do setor social, a doentes que estejam à espera da marcação de uma cirurgia no SNS quando completado 75% do Tempo Máximo de Resposta Garantida para a realização da respetiva cirurgia.
“Muitos médicos já saíram do hospital. Alguns saíram porque estavam descontentes com o edifício do Bairro Alto, que tinha fracas condições, e outros por causa dos atrasos nos pagamentos da cirurgias do SIGIC”, revela o urologista. O problema é antigo mas ainda não foi resolvido, com muitos especialistas a ficarem mais de meio ano à espera dos pagamentos. Já em 2020, um cirurgião garantia ao Observador ter em dívida 40 mil euros, havendo relatos de dívidas que chegam aos 200 mil euros.
No entanto, o urologista ouvido pelo Observador, e que pretende manter a atividade cirúrgica no Saint Louis depois da reestruturação que vai ser feita no hospital, admite que, neste aspeto, a responsabilidade não pode ser imputada só à unidade hospitalar. “Se o SIGIC não é pago a tempo e horas, como é que o hospital paga a tempo e horas? O Estado acaba por pagar mas com atrasos significativos e o hospital não tem capacidade” para adiantar as verbas, explica.