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Quando em 1956 se iniciaram os preparativos para a Expo 58, a ter lugar em Bruxelas, na Bélgica, abria-se um caminho de viragem para a Europa. Esta seria a primeira feira de escala global realizada desde o final da Segunda Guerra Mundial, com o intuito de celebrar o rejuvenescimento e a reconstrução do velho continente, através do uso da tecnologia. Num tempo de vanguarda em termos arquitetónicos, a gigante tecnológica Philips juntava-se a essa jornada de mudança, mas ao invés de tentar concorrer com uma postura puramente comercial, propôs-se a criar uma experiência contemporânea para os milhões de visitantes que se aguardavam.
Num serviço às artes – como apelidaram desde logo – convidaram Le Corbusier que rapidamente reuniu uma equipa singular. E o objetivo foi deixado claro pelo famoso arquiteto: “Não irei fazer um pavilhão, mas sim um poema eletrónico – um recipiente de camadas, com luz, cor, imagem, ritmo e som”. Ocupado com outros projetos, nomeadamente com o planeamento da cidade indiana de Chandigarh, Le Corbusier deixou grande parte do projeto do futuro pavilhão entregue ao seu protegido Iannis Xenakis, que entrara no seu atelier em Paris dez anos antes, a partir de onde se vinha a afirmar, desde então, como um dos artistas emergentes do seu tempo, não apenas na arquitetura, mas também no campo da composição musical.
Com a colaboração do compositor Edgar Varèse, a quem foi dada a tarefa de compor a banda sonora que se iria escutar no interior do projeto, chamado Poème électronique, o desenho do arquiteto grego para o pavilhão recorria aos princípios utilizados na composição musical Metastasis (1953-1954), assinada pelo próprio Xenakis dois anos antes. O Pavilhão Philips, como se viria a chamar, surpreendia pela escala e pelas linhas vanguardistas, provenientes de um algoritmo matemático, naquilo a que muitos associavam à forma do estômago de uma vaca. A experiência de som e luz que envolvia o público ao longo de oito minutos foi um verdadeiro sucesso. Durante quatro meses, recebeu cerca de 1,5 milhões de visitantes e foi a grande atração do evento.
Naquele que é atualmente um dos projetos mais recordados e celebrados de Xenakis, estavam os conceitos base para se entender a obra deste multifacetado artista, que se estenderia ao longo da segunda metade do século XX: a arquitetura, a matemática e música. Elementos-chave para recontar uma vida, cujo centenário se celebra este ano um pouco por todo o mundo, tal como acontece agora em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, que inaugura esta sexta-feira, 2 de dezembro (visitas a partir de sábado, dia 3), a exposição “Révolutions Xenakis”, patente até março de 2023.
Uma revolução em documentos
Ao entramos na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian, salta logo à vista a maquete do Pavilhão Philips, projeto que iria ditar o fim da relação artística com Le Corbusier, mas que dava a conhecer ao mundo a transdisciplinariedade de Xenakis. Além dessa maquete, vislumbram-se vitrines repletas de cartas, desenhos e fotografias, numa mostra que assume um carácter documental e em que se dá a conhecer a génese, o contexto e o processo criativo das notáveis peças sonoras daquele que se tornaria um dos compositores mais inovadores e influentes do século passado — e a quem a Fundação Gulbenkian encomendou mais de uma dezena de peças.
Em coprodução com a Philharmonie de Paris – Cité de la Musique, a exposição com curadoria de Mâkhi Xenakis, filha do compositor, e Thierry Maniguet, divide-se em seis núcleos, que exploram as numerosas facetas deste artista singular, cuja vida foi quase sempre mapeada pela força da resistência e procura pela inovação. Numa visita guiada à imprensa, o diretor do Centro de Arte Moderna da fundação Benjamin Weil apelida-a de “documentário tridimensional”, onde se evoca um espírito artístico que ainda hoje mantém uma influência notável na criação artística contemporânea.
“Celebramos este ano o centenário de um homem extraordinário que, como engenheiro, matemático, arquiteto e compositor de música, levou a cabo uma obra fora de série que combina as suas capacidades para criar experiências de música, integrando o espaço como parte das suas composições”, sintetizou Benjamin Weil, que destacou igualmente “a recriação moderna de uma peça histórica, ‘Polytope de Cluny’, uma obra revolucionária apresentada em 1972, há precisamente 50 anos”, programada em vários concertos que irão acontecer no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, na sexta-feira e no sábado, dias 2 e 3 de dezembro.
Em ligação aos concertos, a exposição faz-se acompanhar por isso de uma instalação de arte digital realizada pelo ateliê francês ExperiensS, que funcionará, em intervalos de tempo regulares, como um curto-circuito do processo cenográfico, cobrindo o teto e as paredes do espaço central da mostra, numa transposição dos célebres espetáculos de luz e som – polítopos – para a atualidade. Já numa outra ponta da galeria está também a recriação do estúdio onde Xenakis desenvolveu o seu trabalho, com os livros da sua biblioteca que dão testemunho da paixão que alimentava pelas culturas grega e não-europeia, e também pela música, filosofia, natureza, arquitetura e matemática, que oferece a atmosfera íntima do seu espaço criativo.
Sobre este aspeto da exposição, Mâkhi Xenakis, filha do compositor e guardiã do acervo do pai, explicou que um dos objetivos era “mostrar o lado mais íntimo e pessoal de Xenakis”. “No seu estúdio, ele precisava sempre de estar rodeado de certos objetos, pinturas, livros e fotografias que lhe eram importantes. Têm um significado muito grande na sua obra. Falam dos sítios por onde passou e dos símbolos que retirava desses locais”, diz, revelando a motivação de trabalho do pai, que não se esgotava. “Onde quer que estivesse, estava sempre a trabalhar e a criar.”
Em diálogo com a Gulbenkian
Em “Révolutions Xenakis” evidencia-se igualmente a relação entre o compositor e a Fundação Calouste Gulbenkian, sobretudo por força da diretora do Serviço de Música da Fundação, Maria Madalena de Azeredo Perdigão, que reconheceu imediatamente a reputação internacional de Xenakis. Foi dela que surgiu, em 1967, o convite para a composição de uma obra, intitulada Nuits (1968), e que teve um enorme êxito quando foi apresentada, na edição desse ano do Festival Internacional de Arte Contemporânea de Royan, marcando o começo de uma relação que iria manter-se até ao fim da sua vida.
“Por toda a relação que se estabeleceu com a fundação, Xenakis faz parte integral da parte mais vanguardista e inovadora que a Gulbenkian quis apoiar desde cedo”, realçou Benjamin Weil ao Observador, referindo como foi um subsídio atribuído à Équipe de Mathématique et d’Automatique Musicales (EMAMu), que permitiu a Xenakis adquirir um leitor de fita magnética e criar a música para o prelúdio de “Polytope de Cluny“. A relação de Xenakis com a fundação não mais terminou até ao final da sua vida. De todos os compositores internacionais a quem a Gulbenkian encomendou, Xenakis foi aquele que recebeu mais comissões (11, no total), o que faz da Fundação a instituição que mais contribuiu financeiramente para a composição das obras do grego.
Um classicista na vanguarda
Apaixonado pela antiguidade grega — “nascido com vinte e cinco séculos de atraso”, como o próprio afirmava — Xenakis foi um criador na vanguarda da modernidade radical. Parte disso deve-se também ao facto de ter experienciado um início de vida onde a palavra “resistência” se fundiu com um mote de criação único. Nascido em 1922, em Brăila, na Roménia, no seio de uma família grega, foi a morte prematura da sua mãe, Photini, em 1927, que fez com que Iannis e os seus dois irmãos mais novos fossem deixados ao cuidado de precetoras, antes de serem enviados pelo pai, Clearchos, para um colégio interno na ilha grega de Spetses.
Anos mais tarde, mesmo antes do início da Segunda Guerra, conclui os estudos em engenharia civil na Universidade Técnica Nacional de Atenas e junta-se à resistência contra a ocupação alemã e, posteriormente, britânica. Gravemente ferido em janeiro de 1945 pelos estilhaços de um obus de um tanque britânico, é forçado à semiclandestinidade antes se exilar em França, no outono de 1947. Na Grécia, é condenado à morte por contumácia “a título político e como terrorista”.
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No exílio e sem documentação, o jovem trabalha no ateliê de Le Corbusier como engenheiro e, posteriormente, como arquiteto. Pelo seu interesse, encorajado desde muito cedo pela mãe, no campo da música, segue os ensinamentos de Olivier Messiaen (1951-1954) e beneficia do apoio do maestro Hermann Scherchen (a partir de 1954), a quem deve a criação de muitas das suas primeiras obras: Pithoprakta (1955-1956), Achorripsis (1956-1957), Analogique B (1958-1959). É também nessa década que casa com a romancista Françoise Gargouil e nasce a filha do casal, Mâkhi.
Nas décadas seguintes, e defendendo o conceito de “aliagens”, como lhes chamava, Xenakis cruza as artes e as ciências, criando uma obra musical e arquitetónica ímpar. Não mais deixou de desenvolver um léxico próprio e de trabalhar com novas tecnologias, como o UPIC, o primeiro sintetizador gráfico, que lhe permitiram ser um dos compositores mais visionários da sua época. Torna-se um emblema da modernidade, sem nunca esquecer origens ou remeter ao esquecimento o seu gosto e apetite estético pela Idade Clássica. Sempre em forma de revolução, o compositor, que viria a morrer em 2001, recorre à matemática dos jogos, imaginando o princípio de peça musical aleatória, cujo conteúdo é fixado apenas durante a sua execução. A sua abordagem inédita ao espaço e ao tempo na conceção dos espetáculos faz dele um dos fundadores da arte digital.
Num texto, com origem numa entrevista, publicado em 1980, Xenakis mostrava a convicção de que o futuro da música estava intimamente ligado à tecnologia: “Todas as experiências a que me entreguei ao longo dos últimos anos levaram-me à convicção de que o futuro da música está ligado ao progresso da tecnologia moderna. Esta irá transformar tanto a criação como a audição da música”. Cem anos depois do seu nascimento, a revolução que hoje tem o seu nome cravado permanece como afirmação de um futuro que anteviu e que está bem presente hoje. Prova disso mesmo é que as suas criações continuam a ser admiradas (inclusivamente copiadas) como manifesto de uma liberdade e inconformismo, de uma atitude dissidente que, afinal de contas, se fez mote para um entendimento mais universal sobre o que é a arte, em especial a criação musical, e o que pode a arte fazer num mundo onde se procura cada vez mais esbater fronteiras.