895kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Getty Images/iStockphoto

Getty Images/iStockphoto

Inclusão e paixão: as palavras que marcam a diferença

A música é a linguagem universal que alia diversidade, diferenças e favorece a inclusão, para uma composição harmónica. Saiba como foi a última conversa sobre a escola ideal — a que é inclusiva.

“A música, enquanto linguagem universal, pode contribuir bastante para uma escola mais inclusiva”, sublinha Carla Martins, aluna de Mestrado em Ensino da Música na Universidade de Évora. A investigação acerca das relações entre a música e a mente humana tem produzido muitos, e variados, artigos científicos que demonstram incrementos “ao nível da capacidade de memorização, de concentração e até em termos de motricidade”, explica, adiantando que os benefícios se estendem a outras patologias, como as do espectro do autismo, défice de atenção e hiperatividade. Existem casos de alunos que no seu dia a dia podem sentir-se integrados através da música, da estimulação rítmica, da audição ou da descrição dos sons, evitando assim a exclusão devida a dificuldades de aprendizagem, que não os deixam acompanhar a maioria dos colegas.

“A música, enquanto linguagem universal, pode contribuir bastante para uma escola mais inclusiva"
Carla Martins, Aluna de Mestrado em Ensino da Música na Universidade de Évora.

Para Carla, a música é a linguagem universal. Não só porque o universo das pautas, unidades de compasso e notas musicais é igual em todo o mundo, mas também porque é a linguagem das emoções. “Todos nós sentimos algo quando escutamos um cantor, um instrumentista ou até mesmo o simples barulho da chuva”, explica a jovem universitária a propósito das associações emocionais, positivas ou negativas, que se podem estabelecer entre as músicas e experiências.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É uma trabalhadora estudante que, aos 22 anos, divide o tempo entre ensaios, estudo de partituras, planeamento de aulas, estágio e trabalhos escritos. Usado durante muitas horas, quer seja para dar aulas ou nos ensaios de reportório, o seu instrumento mais precioso é a voz. O aquecimento é feito ao piano, antes de estudar técnica vocal, “ainda na parte da manhã”, período em que é mais saudável para as cordas vocais, de modo a evitar lesões e a prevenir o cansaço vocal.

Um dia típico inclui as aulas, presenciais ou online, do mestrado em Ensino da Música, sendo que as tardes são sempre preenchidas a dar aulas de música a alunos do Ensino Básico ou a estagiar no Conservatório Regional de Évora – Eborae Mvsica. Ao anoitecer, é tempo de “planear as aulas do dia seguinte, avançar com o estudo das árias de ópera, memorizar as letras que normalmente estão em alemão, francês, italiano, enfim, aprender a melodia e ouvir várias gravações distintas,” conta a maestrina.

A paixão pela música, principalmente pelo canto, começou muito cedo, embora de uma maneira inconsciente. Lembra-se de assistir aos ensaios de um grupo coral religioso na vila de São Romão, no concelho de Seia, de onde é natural. Conta-nos que permanecia imóvel a ouvir o grupo coral, como se fosse transportada para outra dimensão, onde o tempo não importava, “tinha apenas quatro ou cinco anos”. Posteriormente, todas as canções que aprendia, desde o jardim de infância à escola primária, ecoavam-lhe na cabeça, e “quando chegava a casa, cantava sempre para a família”, em que nenhum elemento tem qualquer ligação à música, refere Carla Martins. Lembra-se de passar horas a praticar sozinha e de uma professora primária do 4.º ano, do ensino básico, que realçou o “jeito” que tinha para a música. Foi esta professora que falou com os tios paternos, e encarregados de educação, para que no ano seguinte pudesse entrar no Conservatório de Música de Seia, o Collegium Musicum.

Foi um processo atribulado, sem grande apoio da família, até conseguir inscrever-se e iniciar um percurso de oito anos a estudar guitarra clássica com o professor Manuel Cravo e, paralelamente durante dois anos, “com o segundo instrumento: a voz”, como gosta de se referir às aulas de canto, com a professora Ludovina Fernandes.

Aos quinze anos, decidiu continuar o conservatório e prosseguir o estudo da guitarra, embora continuasse a perseguir o sonho do belcanto. Continuou as fazer as duas coisas, praticando sempre que conseguia. Antes de ingressar no ensino superior, lembra o momento em que teve de fugir de casa, para ir fazer as provas de acesso, contra a vontade da família. Hoje, sorri, quando se recorda da repreensão que levou ao chegar a casa mais tarde, naquele dia.

Embora com pouca experiência e apenas dois anos de aulas de canto, a concorrer com pessoas que tinham mais de cinco ou seis anos de experiência, Carla Martins foi aprovada nas duas universidades a que se tinha candidatado: a Escola Superior de Artes Aplicadas (ESART), em Castelo Branco, e a Universidade de Évora, ambas na licenciatura de Música, variante de interpretação de canto lírico.

Já conhecia as professoras de canto de ambas as universidades e confessa que tomou a decisão com o coração. “Algo me dizia para optar por Évora… Não sei explicar porquê. Sentia que era a decisão certa.” A emoção surge omnipresente no discurso de Carla Martins, afinal é preciso textura de sentimentos para brilhar na interpretação de qualquer obra musical, em especial quando falamos de canto lírico.

Durante a licenciatura, teve oportunidade de evoluir tecnicamente em canto com a professora Liliana Bizineche, teve oportunidade de atuar em vários concertos e participar em alguns grupos de canto coral. Fez aulas particulares com outros professores e participou em masterclasses com cantores internacionais, mas a experiência mais forte aconteceu no último ano de licenciatura: a passagem na audição, a nível nacional, por ocasião das comemorações dos 125 anos do Teatro de São Luiz, em Lisboa, na ópera “Le fille du tambour major”, de Jacques Offenbach. Carla guarda no coração a experiência que lhe permitiu “conhecer de perto a montagem de uma ópera, conviver com cantores líricos portugueses de renome, conhecer colegas de trabalho”.

Num ano marcado pela crise pandémica, a jovem maestrina beneficiou do apoio do fundo de emergência Covid-19 Santander/Universidade de Évora, que atribuiu 50 bolsas a estudantes que tenham registado quebras nos seus rendimentos financeiros, passíveis de colocar em risco a continuidade dos seus estudos. Carla considera que esta é uma “lufada de ar fresco” perante as adversidades dos tempos que correm, não só pela pandemia, mas também pelas incertezas quanto ao futuro.

Acredita que a mudança no mundo é conseguida é “através da profissão, do propósito de cada um, da vontade de melhorar o dia a dia dos que nos rodeiam” Continuar a investir, e a acrescentar algo de novo na vida das pessoas que por nós se cruzam. Enquanto maestrina de um grupo coral sénior, Carla fala da felicidade que sente ao ver como “aquelas pessoas estão felizes enquanto cantam, como se sentem ocupadas e úteis, porque estão a aprender algo de novo”. O mais importante é fazer com que todos se sintam integrados nas aulas. Para isso, Carla proíbe o clássico “não sou capaz”, porque não admite que alguém se sinta inferior ou constrangido nas suas aulas. “O segredo é sentirmo-nos úteis interiormente e apaixonarmo-nos pelo que fazemos todos os dias, a revolução começa sempre pelo nosso interior”, conclui a jovem.

Dona de um percurso marcado pela vontade e pela resiliência, “graças a bons pedagogos e ao reconhecimento das dificuldades pessoais que queria ultrapassar”, Carla Martins sabe que a vida no mundo das artes em geral, e na música em particular, é uma corrida de obstáculos, seja porque o investimento na cultura é reduzido, seja pela escassez de oportunidades. E deixa o conselho de “continuar convictamente, apesar das adversidades, com resiliência, humildade e cooperação, para que a cada dia continuemos a trabalhar com o mesmo afinco”.

O exemplo de Carla Martins e o papel que a música pode desempenhar na construção de projetos pedagógicos mais inclusivos enquadram-se perfeitamente no tema da última Conversa Solta, em ambiente virtual, intitulada “A melhor escola do mundo é a que promove a inclusão.”

Hoje Conversas. Amanhã és Pro” foi o mote deste projeto que reuniu o Santander e o Observador para produzir uma série de conversas em ambiente virtual (COVID-19 oblige), ao longo dos últimos seis meses, acerca do tema da Educação. Na última conversa, a jornalista Laurinda Alves conversou com Cristina Louro, socióloga e presidente do júri do Prémio Santander de Voluntariado Universitário, Susana Martins, Técnica Superior de Educação Especial e Reabilitação Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças, e Tiago Forjaz, head-hunter, speaker da Singularity University e criador do MighT. Mais uma vez reunidos à distância, os especialistas partilharam experiências e estimularam a reflexão acerca da importância de investir mais em projetos pedagógicos inclusivos, que reforcem a aceitação da diferença como uma vantagem para a nossa vivência em sociedade, hoje e no futuro.

Aceitar, mais do que tolerar

Terapeuta há quase 30 anos no Centro de Desenvolvimento Infantil “Diferenças”, Susana Martins acha que, em Portugal, “temos das melhores legislações e somos até o país que, talvez, melhor inclua em termos de escola, estes jovens, naquilo que é o ensino regular”. Contudo, este é um processo muito complexo no qual é preciso ter em conta as dificuldades dos professores para conseguirem gerir os ritmos de aprendizagem e adotar estratégias diferenciadas para cada caso.

A entrada de alunos com necessidades específicas no ensino regular aumentou bastante nos últimos anos, mas o acompanhamento dos recursos humanos necessários e dos serviços que têm de ser alocados para estas escolas não tem sido feito a par com aquele crescimento. Além disso, “o número de docentes não aumentou”, diz Susana, constatando que “há muito mais jovens a entrar no ensino regular” e ainda bem, porque “é onde aprendem muitos comportamentos e a socializar com os seus pares”. As escolas têm poucos recursos, os professores não estão ainda, todos, devidamente preparados para fazer com que os alunos atinjam os seus diferentes objetivos e cheguem ao mesmo sítio num processo exigente e diferenciador.

Para Tiago Forjaz, devemos, desde logo, pensar a escola inclusiva pelo prisma da diferença e não da deficiência. É preciso compreender que as pessoas que têm diferenças cognitivas ou que lidam com limitações nas suas capacidades físicas aparentes começam por sentir algum tipo de barreira pelo uso do termo deficiência. As pessoas com perturbações do espectro do autismo “têm uma capacidade imensa de atenção ao detalhe, por isso há empresas de programação que recorrem a pessoas com essas diferenças para rastrear código” e identificar erros em grandes séries de dados.

A escola, tal como a conhecemos, “foi desenhada numa lógica industrial”, com o objetivo de preparar pessoas para carreiras.  Neste sentido, o gestor entende que a escola deve preparar seres humanos, na sua dimensão plena, e não exclusivamente profissionais competentes. Lamenta que ainda não tenhamos muita noção de como podemos aproveitar a diversidade das pessoas; afinal, o” segredo da inclusão é juntar a diversidade e a diferença”.

Numa era em que o trabalho se desenvolve cada vez mais através de redes colaborativas, Tiago sublinha que o ambiente profissional deve ser “menos sobre a competição e as competências, e mais sobre as relações”. Evoca Adriano Moreira no dizer que “a licenciatura é uma licença para estudarmos sozinhos,” reforçando que atualmente todos aprendemos uns com os outros num registo de aprendizagem contínua que só tem a ganhar quando incluímos a diversidade e as diferenças dos outros.

As escolas devem constituir-se como laboratórios relacionais e de halofilia, conceito que sugere a impossibilidade de sermos, simplesmente, tolerantes perante a diferença. Devemos antes aceitar a diferença, de forma apaixonada. “Precisamos de ter um olhar de turista”, disse Tiago Forjaz, referindo-se à forma como aceitamos o que é estranho e nos apaixonamos pelo que é diferente, sempre que fazemos uma viagem a um país exótico.

Desmistificar a diferença

Com uma longa carreira dedicada à integração de crianças e jovens no ensino regular, desde 1972, Cristina Louro recorda o pioneirismo do Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian, onde trabalhou, numa época em que as crianças com paralisia não podiam ir além da 5.ª classe, como se designava na altura o primeiro ano do segundo ciclo.

Recorda o tempo em que “ia às escolas convencer os dirigentes de que era uma mais valia ter aqueles miúdos nas salas de aula”, destacando o papel de Ana Maria Bénard da Costa, que já era professora de ensino especial e “resolveu fazer cursos para professores do ensino regular”, de modo a permitir que os alunos fossem integrados já num meio mais estruturado.

A inclusão de jovens com algum tipo de diferença no sistema de ensino regular foi sendo progressivamente incentivada, e muitos jovens começaram a ter experiências que jamais teriam caso não tivessem sido integrados.

A socióloga conta que foi preciso desenvolver o mesmo tipo de abordagem para a integração no desporto e para tratar questões sensíveis, como as do amor e da sexualidade, tema complexo, porque “a sociedade pensa que eles são eternas crianças”.

“A sociedade pensa que eles são eternas crianças”
Cristina Louro, Socióloga, Presidente do Júri do Prémio Santander de Voluntariado Universitário

Recorda o seminário que organizou em 1985, “com peritos internacionais, para que se lembrassem que a vida afetiva e sexual das pessoas com deficiência é igual à de qualquer outra pessoa”.

A escola tem de ser universal, através de currículos flexíveis, deve ser capaz de dar as mesmas oportunidades a todos, mas a solução não pode ser única. “Nós vamos ter de talhar a solução, consoante o aluno que tivermos”, sublinha a terapeuta e consultora do neurodesenvolvimento. Todos os alunos têm o seu talento. Susana Martins gosta de lhe chamar o “efeito de cada aluno”, mas os professores não estão preparados para fazer uma adaptação a cada um.

A especialista defende que “as escolas deviam ser acreditadas por estas boas práticas, através da atribuição de um selo de escola inclusiva, se a escola cumprir determinados critérios”, como por exemplo, ter um terapeuta dentro da sala para ajudar a mudar a metodologia de intervenção. Esta acreditação, além de responsabilizar mais as escolas, também pode ter um efeito aspiracional e gerar um efeito multiplicador, porque os pais ficam mais satisfeitos quando se trata de uma escola inclusiva. “O motto das escolas devia ser dizer sim, por princípio, às pessoas diferentes e com necessidades específicas”, sublinha Susana Martins.

“As escolas deviam ser acreditadas por estas boas práticas, através da atribuição de um selo de escola inclusiva, se a escola cumprir determinados critérios”
Susana Martins, Técnica Superior de Educação Especial e Reabilitação, Centro de Desenvolvimento Infantil “Diferenças”

Por sua vez, Tiago Forjaz acrescenta que “ser diferente não é obrigatoriamente ser melhor” e não tem de obedecer a rankings, até porque “o que nos faz sentir melhores seres humanos são os sentimentos. A escola ainda está muito orientada para os rankings, para a valorização das notas e para o conhecimento. Mas na verdade, “quando uma turma é desafiada a incluir alguém que tem algum tipo de desafio de integração, os alunos ganham sentimentos mais humanistas”, refere o especialista em recursos humanos.

Devemos ser capazes de perceber que o nosso ecossistema fica mais rico com as diferenças. A escola não pode continuar a ser uma fábrica de competências, mas deve ser muito mais inclusiva, preparando os alunos para serem melhores cidadãos, que irão moldar a sociedade no futuro. Cristina Louro destacou a importância do Prémio Universitário Santander, que reuniu vários projetos nas universidades, destinados a ajudar as crianças a desenvolver talentos e a investir nos jovens universitários para eles se tornarem change makers.

“Quando uma turma é desafiada a incluir alguém que tem algum tipo de desafio de integração, os alunos ganham sentimentos mais humanistas”
Tiago Forjaz, head-hunter, speaker da Singularity University e criador do MighT

A questão da empregabilidade é crucial, pelo que é urgente sensibilizar os decisores das empresas para as vantagens de contratar estas pessoas, que apesar das suas diferenças podem ser extremamente eficientes e eficazes em várias funções.

Esta foi a sexta e última conversa virtual, no âmbito da iniciativa “Hoje Conversas. Amanhã és Pro”, tendo como base o tema da Educação. Esta foi uma parceria do Observador e do Santander que, ao longo dos últimos seis meses, reuniu convidados de destaque em várias áreas do mundo do ensino e da aprendizagem.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.