José Fragata, cirurgião, chegou a ter algumas dúvidas. Devia ou não aquele homem, com cerca de 60 anos, receber pulmões novos? Antes de ser infetado pelo vírus da Covid-19 nada na sua história clínica fazia querer que um dia precisasse de um transplante. Mas, no início deste ano, no pico da pandemia no país, o SARS-CoV-2 destruiu-lhe os pulmões. Com cerca de seis meses de internamento no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, passou por um ventilador e depois ficou ligado a um ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal), uma técnica que funciona como um pulmão fora do corpo, durante quatro meses.
“Não costumamos fazer transplantes a quem esteve em ECMO durante muito tempo. Mas este doente, e eu tive algumas dúvidas, estava em boas condições, com boa cabeça, em forma ambulatória, e decidimos seguir em frente.” Forma ambulatória quer dizer que o doente não estava acamado e “andava com a maquineta atrás”, explica o diretor do serviço de cirurgia cardiotorácica do Hospital de Santa Marta — a única unidade do país que faz transplantes de pulmão.
Esse pormenor foi decisivo para José Fragata decidir avançar com a cirurgia.
Foi assim que Portugal fez história, com um transplante bipulmonar de um doente Covid, já curado dessa infeção. Em todo o mundo, segundo Paulo Calvinho, o cirurgião cardiotorácico que fez o transplante, não terão sido feitos mais do que 15 ou 20 transplantes em doentes Covid. Em Lisboa, há uma outra doente a ser avaliada pela equipa de Santa Marta para se decidir se pode, ou não, receber novos pulmões.
Pelo caminho, José Fragata já teve de negar esse pedido a duas pessoas. “Recusei dois doentes em ECMO, com Covid aguda, porque não reuniam condições”, conta. Decidir se um paciente recebe um transplante, ou não, é um exercício de reflexão ética e moral, argumenta o médico, já que usar mal um órgão, entregando-o a quem tem poucas possibilidades de o receber com sucesso, pode significar condenar um outro doente à morte.
Em Portugal, a lista de espera para transplante de pulmões tem atualmente 65 pessoas. As estatísticas, salienta José Fragata, dizem que 20% dos doentes morrem antes de chegar a receber um órgão.
“O que esta situação tem de sui generis é que é o primeiro doente transplantado depois de uma infeção Covid. Não vai ser tão original daqui para a frente. Estou convencido que nos próximos tempos nos vão apresentar mais doentes destes”, diz o cirurgião, frisando que este foi também um excelente exemplo de cooperação inter-hospitalar.
Um sucesso, mas com consequências
Foi durante a noite, como acontece na maioria das vezes, que Paulo Calvinho e a colega Luísa Semedo souberam que tinha chegado uma doação de pulmões a Santa Marta. Pela madrugada fora, como estão habituados, certificaram-se de que aquele órgão podia salvar a vida a alguém — o que nem sempre acontece. Em 60% das vezes, conta o médico, os pulmões que lhe passam pelas mãos não estão em condições de ser transplantados.
Este estava: havia compatibilidade sanguínea com o doente de Santa Maria e a morfometria — o tamanho do dador e do recetor — batiam certo. Antes daquele momento, os dois médicos já tinham visitado o futuro transplantado para avaliar o seu caso clínico. Houve um momento em que chegaram a pensar que não podia receber o transplante, mas a recuperação inesperada reescreveu a sua história.
Um sucesso, mas que traz consequências.
“Este doente passa a ter uma vida de transplantado, com medicação crónica, drogas imunossupressoras e pode vir a rejeitar o pulmão”, detalha Paulo Calvinho, explicando que este cenário tem uma taxa de sobrevida de 60% em 5 anos, ou seja, 60 em cada 100 doentes estão vivos 5 anos depois. “Substituímos uma doença por outra doença”, diz o coordenador da unidade de Cirurgia Cardiotorácica de Santa Marta.
A espera pelos pulmões foi, “felizmente”, rápida: cerca de duas semanas, conta o médico que não pode entrar em mais detalhes para não quebrar o sigilo médico.
Este ano, até maio, já se realizaram 17 transplantes pulmonares em Santa Marta. O ano passado foram 33 e, em 2019, bateu-se o recorde nacional quando 39 doentes receberem 70 órgãos.