A 3 de junho num debate quinzenal António Costa foi confrontado com a pergunta: O que aconteceu ao Fundo Nacional para a Reabilitação do Edificado que foi lançado em 2016 com a ambição de recuperar 7.500 casas para habitação, em particular para o arrendamento acessível. Quantas casas foram reabilitadas?, quis saber o deputado Adão Silva do PSD. Confrontado com números que anunciou em 2016, pouco tempo depois de chegar ao poder, o primeiro-ministro reconheceu que a pergunta era boa, mas acrescentou que precisava de procurar a resposta que depois iria enviar.
Adão Silva insistiu: “Este fundo tinha um financiamento previsto de 1.400 milhões de euros do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. Em 2017 estava prevista a transferência de 50 milhões de euros, valor que foi replicado nos orçamentos dos anos seguintes até atingir 200 milhões de euros. Quanto dinheiro do fundo da Segurança Social foi transferido? Costa voltou a prometer uma resposta que, segundo confirmou ao Observador o deputado social-democrata, não chegou. O investimento da Segurança Social foi de 7,1 milhões de euros em 2019, como noticiou em julho o jornal Público, e nenhuma obra tinha sido até então concluída.
Este valor também tinha sido adiantado ao Observador pelo presidente da sociedade gestora, a Fundiestamo, uma empresa detida pela holding do Estado Parpública. Eduardo Júlio revelou em junho que está mais dinheiro previsto, 20 milhões de euros este ano, mas a sua mobilização dependia ainda de vários fatores, alguns dos quais tem vindo a emperrar o andamento de um projeto que “faz todo o sentido”, defendia o primeiro-ministro, mas que tarda em sair do papel.
Depois de quatro anos de tempo aparentemente perdido, mas que foi efetivamente gasto em muitos procedimentos, pedidos, autorizações e reavaliações de projetos e modelos de negócio associado, o Fundo parece estar pronto a arrancar com 170 imóveis que serão disponibilizados nesta legislatura, acreditam os responsáveis, para o fim a que sempre se destinaram: o reforço da oferta no mercado de arrendamento.
Na passada quinta-feira, em Conselho de Ministros, o ministro Pedro Nuno Santos e a (ainda) secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, – que foi remodelada nesse mesmo dia, horas depois – anunciaram a aprovação de dois decretos sobre habitação, sendo que um deles abre caminho à criação de uma bolsa de imóveis do Estado para fins de habitação. Ou seja, o Estado admite – como admitiu Pedro Nuno Santos no briefing que se seguiu à reunião – que não sabe, ou “sabe mais ou menos” nas palavras do ministro, qual é o seu património imobiliário. Ou melhor, não sabe em que condições está o património que tem.
Ainda assim, em nenhum momento no briefing do Conselho de Ministros se disse algo que pudesse indicar que a criação desta base de dados de imóveis do Estado com características para habitação vai chocar com o Fundo Nacional para a Reabilitação do Edificado, nem sobre a forma como podem ser usados em conjunto. Só a publicação dos decreto aprovados poderão deitar mais luz sobre o assunto.
Exigências processuais, administrativas e outras
A pergunta feita por Adão Silva ao primeiro-ministro já tinha sido feita pelo Observador ao presidente da sociedade gestora, a Fundiestamo ao longo dos meses anteriores. Sem negar que não houve qualquer projeto de recuperação concluído e colocado no mercado, Eduardo Júlio foi dando explicações para o tempo que o processo tem demorado e para as vicissitudes que atravessou.
Nas primeiras respostas dadas em abril, o presidente da entidade gestora justifica o racional. “O Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE) foi pensado como um instrumento virtuoso, na medida em que dá resposta a um problema social grave: a carência de habitação acessível, em particular nos centros urbanos, sem para tal recorrer ao Orçamento do Estado.
O presidente da Fundiestamo descreve um percurso moroso com muitas exigências processuais e administrativas — desde 2017 quando recebeu (do Governo) a incumbência de constituir e gerir do fundo, “houve que nomear um Conselho de Administração, reestruturar a sociedade, elaborar o Regulamento de Gestão do FNRE e aprová-lo junto do regulador, a CMVM (o que aconteceu em agosto de 2018), e foi preciso divulgar o instrumento junto dos potenciais interessados. Júlio Eduardo destaca ainda a necessidade de autorizações do Tribunal de Contas, para além do processo de constituição dos próprios subfundos para cada um dos projetos.
Também a então ainda secretária de Estado da Habitação que tem o pelouro deste instrumento desde 2016, Ana Pinho, deu justificações para o parto difícil do FNRE. “Só o processo de elaboração do regulamento do fundo demorou três anos”, referiu a responsável numa audição realizada no dia 29 de abril.
“Uma coisa é dizer-se que se vai criar um instrumento outra coisa é ele estar a operar”, reconheceu a secretária de Estado, que usou a expressão “odisseia de papel” para descrever os processos associados ao fundo. Entre os exemplos que deu está a situação de um dos primeiros subfundos constituídos com um município do PSD, em relação ao qual o visto do Tribunal de Contas demorou um ano.
“Como estamos a falar de imóveis em mau estado, parte dos quais caiu entretanto, foi necessário fazer um novo plano de negócios e a exploração de alguns destes imóveis podem ter deixado de ser viáveis para fazerem parte deste instrumento”, sublinhou a secretária de Estado da Habitação. “Temos, de facto, sempre uma odisseia de papel, seja a nível de projeto, seja do procedimento que temos de cumprir”, justificou na altura Ana Pinho.
Imóveis em mau estado, obras mais caras e remuneração baixa para a Segurança Social
Em junho de 2019, o antigo hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, encerrado desde 2011, foi inserido num pacote de 29 edifícios públicos para os quais está prevista a conversão em projetos de renda acessível. Na altura, o ministro que tem a tutela da habitação desde 2018, Pedro Nuno Santos, afirmou:
“Aquilo que decidimos fazer é o óbvio que nunca tinha sido feito. Recuperar imóveis devolutos de diferentes ministérios – Finanças, Defesa, Administração Interna, antigos hospitais e quartéis – que integraremos no Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE). Serão reabilitados e colocados para arrendamento acessível dirigido à classe média”.
Mas nem sempre o “óbvio” se materializa como previsto e, no caso deste fundo, a burocracia não terá sido o principal obstáculo. Pelas explicações dadas percebe-se que houve uma combinação de pressupostos que evoluíram de forma distinta da prevista pelos promotores. Uma das condicionantes mais fortes foi o estado de degradação de muitos imóveis públicos que foram inicialmente avaliados, e que por isso exigiam obras de grande dimensão, elevando o investimento necessário para a sua reconversão. Ainda por cima com o custo destas intervenções a subir.
Já em 2018, o antigo presidente do IRHU alertava em opinião para o que considerava o “estranho caso” do Fundo de Reabilitação Urbana.
O estranho caso do Fundo de Reabilitação Urbana anunciado pelo Governo
“Com efeito, o enorme aumento do custo das obras, registado em poucos meses, fez com que imóveis sinalizados por autarquias, IES (instituições de ensino superior) e outras instituições públicas, localizados fora dos grandes centros e em avançado estado de degradação, fossem considerados inviáveis”, reconheceu Eduardo Júlio. O aumento dos custos comprometeu em muitos casos as elevadas exigências de rentabilidade que tinham de estar garantidas para captar os recursos financeiros do fundo da Segurança Social.
Imóveis que exigem obras caras e têm de gerar elevada rentabilidade dificilmente são compatíveis com a oferta de rendas acessíveis que era o principal objetivo deste Fundo. “Convém ainda salientar que a viabilidade de integração de um imóvel no FNRE tem de conseguir lidar com obras a preços de mercado – que nos últimos tempos subiram consideravelmente – e arrendamento abaixo do preço de mercado, o que não é exequível com a rentabilidade necessária em todos os casos”.
Esse aumento do custo levou ainda a que a integração de muitos imóveis em estado de pré-ruína localizados em centros urbanos com baixa pressão imobiliária não fosse viável, por não assegurar a tal rentabilidade mínima de 4%. No entanto, acrescenta o presidente da Fundistamo, com as alterações ao regulamento propostas, será possível viabilizar muitas destas operações”.
Também Ana Pinho assinalou esta assimetria. O preço da obra é um preço de mercado e o preço do projeto é um preço de mercado. Mas os rendimentos não são de mercado, são para o arrendamento acessível. “Por essa razão, o último ponto de situação que tenho da Fundistamo é que dos 780 imóveis sinalizados até à data, e a maior parte deles por parte de autarquias, só 170 cumpriam estes requisitos.” Os imóveis que falharam a seleção para o Fundo, que só pode incluir imóveis cuja exploração não ponha em risco o investimento da Segurança Social, passariam para o IRHU (Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana).
Em março, e já com os primeiros efeitos da pandemia a fazerem-se sentir, a Fundiestamo indicava, num esclarecimento aos candidatos selecionados para bolsas de projetistas, que estava a alterar o o regulamento de gestão para por em marcha um novo modelo financeiro e a refazer “todos os planos de negócios que se revelaram inviáveis de forma a proceder à constituição dos novos subfundos”.
Este anúncio gerou perplexidade no setor. Um dos profissionais que mostrou particular interesse neste fundo, aquando do seu anúncio, recorda ao Observador que, em setembro de 2018, tinha estado na apresentação do instrumento, mas só no início de 2019 recebeu a comunicação para a abertura de concurso para a bolsa de projetistas. O regulamento previa também a criação de bolsas de empreiteiros e de fiscalização.
O presidente da Fundiestamo confirma que propôs alterações ao regulamento de gestão do FNRE, que não põe em causa o investimento do FEFSS, mas visam alargar o universo de intervenção do FNRE. Este orçamento do Estado veio permitir que o património da Direção-Geral do Tesouro possa prescindir dos 4% de rendimento. “Se o investidor financeiro que é o Estado não pedir lucro, podemos aumentar o número de imóveis no fundo”, assinalou Ana Pinho.
Novas metas: 890 casas até 2023
De acordo com uma resposta avançada ao Observador já em em junho, o presidente da entidade gestora, Fundiestamo, Eduardo Júlio, a expetativa é a de que até ao final desta legislatura (2023) estejam no mercado 890 fogos habitacionais e 2500 camas para estudantes, com imóveis do Estado que vão ser reconvertidos para estes fins, a maioria dos imóveis que já deram origem a um fundo autónomo que irá desenvolver o projeto são em Lisboa, mas também em Aveiro e Coimbra.
Imóvel na rua da Madalena (Lisboa). Subfundo constituído, projeto submetido à Câmara Municipal de Lisboa.
Imóvel na rua dos Combatentes (Aveiro). Subfundo constituído, projeto de arquitetura licenciado pela autarquia.
Imóvel na Av. 5 de outubro (Lisboa). Subfundo constituído, projeto em desenvolvimento.
Imóvel no antigo teatro Laura Alves, rua das Palmas (Lisboa). Constituição do fundo em curso (procedimento prévio a decorrer.
Imóvel da Casa das Andorinhas (Coimbra). Subfundo em curso, com processo de destaque já resolvido.
Imóvel dos antigos Quartéis do Cabeço da Bola e de Santa Bárbara (Lisboa). Subfundo Estamo com o PIP (pedido de informação prévia) em curso que já teve luz verde da Direção Geral do Património Cultural. O pedido prévio de alteração do uso de solo foi aprovado pela Câmara de Lisboa, mas ainda tem de de ser aprovado pela assembleia municipal.
Imóvel do antigo Hospital Miguel Bombarda (Lisboa). Subfundo Estamo. Pedido de informação prévia em curso.
Sobre os anunciados investimentos de 50 milhões de euros anuais do fundo da Segurança Social aprovados anualmente desde 2017 neste fundo, Eduardo Júlio esclarece que esse era o limite autorizado, e que os investimentos concretos estavam dependentes da constituição dos subfundos (um por imóvel). Em 2019, o investimento foi de 7,1 milhões de euros e para este ano o valor a aplicar previsto atinge os 20 milhões de euros, mas a mobilização destes valores depende sempre da “prévia análise de viabilidade e concordância em investir por parte do FEFSS”.
Mas estamos a anos-luz de distância do investimento de mais de mil milhões de euros do Fundo da Segurança Social na recuperação de imóveis para o arrendamento acessível anunciado por António Costa em 2016 quando sinalizou este valor em abril, na abertura da Semana da Reabilitação Urbana em Lisboa.
Quatro anos depois, o mesmo António Costa continua a defender a diversificação de fontes da Segurança Social, que já conta com uma parte do IRC, e adicional ao IMI (não todo). O mercado de arrendamento que poderá ficar com os fundos que hoje são aplicados em dívida ou aplicações financeiras com risco superior que desta forma contribui para também para a dinamização do mercado de arrendamento com mais oferta. Por isso, defendeu no debate quinzenal em que o tema foi abordado que o racional do conceito se mantém.
Nas respostas dadas ao Observador, Eduardo Júlio explicou que os imóveis a integrar o FNRE “são imóveis devolutos, que dão despesa, e entram para o FNRE como investimento – ou seja, dando receita aos participantes – não se trata de uma aquisição, nem de despesa do Estado. Da mesma forma, as obras são custeadas com o investimento de participantes em capital, como o FEFSS, que recebem posteriormente os rendimentos da operação, e, de novo, não acarretam despesa adicional para o Estado”.
Mas também frisou que o “FNRE nunca foi apontado como uma solução para todos os imóveis públicos devolutos, mas como um instrumento muito interessante e vantajoso para aqueles imóveis cujas características permitissem a sua integração. Atendendo em particular à salvaguarda do investimento do FEFSS, e está bem patente, por exemplo, no Plano de Reabilitação de Património Público para Arrendamento Acessível (Decreto-Lei n.º 94/2019, de 16 de julho), que estipula que, sempre que a integração de um imóvel no FNRE não seja viável, a sua reabilitação será promovida pelo IHRU”.