Foram, pelo menos, cinco ou seis períodos de depressão profunda — sempre longos, podiam durar meses; e sempre “trágicos”, dias inteiros passados em casa, com “pensamentos negros” e incapaz de funcionar. Hugo van der Ding garante que até já sabia o que tinha desde os 15 ou 16 anos, mas foi só depois de todas essas fases, já nos 30, que decidiu procurar ajuda. O gatilho foi uma certeza muito clara: “Se eu não tratar isto, aos 50 vou morrer”. “Isto” era o transtorno bipolar.
O momento em que descreve a primeira consulta de psicoterapia é, provavelmente, um dos mais marcantes da entrevista, a segunda da série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma parceria entre o Observador e a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento: o escritor, cartoonista e apresentador de rádio — e tantas outras coisas que entretanto foi fazendo — emociona-se ao recordar o impacto de ouvir a terapeuta dizer-lhe que não, não podia voltar no dia seguinte, como ele queria. Ela estaria ali uma vez por semana e seguiriam apenas esse calendário. Sentiu que, finalmente, alguém tinha um plano para o ajudar: “Se calhar eu precisava que alguém me dissesse: ‘Não, chega, vamos tratar disto, mas quem manda aqui sou eu'”.
Ainda passou por um diagnóstico errado no psiquiatra — e um tratamento errado durante oito meses —, mas uma mudança de médico acabaria por resolver tudo. Com os medicamentos certos e terapia “para sempre, pelo menos uma vez por semana”, a vida mudou. Quando o diz, pára para sublinhar que sabe que este é um privilégio reservado a poucos e que é preciso que isso mude rapidamente, se o país quiser tratar como é preciso quem lida com problemas de saúde mental. É que os medicamentos são gratuitos, mas as consultas no psicoterapeuta — igualmente essenciais — não são: “Só uma pessoa rica é que consegue fazer isto. Nem a classe média, se calhar, aguenta fazer isto”.
Na entrevista, gravada no final de setembro no Pestana Palace, em Lisboa, conta que para trás ficou a infância do miúdo que sempre se sentiu especial e que só começou a sofrer quando percebeu que cansava os outros — e até a si próprio. O transtorno bipolar — que o fazia ser muito intenso — criou problemas sobretudo na relação com as figuras de autoridade, em casa e na escola, mas nunca o fez ser rebelde. Revolta talvez apenas quando tentava encontrar uma razão nas crises depressivas — que não existe, no caso das pessoas bipolares — ou durante os “anos a fio” em que procurou descobrir o que, nele próprio, era dele e o que era da doença. Isso acabou no dia em que percebeu que ele era também o que a bipolaridade lhe trazia. E que gosta de ser assim.
Talvez isso explique a naturalidade desconcertante com que deixa sair uma das suas gargalhadas características ou faz uma piada, mesmo quando fala de momentos mais difíceis, como aqueles em que chegou a pensar em suicídio, sempre travados pela ideia de que, se o fizesse, iria destruir a vida da mãe e dos amigos. Ainda que, quando a primeira consulta foi marcada, já nem isso lhe fizesse diferença. E aprendeu a antecipar os desequilíbrios: quando entra na casa de banho e fica logo no lavatório, sem se dar ao trabalho de chegar à sanita, sabe que vêm aí alguns dias maus — agora poucos, por causa da medicação e da terapia. A imagem parece caricata, mas tem uma explicação: “Já desisti de viver”. Quando a vida deixa de lhe interessar, já nem se dá ao trabalho de dar mais dois passos para chegar ao sítio certo. Identificar esse sinal foi decisivo, porque agora já sabe o que fazer: “Pronto, então hoje vamos tirar um dia de folga e não vou ouvir nada do que estou a achar sobre mim próprio”.
[Veja aqui e ouça aqui a entrevista completa a Hugo van der Ding]
Se olhar para trás, para antes do diagnóstico, consegue identificar os primeiros sinais do transtorno bipolar?
Talvez, sim. Eu fui diagnosticado bastante tarde, bastante mais tarde do que podia ter acontecido — tinha talvez 30 anos, portanto, há um bocadinho mais de 10 anos. Porque é que estou a mentir? Há 14 anos, tenho 44. E não foi nenhuma surpresa, foi um dia até muito feliz para mim.
Já vamos a esse dia, mas que idade teria quando começaram os primeiros sinais?
Quando começamos a refletir sobre a nossa diferença em relação aos outros meninos, portanto, eu diria aos 15 anos, talvez.
Qual era essa diferença? Quais eram os sinais?
Quando estamos a crescer — pelo menos é a minha experiência — é muito difícil perceber onde é que somos diferentes dos outros meninos, porque não conhecemos a realidade dentro da cabeça, a vida interior dos outros. Eu sabia que era diferente, era sempre o palhaço da história toda, era muito mais efusivo do que as pessoas à minha volta, era tratado um bocadinho como diferente — “ele é especial, coitadinho”. Não era “coitadinho”, mas era assim em todo o lado. E depois, quando começo a conhecer a vida interior dos outros, através dos amigos, aí pelos 15 anos, começamos a falar muito destas questões. E quando isso começou a fugir um bocadinho ao meu controlo, quando deixou de ser só uma coisa de ser mais divertido do que os outros ou ser mais expansivo do que os outros e começou a aparecer a parte negra disso tudo, comecei a perceber que havia qualquer coisa que talvez não estivesse bem e não fosse boa.
Como é que lidava com a perceção de que os outros o tratavam de forma diferente?
Achava normal. Eu sentia-me diferente das outras pessoas — não no mau sentido, num bom sentido. Achava-me especial.
E isso muda quando começa a ter a perceção, a partir dos 14, 15 anos, de que há de facto uma diferença e provavelmente não percebia bem porquê?
Muda quando isso começa a ser um vidro à frente na comunicação com os outros. Se calhar tenho de explicar algumas coisas. Eu não sou médico — isto agora é uma coisa da pandemia, toda a gente diz: “Eu não sou médico, mas acho que é tudo mentira” —, mas, em traço gerais, todos temos flutuações de humor diárias e mensais, anuais. As pessoas que são bipolares têm-nas muito mais acentuadas do que as pessoas que não são bipolares, por isso é que aquelas coisas do “todos somos um bocadinho bipolares” só podem ser ditas por alguém que não é bipolar, porque vai muito para além dessas flutuações. São flutuações muito marcadas. Depois, do que sei sobre isso, há pessoas que têm a fase maníaca, como se chamava antigamente, mais acentuada…
Que é uma fase de euforia, de grande agitação…
Sim, são geralmente essas pessoas que têm internamentos em hospitais, que têm surtos psicóticos e episódios de alucinação, por exemplo. E depois há as pessoas que têm a fase depressiva mais marcada, que é o meu caso. O que significa que se vai ao fundo, a coisas muito negras. É muito diferente da depressão clínica e a principal diferença é que na depressão clínica — não sei se vou dizer algum disparate — há geralmente uma causa, uma razão. Ou se perde alguém ou aconteceu alguma desgraça ou se tem dúvidas existenciais. Na bipolaridade, por ser uma questão física — é um desequilíbrio químico do cérebro —, não tem qualquer razão. E as pessoas, antes de serem diagnosticadas, um dos grandes motivos de sofrimento que têm é escavar e não se encontrar lá rigorosamente causa nenhuma. É um sofrimento pessoal e até de perplexidade de quem está à volta. “Mas porquê esta tristeza ou esta desadequação?”
Nessa idade tinha os momentos de depressão ou era sempre “o palhaço”?
Os momentos depressivos grandes e prolongados que tive na minha vida antes de ser diagnosticado e medicado foram cinco ou seis. Nessa idade não eram fases de mania, mas eram os outros picos que se notavam mais. Comecei a perceber que cansava as outras pessoas, que me cansava a mim, chegava ao fim do dia destruído, cansado, já não me conseguir ouvir — ainda tenho um bocadinho isso, às vezes. Era uma existência muito cansativa, para mim e para as pessoas que estavam ao meu lado. Quando isso deixou de ser só divertido e interessante, para os adultos até, começou a ser só uma coisa que era um entrave à comunicação. O mundo à volta começou a tentar calar-me.
Isso era mais impactante na escola e na relação com os amigos ou em família? Quem é que lidava pior com isso?
As figuras de autoridade, claro. A família e a escola. Só que depois — não sei se era da bipolaridade — eu era amoroso, ao mesmo tempo. E tinha graça. Portanto, os adultos tentavam pensar “isto se calhar é mesmo assim, é melhor nós aprendermos a lidar com isto”.
E naquela fase juntava-se alguma rebeldia também ou era só essa intensidade permanente?
Custa-me um bocadinho falar disto, porque uma coisa é falar de mim e outra coisa é falar de outras pessoas, mas tive na adolescência uma relação mais especial com a minha mãe, mais complexa. Hoje olho para trás e penso que não é fácil lidar com isto, pensar “há qualquer coisa aqui que de facto não está muito bem”. Mas na escola eu não era propriamente rebelde, não era malcriado. A minha indisciplina tinha a ver com esta coisa que faço até hoje — e hoje pagam-me. Eu faço profissionalmente tudo aquilo que os adultos me diziam para não fazer. Tudo o que os professores dissessem, eu desmontava, que é o que eu faço profissionalmente. Pegava em todas as frases que eles diziam. E isso claro que é muito disruptivo de uma aula, não é? Mas não era propriamente rebelde, não passei essa fase.
Quando passa a ter consciência de si próprio — até de que cansava as outras pessoas e a si — é que começa a ter os momentos depressivos. Em algum momento isso foi uma questão em termos médicos, de tentar perceber se tinha uma depressão?
A minha mãe — é impossível não falar e é um assunto resolvido entre a minha mãe e eu — viveu um bocadinho em negação. Havia umas tentativas com psicólogos, mas foi complexo para a minha mãe e acho que consigo perceber um bocadinho o “não consigo lidar com isto agora”. Os meus pais divorciaram-se quando eu era muito criança e a minha mãe volta a casar quando eu tenho mais ou menos 14 anos e a coisa estabilizou familiarmente. Mas vivemos estes anos sozinhos os dois. E, portanto, percebo que era muito complexo, e a minha mãe, que era bastante nova — são coisas que nós só vemos mais tarde, não é? — pensou: “Eu não consigo fazer isto tudo ao mesmo tempo”.
Ela própria teria a perceção de que havia um problema.
Sim, até porque a área profissional da minha mãe não está muito longe disso e era praticamente impossível, sem uma grande dose de negação, não perceber que havia ali qualquer coisa que não estava certa. E portanto, em vez de me guiar por um caminho, fomos desbravando caminhos novos. “Então agora vamos por aqui, abrimos mais uma estrada aqui. Então tiramos mais esta cadeira aqui do caminho, pronto. Então abrimos aqui esta parede, fazemos aqui um buraco. Queres passar antes por esta parede?” Isto em vez de irmos dizer “não, se calhar tens de passar pela porta”. Fomos assim andando. Há umas tentativas, mas rapidamente estas conversas passaram a ser uma coisa mais com amigos, que me acompanham desde essa altura.
Durante quanto tempo aconteceram essas conversas com amigos até o levarem a procurar ajuda médica? Quão concretas eram? Havia uma discussão sobre ser um problema de saúde mental?
Havia e com nome. Eu desde os 15 ou 16 anos pensava: “Acho que sou bipolar”.
Como é que chegou lá?
Porque eu sempre me analisei muito e, mesmo nessas conversas com amigos, eu era aquele género de pessoa que queria analisar tudo, tinha uma curiosidade enorme em perceber o mundo todo à minha volta. Então, falava muito com amigos — um grupo muito selecionado de pessoas, não era com todos os amigos — para analisar aquelas coisas todas. Não sei se tinha já pensado nisso, mas o amor ou os desgostos amorosos foram sempre os catalisadores dessas descobertas do lado negro da força. Quando se é adolescente, os desgostos de amor são uma coisa muito forte, não é? Mas houve ali uma altura em que eu percebi: “Isto vai para além disso, é completamente incapacitante”.
Como era um dia seu numa dessas fases depressivas?
A partir do momento em que tive mais ou menos autonomia na vida — fui viver sozinho aos 16 anos, que é uma coisa que não é assim muito comum. Quer dizer, dependia completamente da minha mãe, mas, lá está, foi uma daquelas coisas do “vamos então aqui abrir uma parede”. Estava a ser complicado, então tinha o meu próprio apartamento.
Para tentar ajudar no relacionamento.
Sim. Então tinha o meu apartamento, ainda que tivesse comida, não tratava de nada. Tinha um quarto um bocadinho mais longe do resto da casa, para ser mais fácil. Ainda andava no liceu, isto era incrível. Era lá que fazíamos as festas todas, foi muito divertido. Ainda hoje tenho um grupo de amigos que é daquele apartamento. Podia ter corrido francamente pior, não correu assim muito mal. Nos momentos depressivos, a partir do momento em que acaba o liceu, assim que eu posso, era isolamento total. Não gosto de partilhar essa parte. Isolo-me completamente. Ainda que, um bocadinho mais crescidinho, ninguém conseguiria dizer como é que eu tinha passado os dias. Saía à noite, continuava a ser mega divertido, a pessoa mais divertida do mundo, mas depois o resto do dia era trágico. São pensamentos muito negros.
Passava o dia em casa, sem comer, sem interagir, sem fazer nada, sem ler um livro, sem ligar a televisão?
Muitos dias assim.
E porquê essa necessidade de depois sair à noite e pôr uma máscara, dizer que estava muito bem? Fazia um esforço para isso ou era natural?
Eu precisava de sair dali, não é? E era uma fase em que as pessoas daquela idade, com 20 anos, saem à noite. E sair à noite é uma forma de convívio social que não requer muita conversa. Diz-se umas larachas, está-se a dançar um bocado, bebe-se uns copos, a música está alta, ninguém me ia perguntar, não tinha de falar muito.
Nessa fase falava com esses amigos ou só falava sobre isso depois?
Depois. Isso é uma coisa que mantenho até hoje. Claro que, com a medicação, tudo isto é reduzido, limitado e controlado. No meu caso, não voltei a ter esses momentos. Com a terapia, também, que é uma coisa que é preciso fazer até ao final da vida. Mas, quando não estou bem, não gosto de falar com ninguém. Classicamente, não atendo o telefone… cumpro outras funções. Vou trabalhar, se for preciso. Se puder não ir, prefiro não ir.
Isso é agora, mas, nessas fases antes do diagnóstico, era possível? Estava minimamente funcional?
Não. Era totalmente incapacitante.
Na altura trabalhava?
Passei muito tempo sem trabalhar.
Por causa disso?
Sim. Quer dizer, não se percebia bem porquê, porque não era bom da cabeça, provavelmente. Há ali um período… Eu estava a estudar Direito e fui viver para fora, durante cinco anos, e foi um mundo novo que se abriu. Tudo era diferente, conhecer novas pessoas… E mantive sempre uma relação muito forte com a minha mãe, com a minha família e com os meus amigos de cá. Foi dos 23 aos 28, uma fase muito formativa, só que a própria vida e aquela idade convidam a isso, nós todos andamos a experimentar altos e baixos.
Era fácil confundir com a vida normal?
Sim. Aliás, um dos dramas destas coisas que não são doenças físicas — nem sei se lhe chame uma doença —, mas esta característica que é a bipolaridade, eu levei anos a fio a pensar, já depois do diagnóstico, quem é que sou eu e quem é que é a bipolaridade. E passei anos a fio a pensar: “Como é que eu seria se não fosse bipolar? O que é que neste comportamento é bipolar? Será que eu tinha desistido do curso se não fosse bipolar? Será que eu teria voltado de Amesterdão ou ido para Amesterdão se não fosse bipolar? Será que a minha relação com a minha mãe…”. E há um dia em que eu estou a tomar duche, que é onde tenho sempre as minhas epifanias, e cheguei à conclusão de que não é possível separar uma coisa da outra.
Porque o Hugo é uma pessoa com doença bipolar, ponto.
Claro. Porque tudo o que contribua para a nossa personalidade é indissociável, não se consegue tirar. Isto sou eu. E não trocava por nada. Deve ser uma chatice não ser bipolar, não sei, nunca experimentei. Mas é um momento super importante de parar de tentar perceber, que é quase como se dissesse: “Se eu conseguisse eliminar a bipolaridade, quem é que sou o verdadeiro eu?”. E isso é uma violência que a própria sociedade às vezes faz às pessoas que têm estas características.
Antes do diagnóstico e do tratamento, era assim nas fases depressivas. E nas fases ditas maníacas, era como?
Sem nunca ter tido episódios de surtos psicóticos e isso tudo, era uma canseira muito grande. Era altamente criativo, escrevia 10 filmes na cabeça, 10 livros na cabeça todos os dias, não parava um segundo de pensar, dormia muito pouco.
O que era dormir pouco?
Passava dias sem dormir. Eram todos aqueles clássicos: gastar dinheiro em coisas absurdas, estar sempre a fazer coisas, no meu caso ter atividade criativa intelectualmente. Romantiza-se muito a bipolaridade, porque se fala da Virginia Wolf, do Oscar Wilde, mas a bipolaridade não faz de ninguém génio, nem é sempre canalizada para a criatividade. Há pessoas que limpam a casa toda de alto a baixo, ou pintam as paredes todas.
Nunca lhe deu para isso?
Não, graças a Deus.
Era mais a questão da criatividade.
Sim, só que nunca conseguia fazer rigorosamente nada. Aliás, eu começo a minha vida profissional a sério, com as coisas que eu gosto de fazer, aos 30 anos, depois de estar diagnosticado e medicado.
Porque não chegava ao fim das coisas?
Não se chega ao fim de nada. Eu às vezes sinto que, com a medicação, sou um bocadinho menos criativo, só que consigo fazer coisas. Se calhar tenho um bocadinho menos ideias, mas sento-me e elas aparecem feitas. E digo assim: “Ah, se calhar tem graça pôr as coisas em prática”.
As coisas passaram a ter um princípio, um meio e um fim. Dantes, naquelas fases, isso era impossível?
Desinteressava-me logo. Eu nem sei sequer se era importante as coisas serem concretizadas. Claro que eu estou a falar disto tudo de um lugar de imenso privilégio, de poder ter tido esta experiência. Estive dois ou três anos sem trabalhar, a minha mãe ralhava-me, mas nunca passei fome, nunca vivi na rua, como calculo que aconteça a quem não possa ter essa experiência.
Sem isso podia ter sido uma fase muito mais dramática, antes do diagnóstico.
Claro. É muito comum nas pessoas que, durante a fase maníaca — chamemos-lhe maníaca, apesar de não ser um termo clinicamente correto —, fazem essas coisas de gastar o dinheiro todo ou beberem muito, terem coisas que façam a vida delas descambar, depois a fase depressiva acrescenta todas essas questões. A vida de repente desaba toda à sua volta. Eu essa parte não tive, ou não tive muito.
Porque é que isto tem um nome tão cedo — tinha, pelo menos, a convicção de que sabia aquilo que tinha — e vai ao médico tão tarde? Entrou também um bocadinho em negação?
Eu acho que as mensagens que se recebe em relação a este tipo de diagnósticos são estigmatizantes. Quase como se pensássemos “Pode ser que não seja”. Quase como se dar um nome a uma coisa fosse negativo: “Ah, pronto, a partir do momento em que fores lá buscar o papel toda a tua vida tem de mudar e temos de começar a tratar isto de outra maneira”.
Sentia esse estigma?
Olhando para trás, talvez. Quando dizes assim: “Pode ser que não seja, se calhar não”, tudo isto é uma mensagem negativa. E, de facto, fui tentando, há sempre aquela coisa do “afinal consegui, agora está mais ou menos controlado”. Vou procurar ajuda no quinto ou sexto desses momentos depressivos muito graves.
Que duravam quanto tempo?
É quase difícil de me lembrar, mas meses, não estamos a falar de dias, são fases da vida. Passou o quarto, passou o quinto. E é preciso dizer que a idealização suicida está lá sempre.
Tinha sempre nesses momentos?
Sim. Mas a idealização suicida, não sei explicar isso, vivo com ela desde sempre, penso nisso todos os dias, só que é quase como me rio. Se eu disser assim: “Atrasei-me para entregar o artigo para o Observador, por exemplo, vou-me matar”, mas é quase como uma graça, faz tão parte da minha vida. É a primeira solução para todas as coisas.
Mas nessas fases era um bocadinho mais presente?
E foi-se agravando. Há uma fase em que ainda estou em Amesterdão e em que penso nisso muito a sério e arranjo até um método, muito clean. E lembro-me de pensar: “Eu não posso fazer isto à minha mãe”. E na altura senti: “Que horror, nem isto posso fazer”. Ainda foi um drama acrescido.
Nunca chegou ao momento de tentar?
Nunca tentei. Mas era uma coisa muito real e foi horrível perceber o “eu não posso fazer isto à minha mãe, não posso fazer isto à amiga X”, um grupo muito pequeno de pessoas que iam ficar com a sua vida destruída para sempre.
Eram sempre os outros que o impediam.
Sim. E a última, antes de eu procurar ajuda, foi quando já nem isso me interessava nada. Pensei: “A minha mãe que lide com isso, não quero saber disso para nada. A minha amiga X que lide com isso, isto é a minha vida, não consigo, não quero mais”. Acho que o que me salvou nessa altura foi a enorme curiosidade que tenho em ver o que é que consigo fazer com as cartas dadas. Só que há um dia em que penso: “Tenho de ir tratar disto agora porque tenho 30 anos, a própria força física de aguentar isto vai-se gastando, não vou aguentar isto aos 40. Se não tratar isto, aos 50 vou morrer.”
Foi a perceção de que haveria um momento em que já não contavam a mãe, os amigos…
Que já era pacífico. Nunca fiz nenhuma experiência, nunca tentei, mas sentia aquele vulcão que sentimos de ir fazer qualquer coisa e quase me levantei do sítio onde estava sentado assim uma data de vezes e pensei: “Uau, isto agora não está fácil”. E há um dia em que me encontro com a minha mãe para irmos tomar o pequeno-almoço e a minha mãe pergunta: “Está tudo bem?”. E a minha resposta sempre foi “está…”, mas naquele dia resolvi dizer “não”.
Nessa altura estava numa dessas fases depressivas e conseguiu verbalizar que não estava bem.
Sim, foi a primeira vez em que pensei: “Eu preciso de ajuda”. E devo dizer que nesse dia, à tarde, a minha mãe tratou de tudo. Marcou uma consulta numa terapeuta que me acompanha até hoje e num psiquiatra péssimo que me ia matando.
Qual é a primeira consulta que tem, com a terapeuta ou com o psiquiatra?
Foi com a terapeuta.
Lembra-se desse dia?
Lembro-me perfeitamente. Já tinha ido ao psicólogo em miúdo, mas nunca tinha feito terapia. Portanto, cheguei um farrapo humano e a minha terapeuta, que é uma mulher incrível e super inteligente — e o que é fundamental na terapia é a relação que se estabelece com o terapeuta, mais do que outra coisa qualquer…
Funcionou logo?
Funcionou logo. Eu disse: “Nem sei sequer por onde hei de começar”. Muitas pessoas têm resistência em ir à terapia um bocado também por isso, porque pensam: “Não sei por onde hei de começar, não sei o que hei de dizer”. E um bom terapeuta explica que nos vai guiar. E, portanto, numa primeira consulta de uma pessoa que está um farrapo, foi uma coisa quase como aqueles primeiros cinco minutos de quando se vai ao cabeleireiro: “Então vamos cortar aqui, fazer assim…”. Foi basicamente isso que ela fez. Um terapeuta não é um médico, portanto ela tem muito cuidado em falar de bipolaridade e de diagnósticos…
Mas falaram sobre isso logo na primeira consulta?
Não, não falámos. Aliás, ela foi percebendo que eu estava a ter um diagnóstico errado do psiquiatra que me estava a seguir e, com muito cuidado, aconselhou-me a procurar outro psiquiatra.
Então nessa primeira consulta com a terapeuta não há nomes.
Não. E há um catalisador incrível. No final ela disse: “Bom, então para a semana voltamos a ter outra sessão”. E eu disse: “Não, para a semana não, eu tenho de voltar amanhã”. E ela diz-me assim: “Não. Eu estou aqui para si uma vez por semana”. Ela percebeu-me. Se calhar eu precisava que alguém me dissesse: “Não, chega, vamos tratar disto, mas quem manda aqui sou eu”. E estou com ela até hoje.
E teve uma parte de alívio ao perceber que alguém tinha tomado o leme e tinha um plano?
Sim. Acho que isso acontece a toda a gente, quando acha que não está a ser capaz de controlar qualquer coisa dentro de si e tem alguém que diz “vamos tratar disto e vai ser assim”. Até porque a forma como a minha família e os meus amigos lidaram foi sempre muito accommodating, não é? Foi sempre seguir aquele caminho, que é uma forma ótima também, não houve violência ou exclusão ou essas coisas horríveis que acontecem dentro das pessoas. Mas foi muito importante ouvir aquele “não” naquela altura.
Vai ao psiquiatra antes da segunda consulta ou só muito mais tarde?
Foi na mesma altura.
Quando vai ao psiquiatra há logo uma conversa sobre diagnóstico?
Aquele psiquiatra era uma besta que eu um dia hei-de refletir… Já conheço mais histórias com esse homem, acho que deve ser denunciado. Não tenho pachorra para essa guerra, mas fez-me uma consulta de cinco minutos, onde eu estava a tentar falar e ele disse: “Você está com uma depressão muito profunda” e medicou-me com para aí oito medicamentos diferentes. Porque há certas coisas que tem de se tomar depois de uma data de outras coisas. E portanto vivi assim talvez seis meses, até a minha terapeuta me dizer que eu tinha de procurar outro.
E tomou esses medicamentos.
Tomei, sim. Vive-se como um zombie. É muito grave medicar um doente bipolar com antidepressivos, é com estabilizadores de humor e outras drogas que se trata.
Em nenhum momento disse ao psiquiatra “eu acho que não tenho isso, eu acho que tenho transtorno bipolar”?
Sim, e ele disse: “Não tem nada, onde é que foi buscar isso?”. Mas eram consultas muito rápidas e eu pensei: “Este homem precisa de me ouvir”. Então há um dia em que eu disse assim: “Olhe, vou-me matar”. Ele ficou assim parado e disse: “Vai-se matar como?”. E eu disse: “Olhe, vou-me matar com os remédios todos que me receitou”. Tipo: “Ouve-me!”. Ele ficou assim um bocado apanhado e disse: “Está aí com alguém fora?”. E eu disse: “Sim, com o meu padrasto”. “Ah, não se importa de chamá-lo?”. O meu padrasto é uma pessoa incrível e o médico disse-lhe: “Se calhar é melhor ele não ficar sozinho durante os próximos dias” — até para não perder a carteira profissional, deve ter provavelmente pensado. E eu depois conto esta história na terapia, talvez nessa tarde, e a terapeuta disse-me: “Olhe, eu vou recomendar-lhe outro psiquiatra, até vou recomendar uma pessoa que não conheço pessoalmente”. Ela depois contou-me que era um especialista em bipolaridade. Fui a essa consulta e — agora vai parecer aquele momento — “a minha vida mudou”.
Mas mudou, de facto.
Mudou. Foi uma consulta que não teve rigorosamente nada a ver com a outra, foi uma consulta que durou mais de duas horas, estivemos à conversa.
Era um daqueles psiquiatras que fazia terapia por “deformação” profissional?
Sim, porque é a especialidade dele. E tem graça — eu só soube disto depois —, a minha terapeuta quis falar-lhe um bocadinho de mim e ele disse que não queria ouvir rigorosamente nada. E então foi dos momentos mais importantes da minha vida porque ele, às tantas, para além da conversa toda, fez uma espécie de check list gigantesco: “Já sentiu isto, já sentiu aquilo, sente isto, sente aquilo”. E eu, que também não sou propriamente burro, percebi que estava a ser alvo de um check list e que estava a dar as respostas todas certas ou erradas, conforme se considere. E aquilo que deveria ser uma coisa horrível foi uma coisa altamente libertadora. “Mais uma, mais uma; sim, também; sim, também”.
Porque finalmente alguém tinha percebido.
Claro. E no fim foi uma experiência ótima, foi mesmo ótimo. É tipo: “Vamos passar agora para a fase seguinte, como é que se faz”. Porque foi isso que ele disse: “Tem de ser acompanhado, tomar uma medicação para o resto da sua vida, tem de fazer terapia para o resto da vida e conseguimos controlar isso”.
Isso não lhe deu alguma revolta? Apesar do alívio de saber que já havia um plano, estava diagnosticado, a ideia de ter de lidar com isto para o resto da vida não lhe deu alguma revolta?
Não. Como é que eu hei de explicar? Tenho a noção de que a bipolaridade é o que me faz ser diferente das outras pessoas, eventualmente especial. Não mais especial do que ninguém, diferente. E, volto a dizer, não trocava isso por nada. Tem esta parte mais chata, em que tenho de tomar estes remédios.
Na altura já tinha essa ideia de “ainda bem que sou assim”?
Consigo controlar as partes menos positivas. Faço anos na véspera de Natal e as pessoas dizem sempre :”Ai, que chatice, só recebes um presente”. Nem sequer isso é verdade. Adoro fazer anos na véspera de Natal, é o dia mais especial do ano. Adoro. Nunca fiz anos noutro dia, portanto não sei quão especial é fazer anos no dia 3 de abril, mas não deve ser muito. Portanto, mesmo que eu recebesse só um presente, mesmo que durante uma data de tempo não tenha tido jantar de anos com os meus amigos porque o jantar de anos é sempre o jantar da Consoada… Só uma vez é que o meu bolo de anos foi a lampreia de ovos e eu disse à minha mãe: “Isto nunca mais volta a acontecer”. Mesmo assim, não trocava por nada fazer anos num dia em que está toda a gente em festa — acho maravilhoso fazer anos na véspera de Natal. Não sei como são as outras pessoas dentro da cabeça, mas se isto é o preço a pagar por viver dentro desta cabeça onde eu gosto mesmo de viver, pronto.
Nesta altura começa a fazer um tratamento mais ajustado ao diagnóstico correto. Em nenhum momento resistiu à medicação — que é uma coisa que às vezes acontece na saúde mental?
Sim, houve uma fase — já faz quase 10 anos — em que deixei de tomar. Foi uma fase muito curta. Porque sobretudo um deles faz-me dormir muito, equilibra-me o sono.
E dava-lhe jeito dormir menos.
Ele equilibra-me o sono. Como eu disse antes, passa-se dias sem necessidade física de dormir. O cansaço está lá, mas não há necessidade de dormir. Ou então, no contraponto, passa-se muitas horas a dormir. Acontece o mesmo com a comida, com uma série de coisas desse género, como a força física para fazer coisas. Estes remédios fazem uma coisa que eu nunca consegui fazer, que é dormir à hora que eu quiser. Se eu tomo o remédio, meia hora depois estou a dormir. E, portanto, se eu quiser deitar-me às 20h, às 20h30 estou a dormir. Consigo controlar melhor a minha vida. Só que tem uma janela temporal de atuação em que tenho de dormir sete ou oito horas. Isto nem sempre é compatível com o ritmo de uma pessoa moderna.
Mas além desse medicamento que lhe permite dormir, que é uma coisa importante para o equilíbrio, a base desse tratamento é manter as variações químicas no cérebro equilibradas?
Sim — parecemos as velhas a falar, “eu tomo um de manhã…”. Mas sim, o da manhã é, de facto, o mais importante e o outro é para regular, sobretudo, o sono, porque é muito comum na bipolaridade ter estas flutuações na necessidade de dormir. E às vezes acordava com umas mocas de sono gigantescas, levava horas a conseguir voltar a pensar, que é uma coisa que não tenho sem esse medicamento. Agora estou sem tomar esse da noite, mas acompanhado pelo psiquiatra. E a minha vida mudou — ando a dormir pouco, o que não é brilhante, mas também porque não posso, estou a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Tenho uma rubrica diária na rádio, cedo de manhã. Gostava de ter tempo de a escrever na véspera, ando sem tempo, portanto acordo um bocadinho mais cedo, antes de sair para a rádio, por volta das 5h da manhã, e acordo com a rubrica toda escrita na cabeça. Portanto, sei que estive a escrevê-la enquanto estive a dormir. Essa parte esses remédios tiram um bocadinho. Essa capacidade perde-se.
Já disse pelo menos uma vez que a terapia salvou-lhe a vida, literalmente. Foi porque desapareceram as ideações suicidas e essas fases atenuaram-se? Atribui isso à terapia?
Atribuo à terapia e à minha terapeuta em particular. Nada disso desaparece totalmente, aprende-se é a lidar com isso. E talvez o maior tesouro que a minha terapeuta me deu foi, um dia, dar-me como exercício, como trabalho de casa, eu conseguir identificar o momento em que sei que já fui para o lado negro da força. Se conseguirmos identificar esse momento, conseguimos trabalhar a partir daí, deixar de ouvir “vozes na cabeça” — é figurativo, eu não ouço vozes na cabeça, mas aquela sabotagem do “tu és uma porcaria, tu não vales nada, não aguento a minha vida, não aguento viver”, todas essas coisas que baixam com a medicação, isso é mais controlado. E era fundamental eu conseguir encontrar o momento em que sei que isso vai começar para pensar: “Este dia vou esquecer, este dia vou apanhar sol”.
E identificou isso de forma clara?
Não, eu pensei: “Isso é impossível, porque isto é um processo, é uma coisa que demora tempo, que só se percebe quando já se está mergulhado”. E ela dizia: “Não, vá pensar, você consegue encontrar o momento, reflita e consegue encontrar”. E eu pensei: “Esta mulher enlouqueceu, afinal quem é maluco é ela, não sou eu. Eu, pelo menos, estou medicado”. Não sei se pensei, se calhar pensei, mas para rir. Nós rimos muito na terapia, parece que isto é tudo uma coisa super negra. E eu tenho uma personagem que é psicoterapeuta e a minha terapeuta às vezes diz-me “Olha, eu não sou essa personagem”, e rimos muito. E eu a pagar, enfim. É o que é. E vou para casa, começo a pensar e identifiquei exatamente o momento, que é — vou contar — quando eu começava a fazer xixi no lavatório.
Entrava na casa de banho e instintivamente ia ao lavatório.
Sim. E foi engraçado pensar: “Claro, é quando eu percebi que já fui”. Tem uma explicação simples: o lavatório está mais à mão, quando entro na casa de banho — tem estado em todas as casas em que vivi — e, em termos de altura, é mais prático para os homens do que a retrete, está mais alto.
Isso significava que já nem se dava ao trabalho de chegar à sanita.
Já desisti de viver, exatamente. “Não quero saber, é mais prático.” Mas isto era tudo inconsciente, era só um primeiro passo para desistir de viver, para deixar de trocar de roupa, para deixar de fazer as coisas, o que é muito associado a essas características mentais ou a problemas de depressão. É comum, não é? Deixa-se de tomar banho, a vida em geral deixa de ser importante. Está-se tão ocupado dentro da cabeça que é muito difícil e uma brutalidade dizer “toma um duche e vamos dar uma volta”, quando não me apetece viver, isso não me diz nada.
E acontece sempre, essa situação de entrar na casa de banho e ir ao lavatório?
Claro. Só que aquilo ficou como campainha. Então hoje — já não acontece tantas vezes, até porque a medicação controla isso — se eu entrar na casa de banho e olhar para o lavatório, penso assim: “Pronto, então hoje vamos tirar um dia de folga e não vou ouvir nada do que estou a achar sobre mim próprio”. E vou fazer outras coisas, vou à praia se for inverno, vou fazer ski se for no verão… não, vou fazer outras coisas.
Tenta logo contrariar aquilo que já sabe que vai ser um dia tendencialmente depressivo.
Mais do que depressivo, um dia de auto-sabotagem.
Com esse controlo, com a capacidade de antecipar essas crises, com os medicamentos, essas fases que duravam uns meses agora duram quanto tempo?
Dias. Pode ser um dia. Essas flutuações estão mais controladas.
E é preciso mudar alguma coisa na medicação?
Nunca foi preciso até hoje. E não estou sempre a pensar nestas coisas, não estou sempre a pensar “sou bipolar, isto é da bipolaridade”. Há pessoas que, como isto é tão incapacitante, não conseguem não pensar nisso, não conseguem que isto não tome conta da sua vida. Não é o meu caso, não estou sempre a pensar, não é assim. Mas aprendi a identificar “este dia não é um dia bom”. Dura um dia, no dia a seguir já está melhor. Percebo que são oscilações que talvez nem toda a gente tenha e depois, com a medicação, consigo ter uma coisa mais fixe, que é tristeza com motivos. Como sou uma pessoa, fico triste com coisas, tenho tristezas, mas é bom saborear essa tristeza sem ser um desequilíbrio químico no cérebro.
Consegue tocar as emoções de um dia a dia normal sem ser…
Sem ser ou avassalador ou completamente absurdo, sem razão.
E ao contrário de antes do diagnóstico e do tratamento, deixou de ser incapacitante, consegue manter-se funcional — a lutar contra isso, mas funcional.
E depois as coisas completam-se, fazem uma parte da outra. A minha terapeuta dizia sempre: “Era ótimo que você tivesse uma vida mais regular, que se levantasse à mesma hora”. Para um bipolar, isso é importante. A partir do momento em que comecei a fazer coisas, também a minha vida começou a organizar-se mais, é engraçado. Tenho horários, a minha vida tem horários. Foi preciso estar equilibrado para a vida se equilibrar, porque a vida não ia trazer-me nada de volta, e isto leva-me a uma conclusão. Eu falava há pouco de inadaptação — e, volto a dizer, falo de um lugar de privilégio, de não ter sentido isso de forma muito dramática, com consequências graves — e grande parte da inadequação e do sofrimento deste tipo de características das pessoas ou de doenças, quando são mais incapacitantes, é a parte negra que está dentro delas e tudo à volta as faz sentir incapazes. Porque é que uma pessoa bipolar, que não consegue levantar-se da cama antes das três da tarde… isso é incapacitante, porque o mundo não está preparado para aceitar pessoas que acordam às três da tarde. Isso não faz dessa pessoa alguém menos válido. As pessoas bipolares, se calhar, há um dia em que têm de ligar a dizer: “Hoje não consigo ir ao escritório, não consigo sair da cama”. Bipolares ou com outras questões. E o mundo não está preparado para isto. E nem sequer precisamos de usar o argumento de que essas pessoas dão um contributo válido noutras coisas, mesmo que só cheguem às 10h e não às 9h, porque dar um contributo válido não é critério para absolutamente mais ninguém. Não têm só um emprego e uma vida as pessoas que dão um contributo válido. Nós não queremos uma sociedade onde isso seja um critério, não é? Toda a gente tem de ser o seu lugar.
Isso é por incompreensão, seja com uma pessoa bipolar, seja porque a pessoa tem uma depressão ou um burnout? É por incompreensão da sociedade e dos outros que desvalorizam isso de alguma forma?
Não vale a pena ter discursos de raiva com os outros, não interessa nada. É ignorância. E eu percebo que seja difícil. Quando se tem um cancro ou quando se amputou as duas pernas, é uma coisa física. Olha-se e percebe-se. Não se vai dizer a um amigo com cancro no pulmão “Devias era ir correr uma maratona, até ficas a respirar melhor”.
Mas às vezes dizem-se essas coisas a uma pessoa com um problema de saúde mental.
Só se dizem porque não é uma coisa física. Diz-se muito às pessoas com depressão clínica: “Toma um duche, sai de casa”. Isso é uma violência. Para já, está-se a atribuir uma culpa: “É porque não tomas banho e não sais de casa que estás assim”. E depois, de facto, olha-se para a vida das pessoa e diz-se: “Mas estás triste porquê?”. E ficamos muito perplexos quando alguém com cinco filhos lindos se atira de uma falésia, não é? Não se percebe muito bem. Há essa parte. E a coisa, se calhar, positiva da pandemia é que, como vamos todos “fritar”, vamos todos perceber: “Ai isto é assim? Que horror, então afinal não basta nada tomar um duche e sair de casa”. Estamos todos a aprender. Mesmo esta porcaria das redes sociais, anda toda a gente a chamar todos os nomes a toda a gente. Há gente que não é boa, mas a maior parte das pessoas fá-lo por ignorância. Vamos sentar as pessoas um bocadinho e explicar-lhes porque é que não devem ser sexistas, misóginas, homofóbicas, racistas — vamos fazer esta ponte. Já estamos tão despertos para estes temas, se calhar também temos de dar importância à parte da saúde mental. É uma forma de ser diverso, é uma forma de ser diferente. A parte mais dolorosa da minha experiência tem sido os amigos que perdi, por exemplo, por causa de uma série de características minhas. É a parte mais triste. Mantive muitos, que são os mais preciosos, mas houve muitas pessoas que perdi ao longo da vida, porque não consigo atender o telefone, porque não me apetece ir não sei onde, porque em fases da minha vida, como agora… Estou aqui a falar e agora precisava de estar seis horas calado e fechado na minha casa depois de ter estado três horas a falar na rádio — e agora estamos aqui a falar, ainda por cima de coisas muito íntimas. O contraponto disto é que tenho de estar calado durante muito tempo. Portanto, os amigos ligam para almoçar e eu não consigo atender, não quero ir almoçar, e percebo que é difícil numa amizade aceitar isto. E fui aceitando o bullying — eu cheguei, há muito pouco tempo, à conclusão de que isto é uma forma de bullying, inconsciente e de um sítio bom, mas pessoas boas podem ser tóxicas. Nós todos temos isso na nossa vida. E há alturas em que temos de pensar: “Esta amizade é tóxica, esta pessoa está a dar-me uma mensagem errada, isto faz parte das minhas necessidades”. Durante muito tempo tive amigos que me diziam assim: “Mas a tua necessidade de não atender o telefone, por exemplo, ou de não falar, não responder, não pode ser maior nesta amizade do que a minha necessidade de estar contigo”. E levei muito tempo a pensar: “Pode. E é. E vai ser”. Mas é um caminho, também. Porque é preciso coragem, de certa maneira. Podem perder-se pessoas na vida.
A sua profissão agrava isso, no sentido em que, quando o vemos publicamente, vemo-lo a fazer humor, com entusiasmo e com a sua gargalhada típica? Porque há um bocadinho aquela ideia que nos leva a pensar: “Mas esta pessoa é tão feliz… Como assim, tem momentos de depressão?”.
Sim, mas estou a falar de amigos que já passaram essa fase, que me conhecem melhor do que isso e que nem sequer exigem que eu seja divertido no dia a dia. Acho que tem um bocadinho a ver com a falta de fazer essa ponte, de perceber as características de alguém, e o meu pecado de não ter transformado isto numa característica identitária externa. Isto sou eu. Não vou dizer “Sou bipolar, por isso preciso de não atender o telefone”, não tenho essa dinâmica. Às vezes chego a dizer isto, numa tentativa de dizer “Vamos lá falar do que está aqui”, mas também não gosto muito de o fazer.
Falou há pouco sobre as pessoas que dizem “o tempo hoje está um bocadinho bipolar”, ou “o meu chefe é um bocadinho bipolar”. Isso irrita-o ou compreende que é só ignorância?
É um bocadinho aquela conversa: não percamos tempo com pormenores. O discurso é importante, estamos a viver esse tempo, de deixarmos de dizer certas coisas. É só pormo-nos na pele dos outros, não é simpático ouvirmos coisas horríveis na televisão ou no discurso público e político. Acho que há uma associação que escreveu para o Parlamento para pararem de usar a expressão bipolar e autista no discurso político — não pararam, mas pronto. Acho importante, mas não deixa de ser acessório e às vezes até contribui para esta coisa do “Ai, que maçada, agora não se pode dizer nada”. Não me chateia e dá-me margem para, no politicamente correto, que é uma coisa positiva, dizer “atrasado mental”, que é a minha expressão favorita. Adoro dizer “atrasado mental”, “sou um bocado atrasado mental”. Então, posso dizer.
Se isso é uma questão mais simbólica, o que é que acha que falta na forma como o país lida com as questões da saúde mental?
É fundamental dar-se mais valor à saúde mental. Na bipolaridade, por exemplo, estamos a falar de uma doença em que — eu não sei se os números são gerais, o que eu digo se calhar não é muito exato, mas em traços gerais — para aí 30% das pessoas não conseguem ter uma vida dita normal, funcional. Ter um trabalho, ter relações próximas — lá está, por causa daquilo que há pouco dizíamos, porque não conseguem arranjar trabalhos ou porque não conseguiram, por exemplo, acabar a escola com sucesso ou fazer um curso superior, por muitas razões. E um dos tratamentos para controlar a bipolaridade é, para além da medicação, que é gratuita em Portugal, a terapia para sempre, pelo menos uma vez por semana. Quem é que faz isso?
A terapia não é gratuita.
De todo. Só uma pessoa rica é que consegue fazer isto. Nem a classe média, se calhar, aguenta fazer isto. Uma pessoa com um ordenado de — como é que é? — 3.800 euros, que é o ordenado base de um jovem? É muito difícil.
Logo à partida há um entrave para um tratamento sério das pessoas.
É preciso à partida perceber isto. Há doenças como a esquizofrenia, por exemplo, que são altamente incapacitantes, não sei se não é incapacitante a 100%. Isto tem de ser tratado. E a incidência de suicídios nas pessoas com este tipo de condições é gigantesca, entre os jovens e os adolescentes. Enfim, é tudo péssimo. Portanto, isto tem de ser tratado obrigatoriamente pelo Estado. Mas acho que mais amor e mais compreensão é a chave para tudo. É o mínimo. Aceitarmos a diferença. Porque todos nós somos diferentes. Eu às vezes penso tanto naquela coisa dos refugiados e do discurso populista contra os refugiados, e fico a pensar: “Como é que isto é possível?”. Às vezes penso que toda a gente é refugiada, de certa maneira. Aqueles são refugiados com menos sorte. Mas nós todos somos refugiados fisicamente, dos nossos países, da nossa família, emocionalmente, amorosamente, todos nós algum dia fomos refugiados, no sentido figurado ou físico. E todos nós gostaríamos de ter alguém que nos acolhesse em casa, não é? Por isso, é só ter um bocadinho mais de empatia e de respeito.
É essa a chave para saber lidar com a saúde mental dos outros, ter um bocadinho de empatia?
Acho que sim. E percebermos que todos nós temos alguma coisa que nos torna diferentes. E isso é bom. Mesmo quando dizemos “as outras pessoas”, “os outros”. Isso não existe. Cada pessoa, isoladamente, tem qualquer coisa que sabe que a torna diferente. É só pensarmos o que será que nos faz diferentes — se calhar em mim é isto, se calhar até nem é. Se calhar é outra coisa qualquer que, às vezes, ao tentar encontrar-me a mim próprio atribuí à bipolaridade. Se calhar sou diferente por outras coisas quaisquer. Who knows?
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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