Um número de carros parados como não se verificava há uma década e tempos de resposta a pedidos de socorro que ultrapassam em muitos casos os limites definidos — e que, em Portugal, já são o dobro dos estabelecidos internacionalmente. Os problemas no INEM não nasceram agora, mas têm vindo a agravar-se consideravelmente desde o início do ano, com a saída de muitos técnicos do serviço de emergência e a dificuldade de fazer novas contratações.
Os dados consultados pelo Observador mostram um agravamento de vários indicadores. Por exemplo, no tempo de socorro (sobretudo em áreas mediamente urbanas e rurais), mas também na chamada taxa de inoperacionalidade dos carros de emergência médica — a maior dos últimos dez anos. Indicadores que ainda nem refletem os constrangimentos provocados pela greve às horas extraordinárias, que se iniciou no final de outubro (e que foi entretanto cancelada esta quinta-feira à tarde, depois uma reunião entre o sindicato que representa os técnicos de emergência pré-hospitalar e a ministra da Saúde). Desde dia 1 de novembro, registaram-se já sete mortes que têm sido associadas a falhas na resposta do INEM, casos já sob investigação e sob intensas críticas políticas.
Num desses casos, o Ministério Público já confirmou ter instaurado um inquérito para apurar eventuais irregularidades na resposta ao pedido de socorro: uma mulher que estava a prestar declarações no tribunal de Almada, num caso de violência doméstica, sofreu um AVC e acabou por ser transportada para o hospital pela própria PSP depois de uma hora e meia à espera de resposta do serviço de emergência médica, onde acabaria por morrer. “Tendo chegado ao conhecimento do Ministério Público que o corpo havia sido entregue à família, o Ministério Público ordenou que o corpo regressasse às instalações do hospital com vista à realização de uma autópsia médico-legal”, referiu a Procuradoria-geral da República ao Jornal de Notícias.
Além do inquérito-crime do Ministério Público, também a Inspeção-geral das Atividades em Saúde (IGAS) abriu um processo, mas nesse caso, avançou a CNN, para investigar todas as sete mortes que alegadamente se registaram em consequência dos atrasos na resposta do INEM provocados pela greve da última semana.
Num terço dos casos, os meios chegam depois do tempo recomendado nas áreas urbanas
Começando pelo tempo de socorro (um indicador que mede a percentagem de emergências a que o INEM acorre num tempo considerado aceitável), o cenário tem vindo a agravar-se tanto nas áreas urbanas como nas áreas rurais. Nas rurais, em 84% das situações os meios de socorro chegaram, em setembro, ao local da ocorrência no tempo considerado adequado pelo INEM, ou seja, 30 minutos depois de terem sido acionados. É o pior registo desde agosto de 2019, ou seja, dos últimos cinco anos. Os dados de outubro ainda não estão disponíveis nem foram enviados pelo INEM, apesar do pedido feito pelo Observador.
Nas áreas urbanas, a realidade é ainda pior: em setembro, apenas em dois terços (66%) das situações os meios de emergência chegaram ao local num período máximo de 15 minutos. É o pior registo de 2024 — aliás, nos últimos três anos, apenas em novembro de 2023 se registou um valor igual.
Ao Observador, o presidente da Sociedade Portuguesa de Emergência Pré-Hospitalar, Carlos Silva, salienta que os números referentes aos tempos de resposta dos meios de socorro são “preocupantes”, até tendo em conta que os tempos de espera recomendados a nível internacional são metade dos que são utilizados pelo INEM. “Não conseguimos entender quem foram os peritos que decidiram estes tempos e com base em que evidência científica. Os tempos de espera têm de ser adaptados. Os tempos que são recomendados pela ciência são sete minutos em perímetro urbano e 14 em perímetro rural“, sublinha Carlos Silva, acrescentando que a sociedade científica que lidera já alertou por várias vezes para a necessidade de alterar os tempos considerados adequados, até ao momento sem sucesso.
Mesmo utilizando o critério de 15 e 30 minutos estipulado pelo INEM, as sete pessoas que morreram desde o passado dia 1 de novembro, alegadamente por falhas na resposta, esperaram bem mais que isso — quer devido à demora excessiva no atendimento (um problema agravado pela crónica falta de técnicos de emergência pré-hospitalar e também pela greve às horas extra em vigor há uma semana) quer devido à demora superior ao recomendado na chegada dos meios de socorro ao local.
“Tempos de resposta do serviço de emergência são preocupantes”, alerta Sociedade de Emergência Pré-Hospitalar
“Estes tempos de resposta do serviço de emergência são preocupantes. Está em causa o sofrimento das pessoas e acarreta uma série de consequências. Se temos um tempo de espera dilatado na resposta da emergência médica, vamos ter um agravamento clínico do paciente — o que diminui os anos de vida da pessoa e aumenta os custos para o sistema”, alerta Carlos Silva.
Para exemplificar a necessidade de um socorro célere, o responsável dá o exemplo do que pode acontecer no caso de um doente em paragem cardiorrespiratória. “A partir do sétimo minuto, a probabilidade de uma pessoa em paragem respiratória sobreviver é de 12%, com lesões cerebrais irreversíveis. Outro exemplo: se estiver a manobrar uma rebarbadora e cortar uma artéria, uma pessoa pode morrer em três minutos se não souber controlar a hemorragia”, realça Carlos Silva.
Apesar de a situação se ter vindo a agravar nos últimos meses — por causa da saída de técnicos de emergência pré-hospitalar —, a diminuição da resposta do INEM, nomeadamente a situações graves, já estava evidenciada no relatório e contas do INEM de 2023. Segundo Carlos Silva, no ano passado foram registadas diariamente 52 situações de pessoas que “precisavam de acesso a Suporte Avançado de Vida e não o tiveram”. “São duas pessoas por hora que o INEM diz que precisavam deste suporte. Serão pessoas em paragem cardiorrespiratória, com AVC, com traumas graves e que, se não tiverem acesso a Suporte Avançado de Vida, podem ter um desfecho trágico”, sublinha.
Este indicador do tempo de socorro diz apenas respeito ao período decorrido entre o acionamento dos meios e a chegada ao local e não contempla o período que decorre entre a chamada para o 112 e o acionamento dos meios. É aqui que se registam as maiores dificuldades, devido à falta de técnicos de emergência nos Centros de Orientação de Doentes Urgentes do INEM.
Mortes associadas a falhas na resposta sucedem-se. São já sete em todo o país
Sem meios suficientes para responder à procura nos quatros centros do país (que têm a responsabilidade de acionar os meios mais adequados para responder a cada situação), têm-se acumulado dezenas de chamadas por atender, o que eleva os tempos de espera. Há casos relatados em que o atendimento demorou mais de uma hora e outros em que as chamadas não foram sequer atendidas.
Foi precisamente o que aconteceu na segunda-feira, quando a família de um homem, residente em Cacela Velha, no Algarve, terá ligado várias vezes para o INEM, sempre sem resposta. O INEM confirma apenas que houve uma tentativa de contacto, não atendida. Perante a falta de resposta na linha 112, a família acabou por contactar os bombeiros de Vila Real de Santo António, que, deparando-se com o homem de 77 anos em paragem cardiorespiratória, chamaram uma VMER. O idoso acabou por morrer no Serviço de Urgência Básica daquela cidade algarvia.
Na segunda-feira, à greve às horas extra dos técnicos de emergência pré-hospitalar somou-se uma greve da administração pública que afetou os CODU, e que acabou por ter um elevado impacto no atendimento 112. O resultado foi que apenas foram atendidas cerca de 2.500 chamadas, como o Observador noticiou, o número mais baixo em mais de 10 anos.
No sábado, num dos primeiros casos — denunciados pelo Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar — de mortes alegadamente resultantes de atrasos no atendimento da linha 112, a família de uma mulher, residente em Tondela, esteve mais de 40 minutos a aguardar por uma resposta do CODU. Ao Observador, o INEM garante que o tempo de espera foi metade do relatado, ou seja, 20 minutos e que ninguém respondeu. O instituto, liderado por Sérgio Janeiro, fez duas chamadas para o número, que não foram atendidas — apenas à terceira tentativa terá havido resposta. A mulher, de 94 anos, ainda foi levada para o hospital de Lamego mas acabou por morrer.
Há ainda casos de demora excessiva no atendimento relatados em Bragança, Almada, Castelo de Vide, Ansião e Vendas Novas, com tempos de espera pelo atendimento a variarem entre 28 minutos e 1h30. O Observador solicitou esta quinta-feira ao INEM os dados do tempo médio de espera no atendimento dos CODU, mas não obteve resposta.
Sindicato dos Técnicos Pré-Hospitalares denuncia duas mortes por atrasos na linha 112
INEM chama enfermeiros para os CODU e revê procedimentos
Perante as dificuldades nos CODU, o INEM anunciou esta quarta-feira um conjunto de medidas de contingência, a implementar de forma imediata, para “otimizar o funcionamento” destes centros, como a criação de uma triagem de emergência para chamadas com tempos de espera de três ou mais minutos. Além do reforço do dispositivo de emergência médica com ambulâncias de socorro sediadas em corpos de bombeiros e delegações da Cruz Vermelha Portuguesa, anunciado na terça-feira, o INEM anunciou que vai concentrar a atividade dos TEPH nos CODU e meios de emergência, em detrimento de atividades não prioritárias.
A par destas medidas, o INEM vai, a curto prazo, integrar enfermeiros nos CODU para realização de determinadas funções e rever os procedimentos relativos à passagem de dados das equipas de emergência no terreno. Serão ainda revistos os procedimentos relativos à passagem de dados das equipas de emergência no terreno e os fluxos de triagem do CODU e do SNS24 para transferência de chamadas entre estes serviços.
Medidas que o INEM espera que ajudem a colmatar, ainda que transitoriamente, as dificuldades decorrentes da carência de profissionais. O quadro do INEM prevê que o instituto tenha 1480 técnicos de emergência pré-hospitalar. No entanto, segundo os números divulgados pelo sindicato em julho, apenas conta com 721, ou seja, menos de metade do necessário. “Sabendo nós que todas as semanas se despedem técnicos, atualmente já nem 700 devemos ser”, lamenta Rui Lázaro, presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pre-Hospitalar. Faltam, por isso, mais de 700 profissionais no INEM. A direção do instituto fala num número mais baixo (400), mas admite as carências.
Há, neste momento, um novo concurso a decorrer, para a contratação de 200 técnicos de emergência pré-hospitalar. No entanto, é expectável que parte significativa das vagas volte a ficar por preencher, tal como tem acontecido nos concursos anteriores, estima o sindicato. Isto porque, numa profissão com elevados níveis de stress e responsabilidade, o salário base começa nos 920 euros brutos. Esta quinta-feira, à saída da reunião com Ana Paula Martins, o presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pre-Hospitalar, fez saber que o sindicato não deverá aceitar nada menos que a subida de pelo menos três patamares remuneratórios, ou seja, de pelo menos 150 euros brutos de aumento.
Taxa de inoperacionalidade das VMER é a mais alta desde 2014
Outro indicador que afeta a resposta de emergência à população é o da taxa de inoperacionalidade das Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação (VMER). Até outubro, a taxa de inoperacionalidade das 44 viaturas que existem em Portugal fixou-se em 1,95% — é a maior dos últimos dez anos (em 2014, chegou aos 2,5%, segundo os indicadores de desempenho que constam no site do INEM).
Um valor — 1,95% — que pode parecer baixo, mas que representa milhares de horas de falhas num serviço altamente diferenciado (constituído por um médico e enfermeiro) e que responde a situações de emergência críticas.
Até outubro, as VMER não estiveram operacionais em 6.260 horas, segundo os dados consultados pelo Observador no site do instituto, e que dizem respeito a 1,95% das 321 024 horas em que deveriam ter estado funcionais. Em resposta ao Observador, o INEM sublinha, no entanto, que estas viaturas são operadas pelos hospitais, pelo que a responsabilidade pela sua operacionalidade deve ser atribuída às respetivas Unidades Locais de Saúde.