Um programa de rádio transformado em livro. Um título em comum: “O Amor é”. A partir de uma canção ou de um poema de amor, surge o diálogo entre Júlio Machado Vaz, médico psiquiatra e professor universitário, e Inês Meneses, radialista há quase 30 anos. A conversa é espontânea, sem qualquer preparação e ditada por ideias soltas que anexam verdades sobre o amor, detalhes de como a música influenciou o mundo e até alguma antropologia. As conversas agora publicadas em livro (editora Contraponto) são inéditas e não mera repetição de um formato, para alguns, familiar — o programa da Antena 1 existe há 15 anos, Júlio e Inês partilham o espaço de antena há 11.
Ele está no Porto, ela em Lisboa. Falar com os dois autores do livro não foi tarefa fácil. Salvou-nos o telefone que suprimiu distâncias e nos trouxe flexibilidade — eram 12h15 de quinta-feira quando conversámos com Inês Meneses, nos intervalos da emissão que, nem por um segundo, foi descurada. A entrevista que se segue, essencialmente sobre amor, resulta de duas conversas diferentes que, para efeitos de leitura, foram anexadas. Mesmo sem estarem lado a lado, Júlio Machado Vaz e Inês Meneses complementam-se — afinal, já levam uma década a dialogar.
Como é que descreveriam o programa de rádio “O amor é” a quem não o conhece?
Júlio Machado Vaz (JMV): O programa já tem 15 anos, quase 11 com a Inês. Antes foram dois anos com a Ana Mesquita e outros dois com o António Macedo, que foi com quem comecei. O programa evoluiu. No início centrava-se na questão que no fundo é levantada pelo título do livro — “O que é isso do amor?”. Depois, penso que por iniciativa dos quatro, foi-se alargando o âmbito do programa, sempre sublinhando as questões ligadas aos afetos, à sexualidade em geral. Sendo eu professor de antropologia médica, as questões da saúde também foram tendo progressivamente mais peso, bem como as questões da educação… Hoje, o programa tem um âmbito muito mais alargado do que tinha há 15 anos.
Quais foram os principais desafios ao passar parte do programa para o papel? Há esta frase no prefácio: “Passar da oralidade, cheia de música, para o silêncio da escrita”. Quais foram os principais desafios e cuidados neste sentido?
JMV: O primeiro desafio, receio ter de o confessar, fui eu. Há para aí três anos que me diziam para fazer o livro e eu, teimosamente, dizia que não. Não achava que fosse possível transformar, sem uma grande perda, um programa que vive muito dessa oralidade. Ainda na quarta-feira, no lançamento do livro no Porto, uma pessoa me dizia: “Eu oiço pelo conteúdo mas também oiço pela forma, pela maneira como vocês interagem”. Eu pensava: “Como é que vamos passar para livro a gargalhada da Inês, que é completamente única, até as minha hesitações, os meus silêncios?”. Tudo isso faz parte e eu não estava a ver isso em livro. Depois, o que aconteceu é que o programa fazia 15 anos, eu faço 30 anos de rádio em 2019, e quando se chega à minha idade há gavetas que se querem arrumar. Houve questões afetivas que pesaram e que fizeram com que, em determinada altura, eu dissesse “Pronto, está bem”.
A partir daí há uma diferença muito clara na feitura do livro. É que eu e a Inês sistematicamente, ao longo destes anos todos, gravámos um programa no Porto e o outro em Lisboa. E o livro não, o livro foi face a face. A Inês teve a gentileza de vir para o Porto durante alguns dias, nós metemo-nos no estúdio da Porto Editora, cada um de nós escolheu cinco poemas, que o outro aceitou, como é óbvio, essa regra em nós é fundamental, e sentámo-nos em duas cadeiras a um metro de distância. Nenhum de nós sabia como é que aquilo iria funcionar. Em termos de conforto, funcionou bem. Em termos de livro, minha cara, temos de ser práticos, quem vai avaliar são os leitores que ouvem o programa. Porque há uma fatia de pessoas que podem ler o livro e ter uma opinião que não é comparada com o programa. Mas desconfio que muitas das pessoas serão ouvintes do programa e só essas é que poderão dizer se acham que o livro trai ou não o espírito do programa.
Maioritariamente, vocês partem de uma canção, ou de um poema, sobre o amor. E a partir daí há uma desconstrução dos versos, aproveitam isso para refletir sobre a vida, sobre as pessoas. Porquê discutir o amor? Porquê falar sobre isto? Vocês próprios, os dois, também precisam disso, também precisam de falar sobre o amor? De encontrar as vossas próprias respostas?
JMV: Como compreenderá, estando eu a caminho dos 70 anos, ao longo da vida fui seguramente várias vezes obrigado a pensar o amor. Fui obrigado a falar de amor, mesmo que a palavra não tenha surgido. Depois há a questão profissional. Eu sou psiquiatra. Devo dizer que cada vez mais casais aparecem no consultório — e o que está em cima da mesa são os amores. Eu gosto de empregar o plural. Devo avisá-la desde já que, para mim, a amizade é uma forma de amor, também. Não existe apenas o convencional. Cada vez mais recebo casais que têm uma faceta que me agrada. Antigamente os homens resistiam terrivelmente a aparecer, porque consideravam isso uma prova de fraqueza e hoje em dia aparecem muito mais, embora menos do que as senhoras. O que as pessoas põem em cima da mesa é a pergunta “Esta relação está esgotada ou não está esgotada?”. Outras vezes é: “Nós continuamos a gostar um do outro, mas não conseguimos viver um com o outro”, o que parece um paradoxo mas não é, não basta gostar. É assim, na minha vida pessoal, como qualquer outra pessoa, e na minha vida profissional, pela profissão que tenho, falar de amor é uma constante.
Inês Meneses (IM): Costumo dizer que o amor é a maior distração da morte. É natural que ainda no século XXI se discuta o amor, porque o amor é a coisa que nos faz sentir mais vivos. É por amor que sofremos, é por amor que nos erguemos, é por amor que acordamos, é por amor que, muitas vezes, não conseguimos adormecer. Ainda faz sentido discutir o amor, sobretudo num tempo em que vivemos muita dispersão, em que o amor parece ter perdido importância e já não se ama da mesma forma eloquente de outros tempos. Tendo uma amostra tão larga do passado… Já fomos tão românticos e agora somos tão indiferentes… As mesmas pessoas que perguntam porque resistimos ao amor são aquelas que, no dia a dia, ficam em casa e não querem correr riscos. Acho que nesta altura, mais do que nunca, faz sentido discutir o amor.
Quando estou a falar com o Júlio estou a pensar alto com ele. Embora… costumo dizer que, às vezes, encontramos muitas perguntas que nem sabíamos que tínhamos nas respostas que os outros nos dão. Mas quando me encontro com o Júlio, seja no programa, seja no registo do livro, a ideia é pensarmos os dois alto. Claro que ele, por todos os motivos, é o homem que deve trazer as respostas. Mas acabamos os dois por refletir.
Sentem que este é um tema frequente entre as pessoas, é uma necessidade que têm?
JMV: É. Sobretudo neste mundo frenético em que vivemos, o que acontece é que as pessoas muitas vezes acabam por perceber que têm de fazer qualquer coisa. E o primeiro degrau desse qualquer coisa é falar do que está a acontecer, porque as suas relações… O amor não é imune à ferrugem, nem à rotina. E à velocidade com que vivemos hoje em dia, muitas vezes o que acontece é que passamos pelo amor, pelo erotismo, como o Alfa passa por apeadeiros. Rumo a um destino que nós nem sabemos muito bem qual é.
Em relação à frase que o Júlio disse, do Alfa e dos apeadeiros, fica a pergunta: o amor esgota-se cada vez mais depressa?
JMV: Vivemos numa sociedade de consumo. E muitas vezes o que acontece é que, por exemplo, há uma baixíssima tolerância à frustração, uma tentativa de evitar sentimentos desagradáveis como a ansiedade e a tristeza — porque a tristeza não é patológica, a depressão é que é; a tristeza faz parte da nossa vida. Mas nesta sociedade tenta-se muito fugir a essas coisas e isso, às vezes, faz com que as pessoas encarem as relações como uma espécie de pronto a vestir. Ou fica bem ou, então, vamos em busca de outro fato ou de outro vestido. Isto também é paradoxal. É até mais paradoxal para os mais velhos porque fomos educados muito no “pão, amor e uma cabana; o amor vence todas as barreiras”. Isto não é verdadeiro. Na realidade, o que acontece é que o amor não é obrigatório no seguimento de uma paixão, há amores que começam desde logo num registo, digamos assim, menos borbulhante do que a paixão. Mas todos nós gostamos de estar apaixonados, em princípio. Admitamos que o que acontece é isso. A paixão que temos é um jogo de sombras. Nós tentamos apresentar-nos o melhor possível. O outro faz a mesma coisa. Nós, porque estamos apaixonados, vemos tudo o que há de melhor no outro e não ligamos muito, se é que pressentimos, ao que há de pior. O amor não é assim. O que acontece é que depois o amor, se quiser, para lhe dar uma imagem que na quarta surgiu na Almeida Garrett, o amor é quando, depois de um dia, desculpe, lixado, está tudo contra si e você chega a casa, olha para outra pessoa e ainda lhe apetece deitar-se e acordar ao pé dela. Quando a pessoa sente isto, o amor ainda está de boa saúde. Agora, o que pode estar é com as amolgadelas… o amor não é algo que viva numa redoma. E portanto, aquela frase de “o dinheiro não dá felicidade, etc”, tudo isso é muito bonito, mas quem não tem a certeza que o dinheiro chega até ao fim do mês, fica num estado de ansiedade e de preocupação, etc, e nessas situações também o amor pode sofrer danos colaterais.
São 11 anos de conversas, o livro é uma espécie de clímax com textos inéditos. O que aprenderam sobre o amor ao longo do tempo?
IM: Aprendi sobre o amor vivendo o amor, não foi fazendo o programa da rádio. Na rádio acabamos por nos rir com as inquietações quotidianas que não são as nossas. Ou seja, falamos sobre muitas coisas diversas, mas julgo que nem um nem outro vamos para ali à procura de respostas para problemas. Tenho como princípio: na dúvida, viver. O que aprendi sobre o amor é que temos de o viver e que mais vale isso do que ficar na dúvida. No amor temos de arriscar, percebo que algumas pessoas não o queiram fazer porque tira o sono, traz sofrimento…
E num sentido lato? Encontraram em conversas um tópico ou uma ideia mais frequente?
IM: São tantos anos e todos os dias estamos com um programa no ar diferente. É impossível haver uma angústia comum. O que é comum é o sofrimento que o amor traz às pessoas. Obviamente que quando as pessoas são felizes não querem falar de amor, nem têm perguntas. O que continua a ser uma espécie de linguagem universal é o sofrimento que o amor acaba por trazer. De resto, todos os dias escolhemos um tema diferente para falar, muitas vezes aceitamos propostas dos ouvintes. Agora não há assim um denominador comum. E cada um vive o amor de forma diferente.
“Sem dúvida entre nós houve tormentas
Vinte anos de amor é o amor louco
Mil vezes fizeste as malas
Mil vezes levantei voo
E neste quarto sem berço
Não há móvel que não se lembre
Do roncar das nossas tempestades
Já nada era como antes
Tinhas perdido o gosto pela água
E eu o gosto pela conquista”
(Jacques Brel)
A propósito da canção de Jacques Brel que escolhem no livro: há uma análise que ambos fazem sobre este tema, em que começam a questionar se a calma que existe numa relação é amor ou comodismo. O Júlio diz que Brel afirma que a “paz é uma armadilha”. Nesse sentido, e tendo isto como exemplo: os amantes tem de estar sempre em movimento, o amor é sempre de combate?
JMV: Não, não acho. Há pessoas que chegam ao meu consultório e expressam uma dúvida muito curiosa, dizem assim: “Nós gostávamos de conversar consigo para saber se o que se passa entre nós continua em movimento ou se estamos acomodados. E as pessoas podem chegar a dizer “porque nós já nem nos lembramos de ter uma solução”. E as pessoas têm medo que isto signifique que baixaram os seus níveis de exigência. Qualquer uma das respostas é válida. Às vezes as pessoas acomodam-se, têm medo de ficar sozinhas, de perder o outro, e baixam os seus níveis de exigência e aquela relação pode ter deslizado para uma amizade. É uma forma de amor, mas não é a suposta do casal. Porque acham que não foi por isso que se juntaram. Mas há outras situações em que pura e simplesmente aquilo está a correr bem. Agora, não nos podemos esquecer que toda a nossa tradição cultural é no sentido do amor que tem de vencer barreiras, que o amor é algo que implica combates permanentes. Não. Às vezes simplesmente estamos em velocidade de cruzeiro, ponto final. Em relação a Brel, há um ponto de honra a fazer. Brel tinha uma visão catastrófica do envelhecimento. E portanto, para Brel, e tem a ver com uma coisa que observo muito, a cumplicidade que acontece em casais mais velhos, a ternura, a maneira como os afetos são aparentemente menos violentos mas muitas vezes até mais fortes… hoje em dia, não é por acaso que as relações muito longas, como dizem os meus colegas sociólogos, criam casais-cisnes, porque já não há assim tanta gente a dizer que está junta há 50 ou 40 anos ou qualquer coisa. E porque Brel tinha essa visão catastrófica e escreveu há décadas, é bom não esquecer que hoje em dia os sexagenários não estão nada dispostos a abrir mão das suas hipóteses de ainda terem relações perseguindo uma felicidade. Quando eu tinha 20 anos os sexagenários faziam tricot e jogavam damas, isso mudou. Brel fala de uma velhice que ele temia terrivelmente. E os mais velhos de há 30 anos não são de forma alguma semelhantes aos mais velhos de agora.
O Júlio diz que a nossa visão do amor é cultural. Nesse sentido, as canções de amor erotizam o amor ou fazem-no transcendente?
JMV: Não nos esqueçamos que, na tradição do amor romântico, o amor é uma forma de transcendência sem deus. Todos nós temos uma certa nostalgia de transcendência. Ou seja, sermos mais do que somos, sentirmos mais do que sentimos no cinzento do quotidiano. E reparará que, nesse sentido, no amor romântico uma das coisas que acontece é “um mais um não são simplesmente dois”. O que o conceito diz é que, quando as pessoas amam, aquele grupo atinge um nível que duas pessoas individualmente não conseguem. As duas pessoas melhoram no amor. E é até por isso que muitos sociólogos disseram que o amor, sob certos aspetos, é antissocial, porque os amantes têm tendência, por vezes, a isolar-se do resto do mundo para viver esse amor. E eu estou completamente de acordo. A questão é que, depois, não se pode estar sete dias por semana isolado do mundo. Muitas vezes o grande desafio é manter o amor em movimento. Mas estou de acordo. O amor é uma espécie de religião laica. Sem estar a excluir quem tem fé num deus qualquer. Tirando nós a transcendência religiosa, na minha opinião o mais próximo dessa busca da transcendência que temos, sem recorrer à noção de deus, seja ele qual for, é realmente o amor.
Mas teremos uma visão demasiado romantizada do que é o amor? E por isso estamos sempre em défice, atrás do prejuízo?
JMV: Normalmente a minha geração tem tendência a vitimizar-se, a dizer “connosco foi terrível”. É evidente que nos foi apresentado um culto do amor e modelos de amor que eram muito artificiais. Depois as pessoas dizem “Credo, mas a minha relação não é assim”. Uma das questões que aparece em consultório é essa visão excessivamente romantizada do amor, nomeadamente de que o amor leva tudo à frente: “Se se estou a enfrentar dificuldades, então, se calhar, este amor com o qual me estou a debater não é amor verdadeiro. Se calhar devia romper esta relação e ir à procura de uma relação em que nunca há uma solução, nunca há um atrito…” Bom, isso não existe. E aqui há uma grande diferença com o conceito inicial do amor romântico, que era, por exemplo, um conceito que levava à existência da célebre frase “o homem da minha vida, a mulher da minha vida”. Qual é o pano de fundo de uma frase destas? Só aquela pessoa é que nos pode tornar felizes e vice-versa. No fim do século XIX inventámos uma coisa que até aí não existia, inventámos que, por exemplo, a principal função do casamento era sermos felizes. Isso nunca tinha acontecido. O casamento era um negócio, um acordo de famílias. E, de repente, dissemos que queríamos era ser felizes.
Ricardo Araújo Pereira escreveu que o casamento é o início da tragédia. Haverá algum fundo de verdade no meio da ironia?
JMV: É uma frase de um humorista. E não estamos a falar necessariamente de papéis assinados. As pessoas que coabitam podem estar casadas mas estão numa situação de convivência. Quer queiramos, quer não, viver com alguém sete dias por semana é uma situação qualitativamente diversa de namorar com essa pessoa ou, e cada vez mais há casos assim, de pessoas que têm uma relação amorosa mas cada uma tem a sua casa. Quando falamos da coabitação permanente, é evidente que há desafios que se põem à relação que eu até acho que, hoje em dia, são mais prementes. Porque somos uma sociedade massificada mas, ao mesmo tempo, individualista. E as pessoas dizem-me com frequência que têm muita necessidade dos seus espaços físicos e psicológicos. Se o outro tem uma conceção de amor diferente, há nuvens negras no horizonte. Porque, por exemplo, você precisa de ter de vez em quando umas horas só para si. E isso não significa que você tenha deixado minimamente de amar quem ama, mas essa pessoa que não tem a mesma necessidade que você tem, que não a sente, acha que esses seus “pequenos retiros dentro da relação” traduzem menor interesse e que o amor está eventualmente em declínio, a pessoa sente-se ameaçada, angustiada, desleixada. Isto pode levar a que duas pessoas tenham de pôr em cima da mesa duas conceções de relação.
Há mais que uma maneira de gostar. Por incrível que possa parecer, e eu admito que sim, estou há 40 anos a ouvir pessoas, tenho que falar do que oiço: duas pessoas podem gostar muito uma da outra e, no entanto, ser-lhes muito difícil articularem as suas conceções de vida. É uma arrogância julgar pessoas assim. Às vezes pensamos “Se gostam uma da outra não há problema nenhum”. Não é assim. E isto às vezes é assim em idades precoces, outras vezes torna-se assim por causa do trajeto de cada uma das pessoas. Não é raro que alguém que nunca viveu com outra pessoa, quando o faz com alguém que já passou por isso e as coisas não correram bem, tenha conceções diversas que fazem com que esta pessoa que está a apaixonada, que tem uma visão quase idílica do que vai ser viverem juntos, tenha, de repente, uma sensação que do outro lado há reservas ou reticências. Decretar imediatamente que esta segunda pessoa não gosta da primeira, na minha, opinião é injusto.
O amor na adrenalina da adolescência, o amor impossível que é erotizado, o amor adiado, nunca concretizado, as relações envelhecidas, os amores que não chegam, insuficientes ou diferentes, ou o próprio fim do amor. O que falta dizer sobre o amor? Como é que ainda não dominamos isto?
IM: Porque não conseguimos dominar a nossa natureza, a nossa essência, é o maior dos mistérios. Quem somos, o que queremos… Se não temos respostas sobre nós próprios, sobre a nossa essência, como é que conseguimos dialogar com o outro? O problema do amor é sermos dois. Dois! O amor é lidares com as tuas angústias e com as angústias do outro, por isso é que é tão complicado. O amor será sempre um tema inesgotável.
Júlio, no livro encontramos conselhos terapêuticos pontuais, alguns deles vêm claramente da sua experiência profissional. Para quem ler o livro, pode encará-los assim?
JMV: Podem encarar esses conselhos com toda a parcimónia, porque podem estar errados. O mais que eu desejo é que o livro tenha sobre o leitor o efeito que a Inês, ao longo destes 11 anos, tem tido sobre mim, que é obrigar-me a pensar ou apresentar outros pontos de vista que eu não encarei, e isso para mim é estimulante. Obriga-me a ir ao Google, à estante, ao meu passado. Espero que o livro consiga espoletar a curiosidade dos leitores de forma a que se interroguem sobre eventuais dificuldades que possam ter e que isso os transforme em pessoas mais satisfeitas.
É fácil de imaginar pessoas a interpelar tanto o Júlio como a Inês a pedir ajuda. Assumindo que isso acontece, gostava de saber qual a pergunta mais frequente, qual é o dilema que mais vezes se repete.
IM: Não há um tema, o que é comum é o sofrimento. As pessoas passam por diferentes fases. Acho que são as incertezas de amor que levam a que as pessoas a procurem respostas. Hoje em dia não há uma pergunta, há várias perguntas porque as pessoas também vivem o amor de forma diferente. Felizmente, há pessoas de uma certa geração ainda agarradas a um certo romantismo, há pessoas mais novas que se dispersam nas redes sociais — quem nunca. Hoje em dia, estamos um pouco perdidos com a possibilidade de viver o amor, o que leva a coisa nenhuma.
JMV: Em 40 anos, as perguntas foram variando. Neste momento, a pergunta que eu mais oiço é “Como é que fazemos para tentar não deixar morrer esta relação?”. Oiço hoje mais casais do que alguma vez ouvi na vida. E não é apenas porque os homens agora vêm mais. É porque, na minha opinião, nós vivemos num mundo que põe cada vez mais pressão sobre o casal.
Em que sentido?
JMV: No sentido em que o outro muitas vezes é para nós o amante, o amigo, o pai, o filho, etc. Quando comecei a fazer clínica, as pessoas falavam muito de como estavam à espera ou à procura de uma pessoa. Hoje, as pessoas dizem-me muito mais que estão em busca de uma pessoa que lhes proporcione um determinado tipo de relação. E isso é realmente muito importante. E é como disse há bocado, se as duas pessoas têm conceções diferentes do tipo de relação que mais lhes convém, pode ser difícil. E continuamos a falar de romantismo.
As pessoas sabem, consciente ou inconscientemente, que não há apenas uma pessoa no mundo que as pode fazer felizes. Há mais do que uma. Quando as suas relações não estão bem, têm de decidir se ficam ou se quebram a relação e se vão em busca de quem propicie o tipo de relação desejada. Os americanos, que adoram rótulos, chamam a isto monogamia seriada, em série. Aquela relação é monogâmica e a pessoas esfarrapam-se para fazê-la funcionar. Isto não tem nada de leveza. Chega a uma altura em que se diz: “Não dá”. E então pronto, faz-se o luto daquela relação, o que pode demorar um mês ou dez anos. Depois, tenta-se outra relação, pela qual a pessoa se vai esfarrapar outra vez para que funcione. Não é como às vezes se ouve dizer “Hoje em dia é uma promiscuidade”. Uma palavra terrível. Há muitas coisas que acontecem hoje que já aconteciam antigamente, mas por trás da cortina.
Falemos por momentos em distâncias suprimidas pela tecnologia. O ato de namorar mudou ao longo do tempo. Será que isso alterou a essência do amor?
IM: Claro. Acho que estamos muito mais preguiçosos a viver o amor. Há rituais, como ir com o namorado ao cinema, que parece coisa do século passado, que muito poucas pessoas o fazem (falo consoante a amostra que tenho…). O Netflix, do qual sou compulsivamente consumidora, as redes sociais, os canais de cinema, etc., tudo isso alterou o comportamento de dois namorados que, se calhar, há 10 ou 15 anos esperavam ansiosamente que chegasse a sexta-feira para irem ao cinema, namorar no cinema. Hoje, as pessoas ficam muito mais em casa. Isso depois acaba por afundar ainda mais a rotina onde as pessoas já estão. Não há um ritual de preparação — eu gosto de me arranjar para sair, é um processo de encantamento que, depois, em casa não existe. Nós namoramos muito menos. O que se está a perder é esse encantamento, estamos a abandonar esses rituais… Sentimo-nos muito bem acompanhados em casa com os imensos amigos online.
É importante ter um programa como o vosso, onde duas pessoas conversam desafogadamente sobre relações?
IM: Acho muito importante. Neste caso, o que acho que mantém a chama acesa quase 11 anos depois é o facto de o Júlio ser mais velho do que eu, de representarmos gerações diferentes e o cruzar dessas visões diferentes. O confronto geracional é muito valioso, também é isso que nos mantém.
Os portugueses conversam muito ou pouco sobre o amor? E vivem-no bem?
JMV: Tenho dificuldade em responder “os portugueses”. Se calhar, prefiro dizer “os latinos”. Até por uma questão cultural, os latinos investem muito em termos dos afetos e, em geral, são mais extrovertidos em relação aos afetos do que, por exemplo, os anglo-saxónicos. Sabemos isso em relação ao amor, como sabemos isso em relação à saúde mental. Não teria a arrogância de estar a separar os portugueses. Mas diria que sim. A importância que é dada à família, pela própria estrutura familiar…
Porque é que acha, Inês, que há tantas canções de amor?
IM: Porque o amor é o que nos faz acordar e viver. Quando não estás apaixonado sentes-te moribundo, o poder da paixão é trazer-te outra vez para a vida e obviamente faz-se uma música num momento de eloquência, às vezes de sofrimento.
A rotina pode matar ou hipotecar a canção de amor?
IM: Raras são as pessoas que escrevem quando estão felizes. Claro que a rotina mata, o conforto mata o amor e a canção de amor. Não sendo tão radical, retira-lhe itensidade e as canções sobrevivem.
Há alguma música que gostes mais?
IM: Muitas. Agora estava a lembrar-me da “Aleluia” do Leonard Cohen, o Júlio gosta muito dele, mas na versão do Jeff Buckley, que passo aqui na rádio. É uma canção sofrida e tortuosa mas, lá está, como devem ser as canções de amor.
Júlio, acha que é catártico ou é uma armadilha o facto de ouvirmos canções sobre separações e dores de amor quando estamos em sofrimento. Porque é que tendemos a romantizar a separação?
JMV: Isso varia muito com o tipo de personalidade. Há pessoas que, de certa forma, e estamos a falar de situações de sofrimento, que é quase como se pusessem aquele disco num modo de replay sistemático. E isso, de certa forma, é prejudicial porque a pessoa o que está a fazer está a reforçar cada vez mais o seu mal-estar. A sublinhar a nostalgia, a cultivar o seu mal-estar. E eu costumo dizer, e acredito piamente, que todos nós temos direito a pelo menos dez minutos de autopiedade por dia. Agora, se estamos permanentemente num registo de autopiedade, não é provável que as coisas melhorem. Há outras pessoas para quem, por exemplo, isso não entra nesse circuito fechado. Não é por acaso que continua a existir nas relações amorosas com frequência “a nossa canção”, a canção que foi ouvida, que foi dançada, foi trauteada, o disco que se ofereceu.
A música, com muita frequência, adquire um enorme simbolismo nas relações. E com ela, as letras. E isto pode funcionar para os dois lados. Ou é algo que a pessoa escuta mas, ao mesmo tempo, é capaz de elaborar um luto, se for caso disso, ou a pessoa no fundo está a cultivar não o luto… quando nós fazemos o luto, estamos tristes mas estamos em movimento, estamos a digerir aquela pancada que levámos. Quando estamos a cultivar aquele estado, não estamos a fazer luto nenhum e é mais do mesmo. Significa que o seu amigo, no primeiro, caso olha para si, aceita que você está triste, dá-lhe o ombro, mas sabe que você está a ultrapassar aquilo. Na segunda hipótese, o seu amigo fica preocupado porque pensa assim “Ela está a girar em círculos. Isto está a eternizar-se”. Nesta segunda hipótese, é mais provável que o seu amigo lhe diga “Olha lá, se calhar precisas de ajuda ou, se calhar, vamos ter de falar sobre isto porque isso já não é normal”. Ou seja, você está a entravar o seu próprio movimento.
Na capa lê-se que o livro é “Para memória futura”. Para “memória futura” de quem?
IM: É engraçado, temos uma visão diferente em relação a essa “memória futura”. Para o Júlio, tem muito que ver com o objetivo livro, com o cheiro, com o que está documentado. Para mim, curiosamente, tem muito que ver com o retrato deste tempo. Este livro, sem dúvida, documenta este tempo porque nós estamos a falar das angústias deste século tão disperso. Quando se fala do amor adiado, o facto de as pessoas não arriscarem… o livro é para memória futura.