“Apertem os vossos cintos para a primeira presidência da UE inspirada em Donald Trump”. A frase, que abre este texto do Politico, resume de forma eficaz o suspense que reina na Europa à volta do lugar de destaque que o Governo húngaro, liderado pelo quarto mandato consecutivo pelo polémico e divisivo Viktor Orbán, vai assumir nos próximos seis meses. Descrito como o “provocador em série” ou o “provocador-chefe”, líder dos “iliberais”, que leva a Europa a “suster a sua respiração”, Orbán terá em mãos um papel que é, em grande parte, diplomático e simbólico, numa fase em que as instituições europeias não terão grande atividade legislativa — mas, mesmo assim, não faltam responsáveis europeus que temem que o seu turno à frente da UE traga retrocessos ou novos bloqueios à agenda do velho continente.
A apresentação da presidência húngara do Conselho da UE, que começou oficialmente esta segunda-feira, não ajudou a acalmar esses medos. Perante os rumores de que Orbán, aliado de Donald Trump, iria escolher como lema da sua presidência Make Europe Great Again, ou Tornar a Europa Grande Outra Vez (uma imitação do lema MAGA, aplicado aos Estados Unidos, marca da presidência Trump), o jornalista de investigação húngaro Szabolcs Panyi escrevia na rede social X que “a ideia soava tão fraca e ridícula que nos abstivemos de a noticiar”.
Como Panyi também reconhece, quem se absteve de dar a notícia errou: o lema inspirado em Trump foi mesmo para a frente, ao lado de um cubo Rubik (uma invenção húngara) que serve de logótipo e das promessas de “intermediação honesta”, numa presidência “normal”, deixadas pelo representante da Hungria junto da UE, Balint Odor. E, depois de anos de bloqueios de legislação e decisões europeias — incluindo em pacotes de ajuda destinados à Ucrânia, o que tem levado à exasperação responsáveis em vários países — Orbán inaugurou a presidência húngara com uma surpreendente visita a Kiev, onde apertou a mão de Volodymyr Zelensky e pediu um cessar-fogo.
A Ucrânia terá necessariamente de constar da ementa desta presidência da UE, mas não é o único tema, nem o único passível de gerar polémica. A própria Hungria, que vai organizar uma “missa pela Europa” numa catedral em Bruxelas (um sinal dos valores conservadores defendidos por Orbán), anunciou desde logo que colocará na agenda temas como um maior controlo nas fronteiras externas da UE (“trabalhando de perto com os países de origem e de trânsito”, escrevia Orbán esta semana num artigo de opinião publicado no Financial Times), uma redução da imigração ilegal ou a promoção de uma política de agricultura orientada para os agricultores (a Europa tem-se focado nos seus objetivos “ideológicos”, no contexto da transição verde, e esquecido o lado da indústria, criticava no mesmo artigo).
São, assim, variados os temas que Orbán quer tocar nestes seis meses, mesmo que o seu historial de bloqueio a decisões europeias e o lema escolhido para a sua presidência façam levantar sobrolhos em Bruxelas. O húngaro prometia, no mesmo artigo de opinião, levar a cabo uma “presidência excecionalmente ativa”, pondo de lado “disputas ideológicas” e dando “o tiro de partida no motor da Europa”. Mas não sem antes deixar mais uma provocação: “Vamos tornar a Europa competitiva outra vez”, remata o texto.
Visto como pró-Putin, Orbán foi a Kiev pedir cessar-fogo
A visita de Órban a Kiev, logo no dia em que a Hungria assumiu a presidência da UE, não seria a mais previsível. Afinal, Orbán tem bloqueado vários pacotes de ajuda destinados à Ucrânia e permitiu a custo que as negociações para o alargamento da UE avançassem saindo da sala do Conselho Europeu, para que a decisão pudesse ser tomada de forma unânime (e ainda assim esclareceu que considerava o alargamento uma “má” ideia, tendo em conta também os interesses nacionais da Hungria, dos fundos da coesão ao efeito que a entrada ucraniana teria no negócio para os seus agricultores).
Ao mesmo tempo, Orbán é visto como o aliado mais próximo da Rússia na UE: ainda no ano passado esteve com Vladimir Putin em Pequim e disse ao Presidente russo, segundo a televisão estatal da Rússia, que a Hungria “nunca quis confrontar o país” e sempre desejou “expandir contactos”. E, como a BBC contava num texto em que se propunha explicar “o que tem a Hungria contra a Ucrânia” em meados de dezembro de 2023, notava-se que “enquanto outros líderes europeus fazem fila na cimeira de Bruxelas [do Conselho Europeu] para tirar fotografias com o líder ucraniano, Orbán afasta-se”.
Nessa altura, Zelensky chegou a ser apanhado numa conversa tensa com Orbán, durante a qual, contaria depois, perguntou ao húngaro as razões pelas quais planearia bloquear a entrada da Ucrânia na UE.
Os meses passaram e Orbán voou mesmo até à Ucrânia, onde tirou a esperada fotografia com Zelensky, já no papel de líder do país que preside à UE. Foi a primeira vez em 12 anos que visitou Kiev e a visita acabou com o líder húngaro a pedir ao ucraniano para considerar um cessar-fogo, “invertendo a ordem” para “acelerar as conversações de paz”. “Explorei esta possibilidade com o Presidente e estou grato pelas suas respostas honestas e pela sua negociação”, referiu Orbán, citado pelo Kyiv Independent.
Na publicação com que rematou a visita, Zelenky falou de “questões fundamentais das relações de vizinhança” que foram discutidas no encontro e que poderão fazer parte de um novo “documento bilateral” entre os dois países — comércio, cooperação transfronteiriça, infra-estruturas e questões energéticas, além da “esfera humanitária” — ainda que nada de específico sobre um cessar-fogo.
My first trip after assuming the Presidency of the Council of the EU led me to Kyiv for a meeting with President @ZelenskyyUa. I assessed the possibility of a deadline-bound ceasefire, that could provide an opportunity to speed up peace negotiations. I will report my findings to… pic.twitter.com/TqPeDAvsoe
— Orbán Viktor (@PM_ViktorOrban) July 2, 2024
Feita a primeira visita, Orbán prometeu entregar “imediatamente” as suas conclusões ao Conselho Europeu. Resta saber se a conversa com Zelensky terá alguma consequência prática e se as posições da Hungria no quadro europeu serão objeto de alguma mudança. “Cerca de 40% de todas as decisões da UE sobre a Ucrânia são bloqueadas pela Hungria”, queixava-se um “exasperado” Gabrielius Landsbergis, ministro dos Negócios Estrangeiros da Lituânia, em maio, segundo o relato que a France24 fazia depois de Orbán ter bloqueado um pacote de 6,6 mil milhões de euros que incluía ajuda militar. “Tenho de me acalmar quando falo deste assunto, porque o que está a acontecer é ridículo”, irritava-se um diplomata europeu “sénior” em conversa com o Politico.
Ao mesmo jornal, vários diplomatas europeus confessavam que uma “operação de influência russa via Hungria” será uma “preocupação chave” durante a presidência de Orbán.
O “jantar” europeu que a Hungria vai organizar (com férias pelo meio)
O bloqueio às posições da UE sobre a Ucrânia é uma das causas da irritação ou “exasperação” de outros responsáveis europeus com a Hungria, mas não é a única. Outro dos problemas tem a ver com o reembolso parcial das armas enviadas por outros países europeus à Ucrânia, que também tem sido bloqueado pelo país de Orbán. E depois existem, há anos, as questões detetadas no respeito da Hungria pelo Estado de Direito — que já levou a UE a suspender os fundos entregues ao país no contexto dos fundos de coesão (no caso, um pacote de dez mil milhões de euros), até decidir entregar-lhos apenas no início deste ano.
Nessa altura, o Comissário Europeu para a Justiça, Didier Reynders veio assegurar que a UE tinha “recebido garantias suficientes de que o poder judiciário será fortalecido na Hungria”, como citou a Euronews. Mas isto não se traduzia, garantia, num cheque em branco: “A decisão tomada hoje não é o fim do processo. Vamos continuar a monitorizar cuidadosamente a situação e reagir no caso de haver retrocessos”, avisou.
No Parlamento Europeu, foram-se tornando evidentes as hesitações e reservas quanto às posições húngaras: os eurodeputados chegaram a defender que o país podia não ter condições para assumir as rédeas de uma presidência europeia ou até que devia deixar de ter direito ao voto no Conselho Europeu — mas sem sucesso.
Quando à presidência em si, e como diz o próprio site do Conselho Europeu, “este papel já foi comparado ao que alguém faz quando é anfitrião de um jantar, garantindo que todos os seus convidados convivem em harmonia — com capacidade para expressarem as suas diferenças durante a refeição, mas saindo com um bom ambiente e um propósito comum”.
Não é exatamente consensual a ideia de que Orbán se ficará pelo papel de mero anfitrião, especialmente quando promete uma presidência “excecionalmente ativa” e recheada de temas quentes. Mas, como vários analistas internacionais apontam, o calendário pode funcionar a seu desfavor: com as férias de verão a meterem-se pelo meio e os ocupantes dos novos cargos de Bruxelas a tomarem posse entretanto, os próximos meses não terão espaço para grande atividade legislativa concreta a nível europeu.
“A União Europeia está numa fase de transição. Entre as escolhas para a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu, nada de significativo deverá acontecer até dezembro. Na verdade, esta presidência, que algumas pessoas temem, chega num momento bastante oportuno, que limitará as oportunidades para Viktor Orbán causar problemas”, diz à France24 a presidente da Fundação Robert Schumann, Pascale Joannin. O que não significa que não possa acelerar a atividade legislativa na Hungria, incluindo para “consolidar” um regime mais “autocrático”, alertam outros especialistas, citados pelo The Guardian.
Do lado da Hungria, para já, as promessas estão feitas: “Estamos conscientes de que seremos observados de forma muito atenta para ver se cooperaremos sinceramente com os estados-membros e se seremos intermediários honestos. Isto será muito escrutinado, e os critérios serão talvez ainda mais altos para a Hungria do que para outras presidências”, reconheceu o ministro para os Assuntos Europeus húngaro János Bóka, em declarações ao Politico.
Trump e Xi, os amigos de Orbán que irritam Bruxelas
As relações externas da Hungria que são vistas como problemáticas vão além da amizade com a Rússia, que o governo húngaro diz não passar de um ato de “pragmatismo”. Basta olhar, por um lado, para as hashtags do lema #MEGA — #MAGA, no original criado pelo movimento de apoio a Donald Trump — e para a relação entre Orbán e Donald Trump, que torna uma incógnita o que fará a Hungria (que nessa altura ainda terá a presidência da UE) na sequência das eleições norte-americanas, em novembro. “O estilo e a linguagem da política no continente europeu estão a tornar-se cada vez mais cinzentos“, explicou Orbán ao jornal alemão Berliner Morgenpost. “Precisamos de pessoas que abanem o sistema, que venham de fora”.
De resto, Orbán já declarou o seu apoio a Trump nesta sua recandidatura e tem planos para organizar um Conselho Europeu informal em Budapeste, capital da Hungria, após as eleições norte-americanas — com a imprensa húngara a escrever que Orbán gostaria de garantir a presença de Trump, nem que fosse através de um vídeo gravado com antecedência.
Como a CNN contava aqui, Trump chegou mesmo a receber Orbán na sua casa em Mar-a-Lago, em março, defendendo que “não há ninguém melhor, mais inteligente ou melhor a liderar do que Viktor Orbán. Ele é fantástico”. Quando declarou o seu apoio a Trump, numa conferência em maio, em Budapeste, o húngaro devolveu os elogios e usou o lema que depois adotaria para a Europa: “Make America great again, make Europe great again!”.
As relações com a China também levantam preocupações na Europa. Como o Politico recordava neste texto sobre o flirt entre Hungria e China, numa visita em maio, o Presidente chinês, Xi Jinping, descrevia a relação entre os dois países como sendo “tão madura e rica como o vinho Tokaji”. A aliança não se ficou por palavras, com investimento direto chinês a no valor de 16 mil milhões de euros a entrar na Hungria (a fábrica de carros chinesa BYD entrou no país, apesar de estar a ser alvo de uma investigação europeia sobre o recurso a subsídios ilegais).
Ao Politico, Bóka defendeu que existe “a possibilidade de uma parceria significativamente e mutuamente benéfica, ao nível económico, com a China”. “Acredito que este será o maior desafio do próximo ciclo institucional”, defendeu o ministro. Tudo enquanto a Comissão Europeia tenta, em articulação com os Estados Unidos e o Japão, distanciar-se e ganhar autonomia em relação a cadeias de abastecimento que passem pela China.
Para o ministro húngaro, no entanto, o conceito de “segurança económica” generalizada não existe: “Se há riscos para a nossa segurança, devem ser especificamente identificados e combatidos”. O discurso que a Comissão Europeia tem adotado, no sentido de garantir cada vez mais a soberania, a segurança e a independência económica da UE, pode assim ficar em risco, pelo menos de um adiamento, por uns meses.
Posição dura na imigração (com “relaxamento” dentro de portas)
É possível encontrar um paradoxo entre as promessas de Orbán para estes seis meses. Por um lado, o Governo húngaro tem endurecido o seu discurso relativamente à imigração, e colocou o assunto no centro das suas prioridades — Orbán diz querer “combater a imigração ilegal trabalhando de perto com os países de origem e de trânsito, enfatizando a importância de proteger as fronteiras externas e a necessidade de haver fundos europeus para este propósito”.
Por outro lado, nota o Politico, um dos assuntos que mais interessam a Budapeste — que desde 2015 até organiza uma conferência anual sobre o assunto — é a demografia, numa altura em que vê a sua população a cair ou a emigrar para outros países europeus (e, consequentemente,alguma escassez de mão de obra). Por isso, escreve o jornal, o governo “escolheu colocar o pragmatismo acima da sua ideologia cética em relação à imigração”.
Ou seja, uma vez que as medidas que o governo implementou na última década para tentar aumentar a natalidade — com benefícios fiscais para os pais ou subsídios para comprarem casa — não estão a impedir a queda desses números, prevendo-se que a população húngara caia dos atuais 9,6 milhões para 8,5 milhões em 2050, o governo tem passado medidas que abrem as portas de forma temporária a imigrantes, como uma lei que permite a trabalhadores de 15 países fora da Europa ficarem no país por um período de até três anos.
As fábricas chinesas instaladas no país também explicam este “relaxamento” nas regras, diz o Politico, uma vez que a Hungria precisa urgentemente de mão de obra. Ainda assim, as entradas são limitadas — 65 mil imigrantes por ano — e não se aplicam a todos os países, nem é permitido aos trabalhadores “convidados” por tempo limitado trazer o resto da família.
A família europeia que pode trazer mais influência a Orbán
Tudo isto acontecerá ao mesmo tempo que Orbán batalha noutra frente europeia: a fundação de uma nova família política, os Patriotas pela Europa, que lançou ao lado dos partidos irmãos da Áustria e da Rep. Checa, com o objetivo de ser “o grupo de direita mais forte na política europeia”. O grupo diz querer aplicar “a vontade dos eleitores” — que passará, diz Orbán, por “paz, ordem e desenvolvimento”, e não pelos objetivos da “elite de Bruxelas (“guerra”, “migrações” e “estagnação”).
Patriots for Europe is growing day by day! pic.twitter.com/ymquQ4Mv5s
— Orbán Viktor (@PM_ViktorOrban) July 2, 2024
Em Portugal, o Chega foi convidado a aderir ao grupo — André Ventura disse ver com “bons olhos” a iniciativa, numa lógica de “combate ao socialismo”, e prometeu discuti-la nos órgãos do partido e anunciar depois a sua decisão. Se crescer da forma que Orbán pretende, o Patriotas pela Europa pode tornar-se uma família de peso europeia — o que, a somar à presidência da UE, poderia emprestar ao Governo húngaro uma maior influência, temida por muitos responsáveis em Bruxelas.