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Era apenas mais uma crónica sobre os desafios de ser mãe. Desta vez, com base num episódio com o filho mais novo, de 11 anos, a quem tinha obrigado a participar num campo de férias de verão. Cerca de um mês depois, já esquecida do texto, foi com surpresa que Inês Teotónio Pereira recebeu em casa uma carta da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CPCJ) a convocá-la e ao marido para uma reunião no centro mais próximo. Só saberiam o motivo no próprio dia: uma denúncia anónima online, recebida pela CPCJ dois dias depois da publicação da crónica, que, segundo a denúncia, descrevia uma situação de “violência emocional e psicológica.”
O relato foi partilhado pela jornalista, autora de dois livros de crónicas, num artigo no semanário Nascer do Sol. Nele, descrevia o choque com que ouviu os técnicos da CPCJ a expor o conteúdo da denúncia, enquanto o filho esperava numa sala ao lado. Não tardou a lembrar-se da crónica e a reconhecer as suas próprias palavras, que diz terem sido usadas de forma distorcida para alertar para uma situação de perigo que garante não existir.
“Diziam o que eu escrevi na crónica, mas sem dizer que tinha escrito uma crónica”, começa por explicar Inês Teotónio Pereira ao Observador a propósito do caso. “Diziam que a criança foi a um campo de férias e exposta a violência emocional e psicológica, que podia estar em perigo e aconselhavam uma intervenção”, recorda, acrescentando que na denúncia constava o seu nome completo e a morada pessoal, que não é uma informação pública.
Mãe e pai explicaram que a denúncia teria sido motivada pela crónica, que a criança foi ao campo de férias e regressou feliz e que “não havia qualquer risco”. O caso não ficou por aí e os técnicos passaram à leitura dos procedimentos que se seguiriam, mediante autorização dos pais: falar diretamente com a criança, contactar a escola e realizar uma visita ao domicílio sem marcação.
Convictos de que nada mais tinham a esclarecer, os pais recusaram a intervenção, descrevendo uma situação “absolutamente ridícula e caricata”. “Se eu deixasse que os procedimentos continuassem, tinha que expor e abrir a minha casa, a minha realidade e a minha família. Tinha que expor uma criança de 11 anos a ser inquirida“, refere a mãe. Após a recusa dos pais, e se subsistirem dúvidas sobre se a criança está ou não em risco, a lei dita que o caso seja arquivado na CPCJ e siga obrigatoriamente para o Ministério Público (MP). Foi o que aconteceu.
O Observador contactou a CPCJ, que disse não poder pronunciar-se sobre o caso concreto, e a Procuradoria-Geral da República, que confirmou ter recebido esta semana a documentação enviada pela comissão de menores. Na resposta enviada por escrito ao Observador, o Ministério Público diz estar “a analisar a dita documentação e a recolher elementos com vista a decidir sobre eventual instauração de processo judicial de promoção e proteção”.
Nesta fase, Inês Teotónio Pereira e o marido aguardam por novas informações, mas a jornalista, e ex-deputada eleita pelo CDS (esteve no Parlamento entre 2011 e 2015), antecipa que, com o envolvimento de tribunais, o fim do caso possa estar ainda muito longe.
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A crónica sobre um campo de férias citada na denúncia à CPCJ
Tudo começou a 18 de agosto, com a publicação da crónica “Traumas que fazem bem”, no semanário Nascer do Sol. “Enviei o meu filho mais novo para um campo de férias. Foi lavado em lágrimas como se estivesse a ser deportado para uma frente de guerra”, descrevia Inês Teotónio Pereira no artigo. Autora de crónicas sobre temas como a parentalidade e a educação há vários anos, explica ao Observador que via esta como apenas mais uma, com os traços de ironia, humor e algum exagero que usa habitualmente.
No texto, a jornalista explicava que, perante a resistência do filho, o mais novo de seis, em ir para o campo de férias, chegou a repensar a decisão. No entanto, convicta de que seria uma boa experiência, manteve a inscrição. Chegado o dia, recebeu uma chamada do campo. “O menino é profissional em chantagem emocional, vulgo manipulação. Chorou horas a fio. Queixou-se de dores, de enjoos e só não desmaiou porque o corpo não obedeceu ao cérebro”, referia.
Foi a descrição de choro, dores e enjoo que chegou à CPCJ, mas descontextualizada, diz Inês Teotónio Pereira ao Observador. Ignorava-se todos os acontecimentos que se seguiam na crónica, incluindo o que descrevia como uma “conversa difícil” com o filho. Explicava também que considera que “há traumas que fazem muito bem às crianças passarem”, como “estar longe dos pais durante uma semana com dezenas de miúdos no meio do nada, entre rios e serras, sem telemóveis ou consolas.”
“Não havendo registo de sangue, fraturas, maus tratos ou febre, não se justifica atravessar o país, cedendo a uma carinha de choro e a uma voz de desespero que até partiria o coração de Hannibal Lecter”, apontava a cronista no texto, acrescentando que a própria criança mudou de tom, para “zanga”, ao ser confrontada com um ‘não’. “Dizem que me custa mais a mim do que a ele. Concordo. Mas há traumas que fazem muito bem aos pais passarem“, concluía.
Inês Teotónio Pereira diz que nunca pensou que um relato como este pudesse dar azo a uma denúncia junto da CPCJ. Considera que se usou “uma ferramenta que o Estado põe à disposição das pessoas para um fim nobre e essencial” quase “como delito de opinião, para se poder entrar na vida privada das pessoas”.
“Escrevo em jornais pelo menos desde 2010, semanalmente, e o que acontece muitas vezes, e nos últimos anos com mais frequência, é ver nas redes sociais e nos comentários alguma violência de respostas”, sublinha, acrescentando que as reações são sempre imprevisíveis.
“Se amanhã escrever uma crónica a dizer que obrigo os meus filhos com 16 anos a ir à missa, acho que vou ter muitas críticas. Escrevi-o há um tempo e não me passaria pela cabeça que pudesse haver críticas assim”, refere. Hoje em dia, o pensamento é outro: “Tenho a certeza de que haveria.”
O Observador questionou a CPCJ sobre a receção da denúncia e abertura do processo. O organismo remeteu para a comissão da área de residência da família, que refere que “não é possível fornecer qualquer dado ou informação que envolva diretamente uma criança ou jovem, de modo a salvaguardar a privacidade e a integridade dos envolvidos.”
O organismo acrescenta que todas as denúncias anónimas recebidas “são devidamente analisadas em sede de Comissão Restrita”. “Havendo indicadores de perigo, de acordo com o previsto no artigo 3.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), serão instaurados os respetivos Processos de Promoção e Proteção, seguindo-se, rigorosamente, as etapas estabelecidas na legislação aplicável”, nota.
“A diversidade das fontes indica a importância da colaboração entre entidades, cidadãos e instituições para garantir a segurança e o bem-estar das crianças e jovens em situação de perigo. A priorização dessas sinalizações é feita com base no conteúdo apresentado, de forma a garantir uma resposta rápida e eficaz, assegurando a proteção adequada das crianças e jovens envolvidos”, acrescenta.
Denúncias à CPCJ dispararam em quatro anos, particularmente as anónimas
Para denunciar uma situação de risco ou perigo, a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens disponibiliza na sua página os contactos de telefone e email de todos os seus centros, do norte ao sul do país. Em alternativa, partilha também um formulário online, que prevê a hipótese de o denunciante querer manter o anonimato.
Para fazer uma denúncia anónima, seja por telefone, email ou pelo formulário, basta indicar um nome, uma morada e descrever a situação que motivou o alerta à CPCJ. A informação é recebida pela comissão nacional e remetida para o centro da área de residência do menor, que notifica os pais da existência de uma denúncia e pede a sua presença numa reunião.
A partir dessa audição, há dois caminhos possíveis, explica ao Observador a advogada Marta Fonseca Ferreira, que trabalha na área de Família há mais de 20 anos. Por um lado, o processo pode ser arquivado administrativamente pelos técnicos, sem mais diligências, caso se considere que não há fundamento. Este arquivamento depende sempre da emissão de um relatório, que é enviado para o Ministério Público.
Por outro lado, se os técnicos entenderem que há razão para continuar, pedem autorização para uma intervenção. Segundo a advogada, uma autorização dos pais pode implicar o contacto com a escola, a audição da criança e de outros dos seus familiares, visitas domiciliárias e entrevistas aos pais, de forma separada e conjunta. No final, é produzido um relatório ou de arquivamento ou para se avançar com um processo de promoção. Se a família recusar a intervenção, termina o papel da CPCJ e o caso avança para o Ministério Público, que decide se há ou não motivos para um processo de proteção do menor.
Desde o momento em que se inicia um processo na CPCJ, o organismo tem seis meses para determinar o arquivamento ou o acompanhamento. No entanto, o processo pode ser arquivado a qualquer instante e “não tem que permanecer [aberto] esses seis meses só porque sim”, diz ao Observador a advogada Raquel Caniço. “Se a denúncia é infundada, se não há dúvida de que a criança não foi maltratada, pode-se solicitar um arquivamento. Se há dúvidas, e às vezes ali há coisas que ficam um bocadinho naquela sombra, pode pedir-se diligências”, aponta.
Ambas as advogadas têm notado um aumento do número de denúncias, particularmente das anónimas. Essa perceção é confirmada pelos Relatórios Anuais de Avaliação da Atividade da CPCJ. Em 2020, contabilizaram-se 39.659, com um salto para as 43.075 no ano seguinte. Em 2022, foram já 49.564 e no ano passado 54.746. Para já, ainda não foram divulgados dados deste ano.
Um dos crescimentos mais notórios é o das denúncias anónimas. Em 2020, contabilizaram-se 2.905, com um salto para as 4.012 em 2021, ultrapassando o número de comunicações do Ministério Público. Em 2022, houve 4.770 denúncias anónimas e no ano passado 5.571.
Esta tendência também é visível nos dados disponibilizados pelos centros locais da CPCJ. Questionada pelo Observador, a comissão local em que a denúncia sobre o campo de férias esteve a ser acompanhada indicou por email que, “desde 2022 até à presente data, o aumento das sinalizações anónimas foi bastante significativo.” Em 2022, foram 58 as sinalizações anónimas e, em 2023, chegavam às 198. Só no primeiro semestre de 2024 são já 178 denúncias, cerca de “12% do volume processual total trabalhado.”
Denúncias anónimas são “ferramenta importante”, mas há casos de uso por vingança e em disputa de custódia
Por trás do aumento dos diversos tipos de denúncias estará, segundo a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, uma maior “consciencialização e sensibilização da população”. Concretamente sobre as denúncias anónimas, as que mais aumentaram, o organismo sublinha, numa resposta escrita ao Observador, que se trata de “uma ferramenta muito importante” na promoção e proteção dos direitos das crianças e jovens. “Na dúvida, e à cautela, dever-se-á comunicar a, ainda que eventual, situação de perigo“, aconselha.
A CPCJ nota que o facto de serem anónimas não quer dizer que não devam ser avaliadas e que, pelo contrário, “essa avaliação deve mesmo ser reforçada”. “Deveremos sempre pensar em quantas crianças ficariam desprotegidas sem instrumentos de comunicação e consequente proteção”, salienta.
O organismo alerta ainda que qualquer instrumento de denúncia apenas deve ser “utilizado para a concretização do bem”. “A sua má utilização ou a comunicação de situações falsas a todos prejudicará, sendo as crianças as principais lesadas”, acrescenta. As advogadas ouvidas pelo Observador, que lidam diariamente com casos relacionados com a CPCJ, têm testemunhado muitas situações desse mau uso, principalmente quando estão em causa queixas em que o denunciante não é conhecido.
Marta Fonseca Ferreira e Raquel Caniço atestam que, “na maioria dos casos, as denúncias anónimas são infundadas”, ainda que haja várias situações em que são usadas com o intuito de relatar situações de perigo real. As advogadas alertam que podem resultar numa intrusão em famílias sem historial ou indícios de maus-tratos e que podem estar a desviar recursos necessários para lidar com casos urgentes.
“Infelizmente, na maior parte não é por uma questão de proteção. Ou são os ex-maridos ou as ex-mulheres, ou as famílias. Agora acontece muito com colegas de trabalho ou chefias, que contam qualquer coisa e, enfim, acontecem muitas denúncias que não são justificadas”, diz Marta Fonseca Ferreira. Segundo a advogada, “geralmente as situações de risco nunca são com denúncias anónimas” e “seguem um caminho muito próprio.”
Por seu lado, Raquel Caniço alerta que as queixas infundadas têm um grande impacto na dinâmica familiar, ainda mais grave em casos de disputa da custódia dos filhos. “Diria que, se calhar, na esmagadora maioria das vezes este mecanismo é utilizado nessas situações“, diz. “Não estamos a falar de uma situação em que há uma denúncia de que a pessoa estacionou mal o carro. Tem outra envergadura”, sublinha.
A advogada acrescenta que também afetam particularmente profissionais com maior exposição pública, como polícias, procuradores, advogados ou professores. Nestas situações, nota, “interfere não só com o núcleo essencial da família, como pode pôr em causa a idoneidade profissional.”
Vítimas de denúncias infundadas podem apresentar queixa por denúncia caluniosa
Perante um relato que se revele infundado e resulte num arquivamento de um processo, os visados podem defender-se e apresentar no Ministério Público uma queixa por denúncia caluniosa. Podem também pedir ao Ministério Público que investigue o IP de onde resultou a denúncia anónima, segundo explica Raquel Caniço.
A advogada menciona que a CPCJ é obrigada a guardar os chamados logs. Atualmente, o prazo para a preservação desses dados está fixado em seis meses, mediante uma alteração introduzida com a lei dos metadados, que regula o acesso a metadados de comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal. Ainda assim, a advogada diz que já teve casos em que passados três meses os dados tinham sido eliminados.
Apesar desta possibilidade de defesa, as advogadas ouvidas pelo Observador defendem medidas que ajudem a prevenir denúncias falsas ou sem fundamento. Marta Fonseca Ferreira considera que isso passa, no limite, por não permitir a apresentação de denúncias anónimas. “Se estamos a denunciar para proteger o menor, nós, que somos os denunciantes, temos também proteção e não temos nada a temer”, aponta.
A advogada lembra que atualmente já existe a opção de alguém se identificar ao fazer a denúncia à CPCJ, mas pedir que o seu nome não seja divulgado. “Eu posso dizer que presenciei isto, identificar-me, mas dizer que não quero que se saiba que fiz a denúncia. Isto é uma coisa diferente, que é a proteção”, nota.
Em sentido contrário, Raquel Caniço não considera necessário extinguir o anonimato da denúncia. A advogada admite que a CPCJ exija sempre que a pessoa se identifique, mas mantenha o seu anonimato enquanto todo o processo decorre. Já na eventualidade de um arquivamento por denúncia infundada, considera que a identidade do autor da queixa pudesse ser partilhada se os visados quiserem exercer o seu direito de defesa, incluindo através de uma denúncia caluniosa.
“Não me choca muito a questão de se permitir uma denúncia anónima. Agora, o que me choca é o mau uso da denúncia e que as pessoas que são visadas não se possam defender”, sublinha. “Isso é que eu acho profundamente errado.”