Quinze dias depois de ter entrado em confinamento nacional — o terceiro desde que a Covid-19 entrou no país — e um mês depois de Boris Johnson impor regras duras para conter a propagação da nova variante do vírus, o Reino Unido colhe agora os frutos da paralisação: os números de casos estão a diminuir e, dentro de uma semana, notar-se-ão os efeitos disso mesmo nos internamentos e óbitos por Covid-19.
Já Portugal entrou em confinamento nacional a 15 de janeiro, dez dias mais tarde que o Reino Unido, e só agora enfrenta a ameaça da nova variante de SARS-CoV-2 detetada inicialmente no Reino Unido. Depois do relaxamento natalício (que os britânicos tiveram em muito menor medida), os portugueses atingem novos máximos de casos e de mortes dia após dia. E têm problemas adicionais: a onda vai ainda mais alta do que quando o Reino Unido a enfrentou; e traz uma estirpe nova que pode estar a atingir mais fortemente a região de Lisboa e Vale do Tejo e condenar o sucesso das medidas de restrição.
Questionado sobre se a situação atual do Reino Unido nos permite antever o que Portugal vai passar dentro de algumas semanas, Carlos Antunes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, diz que, “com estes dados, não”. Se o confinamento português for “idêntico e proporcional” ao que se verifica no Reino Unido, a incidência também deve começar a baixar. Mas os resultados não surgirão tão cedo, nem de modo tão pujante como aconteceu na realidade britânica.
Um dos motivos é a velocidade: os britânicos foram mais rápidos a confinar após a identificação da nova variante porque perceberam muito cedo o impacto que estava a ter (e que continuaria a ter) na incidência. Outro motivo foi o momento em que as medidas foram tomadas: o confinamento mais pesado em Londres e no sudeste inglês e, mais tarde, o confinamento nacional, foram impostos quando os números “ainda estavam com valores geríveis”.
Portugal terá mais dificuldades em alcançar os relativamente bons resultados britânicos. Em situações normais, a taxa de transmissão começaria a baixar a partir da próxima semana com as medidas que já estão em vigor desde 15 de janeiro, mas há dois aspetos que podem retardar esse efeito: o facto de esse valor estar, neste momento, numa subtil tendência crescente; e a “incógnita” que é a nova variante britânica em circulação em Portugal.
A ministra da saúde, Marta Temido, anunciou na quarta-feira que a prevalência da nova variante em Portugal foi calculada em 13,3% pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e que, dentro de duas semanas, pode chegar aos 60% dos novos contágios. Mas Carlos Antunes nota que, segundo os seus cálculos, a prevalência pode ser já de 30% em Lisboa e Vale do Tejo, a região no epicentro da Covid-19 no país. E isso pode ser o suficiente para retardar a descida da taxa de transmissão.
O que aproxima e o que afasta Portugal dos números britânicos
No Reino Unido, o pico dos casos de infeção chegou 17 dias depois do aperto das regras (com um aliviar natalício muito ligeiro pelo meio) e apenas um dia após a entrada em confinamento porque as medidas impostas pelo governo já eram mais pesadas do que em Portugal e duravam há mais tempo do que por cá.
A taxa de transmissão britânica baixou de 1,12 em dezembro para 1 no primeiro dia de janeiro e, neste momento, está em 0,93 — ou seja, a incidência já entrou em rota decrescente. Em Portugal, no dia de Ano Novo, a taxa de transmissão era de 1,32; e a 8 de janeiro, data dos últimos dados reportados ao Our World in Data, já ia em 1,52. Ou seja, o Reino Unido confinou, ainda que parcialmente, quando a taxa de transmissão estava mais controlada.
À conta destes valores, os números ainda vão piorar antes de melhorarem em Portugal. Segundo Carlos Antunes, que tem calculado as previsões da evolução epidemiológica em Portugal e noutros países do mundo, os indicadores continuam a sinalizar um pico ainda “indefinido” no número de novos casos: o intervalo de tempo em que ele ocorreria aparece cada vez mais longo no modelo deste investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Há uma semana, o pico surgia no final deste mês; durante esta semana, ele foi adiado para o início de fevereiro; e, agora, já surge na segunda metade do próximo mês. “O pico da montanha que temos de trepar está a ficar cada vez mais alto e cada vez mais longe. E para começarmos a descer, temos de subir a montanha até ao topo primeiro”, metaforizou Carlos Antunes à Rádio Observador.
Isto trará repercussões para a pressão no Serviço Nacional de Saúde, que vai continuar a aumentar por duas a três semanas após o atingimento do pico, antecipa Carlos Antunes. Apesar das diferenças entre a capacidade de resposta do serviço público português e britânico, é precisamente isso que se está a verificar por lá.
Em Inglaterra, o número de internamentos, incluindo os doentes em unidades de cuidados intensivos (UCI), por milhão de habitantes, não dá sinais de tréguas desde a segunda semana de dezembro. Fá-lo-á a partir da próxima semana, antecipa Carlos Antunes. A 21 de dezembro, com a imposição de um confinamento parcial em Londres e no sudeste de Inglaterra, havia 311 internamentos por milhão de habitantes, 22 dos quais em UCI. A 2o de janeiro, eram 542 internamentos por milhão de habitantes e, em UCI, 51,5.
Da mesma forma, o número de óbitos atribuídos à Covid-19 por milhão de habitantes está a aumentar no Reino Unido — tal como continuará a acontecer em Portugal, mesmo após o atingimento do pico. É um fenómeno natural: os infetados que estão agora a sucumbir aos quadros clínicos mais graves de infeção pelo novo coronavírus foram os que terão testado positivo há cerca de 28 dias, ou seja, por altura do Natal, quando a onda de casos ainda estava em crescendo.
A nova variante mais transmissível do SARS-CoV-2 trouxe problemas acrescidos aos britânicos, mas a resposta ao problema foi mais eficaz: o país impôs medidas de redução dos contactos mais cedo, recuou no alívio proposto inicialmente para o Natal e, logo após as festas, entrou num confinamento total.
O resultado foi uma taxa de transmissão que já baixava paulatinamente antes do Natal e que, apesar do ligeiro aumento por essa altura, foi imediatamente controlada e atirada para abaixo de 1. Os dados do Google indiciam também que a mobilidade dos britânicos em janeiro foi ainda mais baixa do que no segundo confinamento em Inglaterra, que ocorreu em novembro. No final de dezembro era semelhante ao registado entre o final de abril e o início de maio. Ou seja, os britânicos estão a obedecer mais ao confinamento.
Reino Unido foi bem sucedido a testar e encontrar casos
Os números das autoridades de saúde britânicas demonstram que o aperto das medidas de restrição no Reino Unido, seguido de um confinamento geral anunciado na primeira semana de janeiro, resultou no controlo dos contágios pelo novo coronavírus.
Os dados reportados ao Centro de Ciência e Engenharia dos Sistemas da Universidade Johns Hopkins, confirmados também pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, sugerem que o número de novos casos diários de infeção pelo SARS-CoV-2 por milhão de habitantes está a decrescer desde 8 de janeiro.
Sugerem também que a taxa de positividade no Reino Unido — a métrica que indica a porção dos testes de diagnóstico efetuados à população que apresenta um resultado positivo — está a diminuir desde 4 de janeiro. Os dados sinalizam 12,8% de testes positivos nesse dia e apenas 7,8% a 18 de janeiro, dia da última atualização.
A taxa de positividade permite aferir se a testagem no país é adequada e, analisada à luz dos novos casos, como é que o vírus se está a espalhar. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que uma taxa abaixo dos 5% sinaliza que a epidemia está sob controlo.
O Reino Unido ainda não tinha chegado lá a 18 de janeiro, mas parecia estar no bom caminho. Por isso é que não começará já a desconfinar: as escolas, que deveriam abrir em meados de fevereiro, continuarão fechadas até aviso em contrário — um aviso que chegará duas semanas antes de poderem abrir portas, fez saber esta quinta-feira o ministro da Educação Gavin Williamson.
É outro aspeto que pode contrastar do caso português. Ao Observador, Manuel Carmo Gomes já tinha avisado que as autoridades podem estar com maior dificuldade em detetar os casos positivos por causa de uma falta de recursos humanos para realizar todos os inquéritos epidemiológicos que se acumulam perante um aumento do número de novos casos confirmados.
O epidemiologista pensa que “estamos a entrar num falso planalto causado por esta incapacidade de acompanhar o número real de casos que estão a ocorrer”. Portugal tem espaço para aumentar a capacidade de testagem mas, mesmo que assim seja, há outro ponto crítico que subsiste: não há recursos humanos para fazer os inquéritos epidemiológicos. Portanto, ou se resolve esse problema “ou então temos mesmo que parar os contactos”. “Não há outra maneira de interromper isto”, garantiu.
Números britânicos são enganadores? Especialistas dizem que não
Um relatório publicado esta quinta-feira pelo Imperial College lançou o alarme ao sugerir que, afinal, ao contrário do que indicam estes dados, nem tudo estará a correr tão bem às autoridades de saúde britânicas, particularmente em Inglaterra.
Os investigadores recolheram amostras em 143 mil pessoas nos primeiros dez dias de confinamento em Inglaterra — entre 6 e 15 de janeiro — e sugeriram que, em comparação com o início de dezembro, as infeções tinham aumentado em 50%. Os resultados foram divulgados na revista The BMJ .
Percentagens desta ordem significam que uma em cada 63 pessoas estão infetadas pelo SARS-CoV-2 neste momento, o que representa a maior proporção identificada pelo Imperial College desde maio. Não haveria, portanto, “evidências de uma diminuição” da prevalência do vírus em Inglaterra.
A instituição também calculou que, pelo menos até 15 de janeiro, a taxa de transmissão do vírus (R) era de 1,04 — ou seja, por cada 1.000 pessoas infetadas, outros 1.040 infetados deverão surgir. Ora, qualquer taxa acima de 1 significa que a epidemia continuaria em crescimento, não em fase de decréscimo.
Mais: tendo em conta os números oficiais ao seu dispor, a Public Health England anunciou que a contagem semanal de casos tinha diminuído em todas as faixas etárias, exceto no grupo dos indivíduos com mais de 80 anos. O Imperial College, no entanto, insiste que a prevalência até aumentou em todos os grupos de idade adulta.
Mas há um aspeto que pode deitar por terra este retrato: os dados recolhidos nos 10 primeiros dias de confinamento total e nacional pelo Imperial College foram comparados aos anotados entre 25 de novembro e 3 de dezembro porque a instituição não fez testes entre o início de dezembro e o início do janeiro.
Escapou-lhe, portanto, os efeitos da nova variante detetada no país, nota Carlos Antunes. A OMS estipula que, quando a taxa de positividade está a crescer num país, isso pode significar que o vírus se está a espalhar mais rapidamente do que o crescimento efetivamente contabilizado no número de casos de infeção confirmados.
Faz sentido, tendo em conta o que já se sabe da nova variante: no início do mês de dezembro, poucos dias depois de ter sido descoberta a nova variante do SARS-CoV-2, que pode ser até 71% mais transmissível que a variante dominante até àquele momento, o número de casos disparou e, com ele, a taxa de positividade. Os números só começaram a baixar após o confinamento.
Ou seja, neste momento, o Reino Unido está a recuperar dos estragos causados pela nova variante no número de novos casos, na pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde e nos óbitos por Covid-19, o que torna menos fiel o retrato que esta experiência do Imperial College concretizou.
Tim Spector, epidemiologista do King’s College London, fez o mesmo aviso quando contactado pelo Daily Mail: para ele, os investigadores “não podem realmente calcular os efeitos do intervalo na sua pesquisa”. Kevin McConway, estatístico da Open University, concordou que há “certamente uma grande possibilidade de estas estimativas não serem muito precisas” porque falharam o impacto do aumento de casos ao longo do mês de dezembro.