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Helena Lins tem 22 anos. Catarina Mota, 25. A primeira é jornalista, a segunda mulher-palhaço. Ambas lisboetas, mas ambas “do mundo”. Com muito mundo calcorreado, apesar da idade.
A 6 de agosto de 2015 embarcaram rumo ao Uruguai. Aterraram em Montevideu, uma viagem de avião e 12 horas mais tarde. Viveram, não na capital uruguaia, mas em aldeias remotas durante quatro meses, até dezembro. O Natal e o Ano Novo celebraram-nos no Brasil, retornando ao Uruguai, não para dar aulas de português (e inglês) a crianças como até aí, não para trabalhar a auto-estima de idosos nos lares daquelas três aldeias onde o Serviço Voluntário Europeu chegou, mas para conhecer a figura mais importante do país no pós-ditadura militar: o ex-Presidente da República (hoje senador/agricultor) José Mujica.
O resultado da aventura deu em exposição fotográfica, que estará até ao final do mês na Casa Europa, na Cruz Quebrada, em Lisboa. Chamaram-lhe “No Uruguai não há nada”.
Missão quase-impossível: conhecer “Pepe” Mujica
Não, não correu bem à primeira. Mas quando soube que seria voluntária no Uruguai, Helena foi logo com ela fisgada: “Queria conhecer o Mujica. Cá, diziam-me: ‘Isso é como ir aos Estados Unidos e conhecer o Obama’”, conta Helena. Mas conseguiu chegar a ele, quase, quase no fim do Serviço Voluntário Europeu. Ou melhor: foi mesmo no último dia, a 1 de dezembro de 2015.
Mas como foi possível conhecer o ex-Presidente da República uruguaio? “Na véspera, fomos realizar uma atividade na praia, e na volta o telefone da Catarina toca. Era a alcaide da aldeia, uma espécie de presidente da junta, que pertencia ao partido do Mujica e conhecia pessoalmente a companheira dele, a Lucía [Topolansky]. E foi essa alcaide quem nos conseguiu uma entrevista com os dois no Palácio Legislativo”, recorda.
Madrugaram. Foi preciso acordar às cinco da manhã para chegar a Montevideu a horas. Mas, chegadas lá, ao Palácio Legislativo, “nem cinco minutos” conversaram com Mujica. “Era o dia da votação do orçamento do Estado, o Pepe e a Lucía tinham chegado pouco antes de uma viagem à Turquia, e ele estava mesmo com um ar desgastado”, conta Catarina.
Mas Helena, tagarela, não desistiu. Afinal, tinha chegado a “Obama”. Ou melhor, a Mujica. “No final, voltei-me para a Lucía e expliquei-lhe que, para muitos de nós, aquele era o último dia antes de voltar à Europa, mas que eu e a Catarina ainda íamos ao Brasil e voltaríamos ao Uruguai no final de janeiro. Pedi-lhe para irmos conversar com Pepe nessa altura, à casa deles. Claro que estava à espera de um valente não…” Mas a resposta da senadora Lucía Topolansky foi outra: Sí, por supuesto.
“Ela deu-me o número de telefone pessoal e pediu que ligássemos nessa altura, em janeiro. Claro que guardei o papelinho com o número a sete chaves, para não o perder. E, mal voltámos do Brasil, liguei-lhe da farmácia – que tinha um telefone público e é uma espécie de ponto de encontro das pessoas da aldeia. Ela atendeu, isto era uma segunda-feira, e marcou a conversa para quarta às 10 da manhã.” E a morada? “Perguntei-lhe, sim. Ela riu-se e respondeu-me que o melhor era eu passar o telefone ao senhor da farmácia, porque aquilo não tinha morada e só lá chegaríamos com quem é do Uruguai. A nossa sorte foi que a responsável pela ONG com a qual trabalhámos aqui no Uruguai se predispôs a levar-nos até lá, até à casa do Mujica, por um caminho de terra batida, sem placas, sem nada, mas não muito longe de Montevideu”, conta.
O normal para chegar à quinta de José Mujica, quando a terra batida vai ter a nenhures, é encostar o carro (no caso, uma carrinha pick-up) e perguntar pela casa do Pepe. Assim mesmo. “E alguém te diz o caminho, como se o ex-presidente fosse o vizinho do lado.” Helena prossegue com a história: “Saímos de casa às três da manhã e chegámos lá às dez. Aquilo nem parecia a casa de um ex-Presidente da República. Havia uma cancela a dizer ‘Stop’, veio um caseiro ter connosco (que nem polícia era) e lá nos levou ao Mujica. Ele estava chateado nesse dia, porque o trator estava avariado e não podia ir trabalhar. Graças a isso, ficámos mais tempo com ele do que o previsto.”
A entrevista foi feita a três vozes, por três voluntários da União Europeia: Catarina, Helena (que também fotografou) e Eduardo. “O Eduardo fez-lhe perguntas mais sobre filosofia, porque o Pepe interessa-se por filosofia. A Helena fez-lhe perguntas sobre a nossa geração e a política atual. Eu fui mais pela ideologia, falei com ele de Cuba e da razão pela qual o Pepe foi chamado pelo Obama para intermediar as conversações entre os Estados Unidos e Raul Castro”, recorda Catarina.
Helena fala mais efusivamente do encontro do que ela. Catarina recorda sobretudo a “estrela hollywoodesca” que Mujica é entre uruguaios. “Ele não é antipático. Mas quando a conversa se prolonga demais, quando se aborrece ou o aborrecem, dá meia volta e vai-se embora. E isso aconteceu-nos. Enquanto lá estivemos à conversa, durante aquela manhã, ele foi interrompido duas vezes por duas senhoras que não o conheciam. Uma delas olhava para ele como se se tratasse do Brad Pitt. Aí, cansado, ele acabou com a entrevista e foi trabalhar a terra”, lembra.
Mas nenhuma, Helena ou Catarina, apesar do fim brusco, se desiludiu. “O que é interessante, e é sobretudo isso que recordo, é que ele é tal e qual o que vemos na televisão ou lemos nos jornais. Eu tinha acabado de ler uma biografia dele para me preparar para a entrevista, e quando a li, imaginei-o como um personagem. ‘Ninguém é assim’, pensava eu. Mas é: ele, no trato, era tal e qual esse ‘personagem’. Há quem o julgue um pacóvio. Há quem diga que essa ruralidade o descredibiliza politicamente. Mas é precisamente o contrário: ele é assim porque quer, trabalha a terra porque quer, e sabe perfeitamente que isso lhe dá valor e impacto junto do eleitorado uruguaio”, explica Helena.
Jornalista, é apaixonada por fotografia e cinema documental. Mujica não sabia. Não tinha como saber. E nem falaram disso na entrevista/conversa. Ou melhor, falaram. Quase sem querer. “A mim o que mais me marcou foi uma resposta dele. Uma metáfora, aparentemente simples, mas que chega às pessoas. E chegou a mim. Falámos muito sobre as mudanças políticas no mundo. E ele viveu muitas, no Uruguai e fora dele. Ele respondeu-me sempre. Nunca desviou o assunto. Mas a certa altura, com a minha insistência no tema, respondeu-me: ‘Sabes, a vida não é como uma fotografia, não pára. A vida é como um filme, altera-se, avança.’”
Dia 1: Partir à aventura no Uruguai rural
Ainda se lembra? Helena Lins tem 22 anos. Catarina Mota, 25. A primeira é jornalista, a segunda mulher-palhaço. E a aventura, que culminaria em casa do ex-presidente do Uruguai começou muito tempo antes.
Helena, sempre de mochila às costas, empoeirada e cheia de bandeiras e bandeirinhas dos países que visitou, tem bichos-carpinteiros. E faz-se à estrada (primeiro na Europa, agora na América do Sul) como quem se faz ao fundo da rua. “Eu sempre quis viajar, viver noutros países, trabalhar e aprender noutros países. E sempre procurei, mesmo enquanto estudante, programas que me proporcionassem isso. Comecei, claro, pelo Erasmus.”
Fê-lo no País de Galês (Cardiff) e na Holanda (Roterdão), passando também por Espanha, por Barcelona — onde trabalhou na Agència Catalana de Notícies. “E foi nessa altura, quando procurei pelo programa Erasmus, que me deparei com outros programas que me possibilitariam isso mesmo: viajar, trabalhar fora de Portugal. Todos os dias eu ia, religiosamente, às páginas das organizações portuguesas que trabalhavam com o Serviço Voluntário Europeu, para saber por onde andavam a fazer voluntariado, até que, por fim, me surgiu a possibilidade de ir para o Uruguai e candidatei-me”, conta Helena.
Catarina há muito que se havia inscrito na associação ProAtlântico, uma das que trabalharam com o Serviço Voluntário Europeu em Portugal. “Inscrevi-me pela vontade de participar em projetos sociais.” E explica o quão diferente este programa [Serviço Voluntário Europeu] é dos restantes. “É completamente diferente. Acredito que é o mais inclusivo dos três [os outros são de que fala são os programas Erasmus e Leonardo da Vinci]. Os únicos critérios para te candidatares são a idade, ter entre 18 e 30 anos, e o ser-se cidadão da União Europeia. Nada mais. No Serviço Voluntário Europeu, é-nos tudo pago: o voo de ida e volta é pago, o alojamento é pago, e ainda nos é dado dinheiro de mão para alimentação e transportes. Curiosamente, é o programa onde se gasta menos dinheiro”, explica.
Helena ainda se recorda da primeira pergunta que a coordenadora do programa no Uruguai lhes fez: “Vocês têm a noção que vêm para uma zona muito rural, não têm?” Não se amedrontou. “Quando ela me perguntou aquilo, não recuei na minha vontade de ir, mas pensei: ‘Se houver água quente já não é mau.’ Ou melhor, se houver água em geral já não é mau de todo. É que quando fomos para lá, em agosto, era inverno no Uruguai, e tremia só de pensar que ia tomar banho de água fria”, graceja.
A chegada: uma realidade (felizmente) muito diferente da nossa
Montevideu é uma cidade deslumbrante, com burburinho, com movida, portuária e atravessada pelo rio da Prata. Vivem lá 1,3 milhões de habitantes. Quase três vezes a população de Lisboa. As aldeias do programa do Serviço Voluntário Europeu são a norte de Montevideu, “a umas três horas de autocarro”. E não vai lá ninguém — ou quase ninguém. Muito menos voluntários. São o oposto de Montevideu. Nalgumas aldeias vivem centenas de pessoas, noutras uns poucos milhares. Mais idosos do que crianças; a população uruguaia é envelhecida, tal como a portuguesa. “São aldeias tão remotas, que pesquisando por elas na internet, se encontras uma foto já vais com sorte – e quando a encontras, julgas-te no fim do mundo”, explica Catarina.
Mas não foi nada assim. “As famílias que nos acolheram tinham receio que, por virmos da Europa, estivéssemos habituadas a algum tipo de luxo e que sentíssemos que lá não tínhamos condições. Mas tínhamos. Aliás, tomara a muitas aldeias do interior de Portugal terem as condições de vida que aquelas famílias tinham. Tinham luz elétrica, frigorífico, água canalizada e potável, casas de banho, duche de água quente, internet rápida – que só ia ‘ao ar’ quando vinha uma daquelas tempestades grandes de inverno. Tinham tudo”, diz Helena.
(Utilize o cursor para conhecer as histórias de cada aldeia)
Catarina ficou em Santa Rosa, Helena em San António — e outros voluntários do programa em San Bautista. “Mas andávamos pelas aldeias uns dos outros. A coordenadora deixou-nos em autogestão, digamos assim. Nada daquilo, apesar de financiado pela União Europeia e de haver projetos e metas a cumprir, era burocrático. Tanto a Catarina vinha à escola onde eu estava, como eu ia ao lar de idosos onde ela estava a trabalhar.”
O propósito deste projeto era a comunicação. Todas as formas de comunicação. Cada uma, Helena e Catarina, comunicava à sua maneira.
“Nós tínhamos, por exemplo, que dar aulas de idiomas às crianças, aulas de inglês e português. Eu, como mulher-palhaço, como atriz, trabalhava isso de uma forma mais lúdica. Em San António tive um projeto que era o de apresentar Ulisses, a obra, às crianças. O que fizemos foi dividir aquilo em cantos, claro, e representar cada um deles. Ou melhor, elas representarem. E aquilo, no final, foi apresentado aos pais e aos professores. Por outro lado, no lar, com os idosos, o que fazia era animação sociocultural”, explica Catarina.
O primeiro choque cultural: pernocas ao léu, “¡ni hablar!”
Os uruguaios são um povo latino, e como latinos que são, são abertos no trato, calorosos no acolher. “O estatuto de voluntários também nos ajudou. Acho que se fossemos só viajantes a coisa seria diferente. Mas o voluntário chega para ficar, para ser mais um”, lembra Catarina.
Helena partilha da mesma opinião, a do calor humano uruguaio. Mas lembra que há marcas que uma ditadura militar (1973-1985) deixou e que teimam em desaparecer. Da pele. Literalmente “da pele”. “Sim, eles são calorosos. Mas ao terceiro mês apercebi-me que essa boa vontade também esconde uma mentalidade algo fechada. Ou pelo menos que não está aberta à mudança cultural.” Como assim? “Vou dar um exemplo: o liceo é uma instituição que muitos uruguaios sentem que parou no tempo. Certo dia, como estava um calor abrasador, fui de calções para o liceo. Íamos falar, imagine-se, da interculturalidade com os alunos. E não é que o diretor me chama de parte e me dá uma reprimenda por eu ir de calções?! Eu tive que explicar a um diretor de liceu, que é professor de geografia e um homem viajado que cá, com o devido decoro – ir para as aulas não é o mesmo que ir sair à noite –, as raparigas e os rapazes podem usar calções na escola e isso não é um problema.”
O diretor não entendeu e fez finca-pé de que Helena não deveria voltar a vestir calções. Mas, perdido por cem, perdido por mil, aquele par de pernas a descoberto haveria de servir para alguma coisa. “Eu estava ali para dar uma aula e fui dá-la. Mal entro na sala, ouço um brrruuaaaaaa, com todos a olharem-me para as pernas, com estranheza. Rapazes e raparigas. Lá, é mais fácil proibir do que educar a mentalidade. Lá e cá, claro. O que fui fazer, não fiz, e a conversa, cinquenta e tal minutos de conversa, foi sobre isso: um exercício prático, partindo dos calções, sobre cultura e liberdade de estar e de agir. O Uruguai viveu em ditadura durante muitos anos. Ainda há muito dela enraizada nas mentalidades. Mas há que mudá-las”, explica.
Mas voltemos ao primeiro mês, aos primeiros dias e à escola primária de San António. Helena, mal entrou na sala de aula, teve um receio: o de ser “um colonizador, um imperialista” — com as devidas aspas. E explica: “Quando as crianças queriam saber como era Portugal, mostrava-lhes as paisagens bonitas: o elétrico em Lisboa, o rio Douro no Porto, o verde dos Açores, as praias da Costa Vicentina e do Algarve. E elas, que sendo do interior nunca tinham visto uma praia – e no Uruguai há-as, tão ou mais deslumbrardes do que as nossas –, diziam: ‘Mas porque é que vocês vieram para cá? O que nós queremos é ir para Portugal convosco.’”
Foi aí que se decidiu: “Vou passar-lhes a câmara fotográfica para a mão e eles vão descobrir, por eles, o quão de riqueza há nas aldeias onde vivem. Quis que eles vissem o que eu vi quando cheguei. E não estar a mostrar-lhes o que Portugal tem para mostrar. O propósito era o oposto: não ser ‘imperialista’.”
Já falaremos da câmara fotográfica de Helena. Primeiro, a palavra a Catarina, que sentiu o mesmo Santa Rosa. Os uruguaios viam-se como inferiores aos portugueses – e aos europeus em geral. E não eram. “A mim chocava-me quando os adultos me diziam que nós éramos do primeiro mundo e eles do terceiro. Isso não era verdade. A diferença, pelo menos para com Portugal, era quase nula.”
Aliás, diferenças há, sobretudo no Estado Social, mas para melhor. “No Uruguai, enquanto as crianças estudam, não pagam nada: escola, livros, material… Nada. E até a computadores e a tablets pessoais têm acesso, logo na primária. São deles, o Estado deu-lhos. E isto é assim até ao fim da universidade pública. O ensino é gratuito, ponto. E eles é que são o terceiro mundo?”, pergunta, retoricamente, Catarina.
Helena não responde, mas prossegue: “Lá, com a chega do Mujica à presidência, em 2010, durante esse período despenalizou-se, de uma só vez, o aborto, o casamento homossexual e o consumo de marijuana no país. Cá, discutimos isto há anos e anos, muda o governo e o que era legal já não é, voltamos sempre à estaca zero. E lá, mude o governe ou não, o que está instituído, está instituído. Isto não é um exemplo para Portugal; é um exemplo para a União Europeia”, atira.
Mas ainda a propósito da escola pública no país. Porquê o português? Afinal, foi também essa a razão do voluntariado de Helena: ensinar português às crianças. “Eles têm interesse em aprender. Está instituído nos programas escolares que uma das línguas estrangeiras a ensinar é o português. Mas como em muitas escolas não há professores que o ensinem – e ensinam em português do Brasil –, não se dá. Mal chegámos, a primeira coisa que nos perguntaram foi: ‘Como é que se diz isto e aquilo na tua língua?’” Mas isso é a parte da brincadeira. “Quando te sentas e tens que passar isso para o caderno, eles começam a desinteressar-se. E aí temos que encontrar outras formas de ensiná-los, de lhes dar o acesso à língua, mas sem reduzir o interesse e com recurso a exercícios práticos. A escola não tem que ser uma seca.”
A exposição: o Uruguai pela objetiva dos “uruguaiozinhos” (e com direito a provocação)
No primeiro dia da exposição que Catarina e Helena organizaram na Casa Europa, foi convidado o conselheiro da embaixada do Uruguai. “E chegou lá todo carrancudo, todo ofendido com o título da exposição: ‘No Uruguai não há nada’”, lembra Helena.
Mas rapidamente a ofensa se foi. “Sim, sim. Depois, lá entendeu que era uma provocação, mas que não era ofensivo para com o país e os uruguaios. Ele próprio nunca tinha ido ao interior do Uruguai – e quando foi, deve ter ido a uma daquelas churrascadas, em grandes casarões, e não às aldeias que nós conhecemos. O senhor era de Montevideu. Que no Uruguai não havia nada, foi-nos dito cá e lá. E daí o título: queríamos provar o contrário, provocando. Talvez naquelas aldeias não haja modernidade, talvez não haja monumentos, mas há pessoas e são as pessoas que fazem do Uruguai o país que é. Pessoas com histórias para contar”, explica.
Mas a exposição não foi o ponto de partida. Foi, antes, um ponto de chegada. Tardio. Helena nem sabia bem o que trazer do Uruguai para contar. Mas sabia que queria trazer o que contar. “Contar o quê? E como? Não queria ser a típica europeia, jornalista, que vai lá tirar fotos às criancinhas e às paisagens e aos monumentos. Logo eu, que nem gosto de paisagens. Eu queria que eles olhassem para o sítio onde vivem como eu olho: com interesse. Mas para eles, falar da aldeia onde vivem, é tão normal que nem têm o que contar se lhes perguntares: ‘O que há aqui para ver?’”, recorda.
Então, provocou-os:
– Os meus amigos lá em Portugal dizem que aqui não há nada. Vocês ficam-se?
“Dei-lhes a máquina fotográfica para a mão, e eles foram-me mostrar tudo: o típico jogo da bolha, o aviário e até houve uma criança que se chegou, timidamente, ao pé de mim e me disse: ‘Eu tenho uma casa na árvore, não sei se é interessante ou não’. Uma casa na árvore? Eu em Lisboa nem varanda tenho, quanto mais uma casa na árvore”, lembra, entre risadas.
Só havia resistência dos fotógrafos de ocasião em dia de futebol. “O treino de futebol para eles era sagrado. Mas até aí foi interessante observar a surpresa quando descobriram que o treinador de futebol, afinal, tinha como profissão ‘a sério’ ser ferrador de cavalos. E eles foram fotografá-lo a fazer isso mesmo: ferrar cavalos”, conta.
Mas na exposição não há só rostos de crianças. Também os há “enrugados”. Catarina trabalhou mais com os segundos, idosos, nos lares das aldeias. Mas é diferente trabalhar com uns e com outros, idosos e crianças. “As crianças são o futuro – parece uma frase feita, mas é verdade –, enquanto os idosos têm mais passado. Com eles, ouves mais do que falas, aprendes mais do que ensinas, recebes mais do que dás.” Catarina, como mulher-palhaço, já tinha trabalhado em lares em Portugal. E traça as comparações possíveis. Sobretudo as menos boas. “Infelizmente, lá como cá, a população é envelhecida. Falta privacidade, as camas são muito próximas umas das outras, e mesmo em termos de saneamento, se um idoso se constipa, constipam-se todos – precisamente pela falta de espaço. Depois, havendo solidão, havendo histórias de violência ou de abandono, isso vai contagiar os demais. E as depressões são muito comuns. O meu trabalho é precisamente esse: trabalhar a auto-estima”, explica.
Mas não foi só chegar e começar. Primeiro, criam-se os laços. “Sim. É essencial. Ouvimos as histórias deles, apresentamo-nos, damos-lhes atenção – e isso é fundamental: a atenção. Depois, pouco a pouco, começaram as atividades lúdicas. Havia o dia do baile – e eles, latinos, adoram bailar –, o dia do cinema – o que os velhotes uruguaios gostam dos filmes do Cantinflas! –, o dia do origami, do tricô ou da pintura, tudo atividades que ‘desentorpecem’ o cérebro.”
Depois, chega a vez de Helena e de disparar o flash. A custo. “A exposição surge para que tudo aquilo que vivemos e presenciámos não nos fique só na lembrança. Quando os queríamos fotografar, os idosos diziam-nos: ‘Não, que sou feio ou feia.’ Faltava-lhes auto-estima. Tinham fotografias suas até uma certa altura da vida adulta, e daí em diante só tinham fotografias dos filhos ou dos netos. Lá os convencíamos, lá se arranjavam, punham um bâton e fazíamos o retrato”, conta.
Depois da entrevista com Mujica, deixaram o Uruguai. “Voltar é o que custa mais. Custa sempre. O tempo nunca é o suficiente. E quatro meses não são nada. No primeiro mês estás a habituar-te, no segundo é quando engrenas, no terceiro é quando trabalhas a sério e no quarto já te estás a vir embora”, explica Catarina.
Deixaram o Uruguai, mas o Uruguai não as deixou. Não a Helena.
– Às vezes, quando é uma da manhã cá e o dia está a começar na aldeia, recebo mensagens das crianças no Whatsapp. E respondo, ensonada mas respondo.