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Irreverente, divertido, polémico, louco. A saga do jornal Tal&Qual, fundado há 40 anos

Pré-publicação. 40 anos depois, um livro desvenda os bastidores do jornal Tal&Qual e das suas principais histórias: da Dona Branca ao falso deputado; de Snu à guarda-costas de Sá Carneiro.

“Fui o pai do Tal&Qual. Digo-o aqui desde já antes que chamem pai a outro.” Arranca assim o prefácio de Joaquim Letria ao livro “Tal & Qual – Memórias de um jornalismo”, onde conta como o jornal nasceu, há 40 anos, por causa do fim abrupto do seu programa de televisão com o mesmo nome. Foi chamado por Carlos Cruz, diretor de programas da RTP, para lhe comunicar que iam acabar com o programa, por indicação do então presidente do canal público, Victor da Cunha Rego, por alegadamente a Igreja ter ficado incomodada com uma entrevista histórica em que o ator Carlos Wallenstein interpretava o padre José Agostinho de Macedo, da Real Mesa Censória.

Era noite de santos populares e Joaquim Letria foi jantar sardinhas a Alfama com o jornalista catalão Ramon Font, que o desafiou: “E se fizesses um jornal com o mesmo nome e a mesma filosofia do programa?”. Em poucas horas ficaria criado o núcleo duro de um novo jornal semanário, que duraria 27 anos. “Foi aí que nasceu o jornal Tal&Qual. Eu fui o pai, fui quem o concebeu, escolheu o grafismo, a filosofia editorial dum “yellow paper” que não havia em Portugal, as rubricas, “A Pimenta na Língua” e o modo de o fazer. Mas quem teve a ideia foi o Ramon Font. Quando me deitei de madrugada já tinha na cabeça um “jornal de boulevard”. No dia seguinte telefonei ao Hernâni Santos (…). Perguntei-lhe: “Queres vir fazer mais um jornal comigo?” Encontrámo-nos, ele acreditou que era possível e que éramos suficientemente loucos para o fazer e ter sucesso. (…) O Hernâni Santos, entretanto, sugere que conhecera no Expresso onde fora chefe de redação um tipo que fazia falta a este projecto. Ele tinha razão: o José Rocha Vieira foi um elemento muito importante. Ficaria mais tarde dono e senhor do Tal&Qual depois de os quatro desfazermos a sociedade de 4×25% de quotas que decidíramos criar.”

Além do prefácio de Joaquim Letria, o livro conta com depoimentos de ex-jornalistas com bastidores das histórias mais marcantes, reunidos por José Paulo Fafe, ex-jornalista que chegou à direção do Tal&Qual. O maior capítulo, onde se reconstituem de forma mais aprofundada os bastidores dos primeiros tempos do jornal e dos grandes escândalos que denunciou, é da autoria de Gonçalo Pereira da Rosa, jornalista e investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa, que já antes tinha escrito entre outros os livros “Parem as máquinas – Glórias, peripécias e embustes do jornalismo português”, “O inspetor da PIDE que morreu duas vezes” e “Big Mal & Companhia”. Pode ler a seguir a pré-publicação de alguns excertos desse capítulo.

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Como Snu e Sá Carneiro aparecem na primeira capa

Há um certo ar de bravata, de desafio ao establishment no fervor com que se prepara a primeira edição do jornal. «O Joaquim [Letria] tem a grandeza de lembrar sempre que terei dado a sugestão para o prolongamento do nome do programa no jornal», lembra Ramon Font. «Lembro-me sobretudo de insistir para que a ideia fosse posta em prática de imediato. Não podíamos entrar naquele ritmo típico do “Agora, mete-se o Verão e faz-se lá para a frente”… Era agora ou nunca.»

Nas próprias instalações da União Gráfica, é escrita grande parte da primeira edição do jornal, que irá para as bancas no dia 28 de Junho, véspera de São Pedro e catorze dias depois do último Tal&Qual emitido pela RTP2. (…) «Foi uma loucura. Saudável, mas foi uma loucura», diz Letria. Na velha gráfica do Patriarcado, trabalham freiras em todos os departamentos. A irmã Miquelina trata da tesouraria. Outras freiras compõem as páginas. É provável que os quatro jornalistas [Letria, Font, Hernâni Santos e Rocha Vieira] esfreguem de vez em quando os olhos para garantir que não estão dentro de um conto de Borges, com hábitos de freiras e máquinas de impressão, terços e fotografias de nus artísticos. (…)

Os quatro jornalistas trazem as histórias que lhes chegam ou que estão na gaveta por ausência de veículo de disseminação. Batem bares de jornalistas, recuperam velhas fontes. Decide-se naquele instante um dos lemas que marcará o jornal: o Tal&Qual publicará as histórias que não saem nos outros jornais. «Abria-se então uma edição do Diário de Notícias e era assustador», conta Rocha Vieira. «Em mais de oitenta páginas, parava-se em três ou quatro histórias. O resto enchia colunas supérfluas. Que desperdício! Decidiu-se ali, naquele instante, que o Tal&Qual podia só ter 8 páginas, mas até a publicidade seria lida.»

O Partido Socialista parecia pior do que a Igreja. Acusava [Sá Carneiro] de ter uma amante estrangeira, de ter largado a mulher e os filhos. As paredes da rua estavam todas pichadas com acusações. “Paga o que deves”, “Caloteiro”, “Ladrão” e “Abandona mulher e filhos para ir viver com a amante”. Tinha até havido uma polémica anterior numa cerimónia oficial em que Sá Carneiro não pôde fazer-se acompanhar pela Snu. Essa é a razão de ser da manchete.
Joaquim Letria, primeiro diretor do Tal&Qual

Não há fotógrafos contratados e demorará algum tempo até ser possível avençar profissionais de fotografia. Os primeiros serão José Tavares, Marques Valentim, Júlio Marques e Luiz Carvalho. Muitos outros são recompensados por peça. Bem recompensados, aliás. «Recebia na altura 20 contos por um mês de colaboração», conta Rui Ochoa, então no quadro do Jornal de Notícias. Marques Valentim, que concilia a chefia do sector fotográfico do jornal Portugal Hoje com uma avença no Tal&Qual em 1981, lembra um jornal onde recebia «cinco contos por cada edição, o que, num mês com cinco semanas, permitia auferir um salário melhor do que o do meu jornal principal».

Joaquim Letria e Hernâni Santos espalham a palavra como evangelistas: se alguém tiver fotografias relevantes no mercado, o Tal&Qual é o porto de destino natural. Respondendo ao repto, Carlos Gil traz um conjunto de duas fotografias bombásticas, se analisadas com a lupa de 1980. O primeiro-ministro Sá Carneiro está acompanhado por Snu Bonnier à chegada a uma recepção. Não é a esposa com a qual o líder da Aliança Democrática está casado. «É uma história que se sussurrava pelo país e que tem muito que ver com o clima de então», explica Letria. «O Partido Socialista parecia pior do que a Igreja. Acusava-o de ter uma amante estrangeira, de ter largado a mulher e os filhos. As paredes da rua estavam todas pichadas com acusações. “Paga o que deves”, “Caloteiro”, “Ladrão” e “Abandona mulher e filhos para ir viver com a amante”. Tinha até havido uma polémica anterior numa cerimónia oficial em que Sá Carneiro não pôde fazer-se acompanhar pela Snu. Essa é a razão de ser da manchete.»

Sem pestanejar, escolhe-se essa notícia como tema de primeira página. É uma espécie de trompeta do apocalipse: com ela, o Tal&Qual anuncia ao que vai, sem tabus e doa a quem doer. A manchete será recebida (no Snob) com sussurros de protesto deontológico e acusações de voyeurismo, mas ela cumpre uma função cara a Hernâni Santos: «Nunca deixei que se publicasse algo reles no jornal. Os jornais ingleses entendem que lhes cabe a fiscalização do funcionamento do Estado que nós pagamos com os nossos impostos. Em Inglaterra, o bem maior está acima de tudo. Aqui, isso não existe, embora tentássemos concretizar essas ideias no jornal.» Com uma história da vida íntima do primeiro-ministro (se é que um primeiro-ministro pode aspirar a salvaguardar a sua intimidade), o jornal vai para as bancas no sábado, 28 de Junho – o mesmo dia em que o Expresso de Hernâni Santos e Rocha Vieira também é publicado.

Por momentos, parece que os semanários conseguirão coabitar. É no Expresso que é anunciada a intenção de Letria de dar nova vida ao Tal&Qual com chumbos e granéis (embora erradamente se escreva que Thilo Krassman integra a equipa). É também no Expresso que é dado um empurrão ao jornal no dia em que este é lançado. «Marcelo Rebelo de Sousa fez-nos o favor de escrever uma notícia na rubrica Gente, dizendo que o novo semanário custaria 5 escudos e que, pagando o Expresso com uma nota de 20, o leitor poderia recusar o troco e trazer o Tal&Qual», lembra Rocha Vieira. Até Dezembro de 1980, altura em que o Expresso aumentará o preço de capa, essa ideia de marketing funciona. Pelo troco de um jornal “sério”, o leitor terá notícias diferentes. (…)

O jornal que “tanto choca os saudosistas como os comunistas”

Não é a primeira virtude que ocorre à mente, mas o Tal&Qual, pelo menos na primeira década e meia de existência, impõe um registo narrativo totalmente oposto ao da imprensa da época. Recorre a linguagem televisiva – frases curtas, incisivas, muitos jogos de palavras e referências culturais improváveis. Com frequência, os títulos são estampidos de granada, quase como se fossem redigidos para serem gritados pelos ardinas. Ao noticiar os múltiplos cargos de Manuel Figueira, figura sinuosa de O Século e do regime anterior, o Tal&Qual regista: «O “Rolha” da Direita» (14 de Maio de 1983). Expondo Maria Elisa num caso que se discutirá mais adiante, a manchete grita: «Olá, Dona Maria Elisa». O título interior canta: «Elisa-ué, Elisa-uá!» (2 de Junho de 1983). Até na legenda da primeira página, o humor faz-se sentir. Sob uma fotografia comprometedora da jornalista seminua com um actor/político africano por cima, o lead sente necessidade de explicar: «Elisa é a de baixo.» (…)

Os títulos são inspirados por Hernâni Santos e por Rocha Vieira. Tanto podem induzir propositadamente em erro (como no caso da edição de 13 de Novembro de 1982, em que o jornal promove «Exclusivo: Entrevista com o Dr. António de Oliveira Salazar», para salientar uma conversa com um homem cujo único ponto em comum com o ditador falecido é o nome) como são jogos de palavras polissémicos e magistrais. O que dizer da manchete que chama a atenção para uma entrevista exclusiva com Dom Duarte de Bragança, fotografado em cima de um tractor, na edição de 3 de Julho de 1982 («Dom Duarte, um Rei a Gasóleo»)?

Há outra tendência que se expressa desde o primeiro número do Tal&Qual. Não há vacas sagradas na agenda, nem alvos fora do alcance (embora possa ser argumentado que Ramalho Eanes dispõe no Tal&Qual de uma bateria de fogo amigável em comparação com outras personalidades políticas da época). Numa apresentação ao público em Maio de 1981, no Solar do Vinho do Porto, Hernâni Santos explica com limpidez a Constituição que rege o jornal: «Ninguém duvide de que o espírito com que publicaríamos uma notícia sobre Álvaro Cunhal a actuar como travesti no Casino da Póvoa é o mesmo espírito com que revelaríamos uma informação sobre Kaúlza de Arriaga a dar o nó (górdio) com uma mulata moçambicana.» Não é um exagero estilístico. O país está em pleno acerto tectónico após o sismo de 1974. As placas estão a voltar à posição original, da mesma forma que os refugiados de 26 de Abril retomam hábitos antigos e retiram do armário as divisas guardadas. (…)

Três dos quatro jornalistas fundadores colaboram com o Palácio de Belém durante os mandatos de Ramalho Eanes. Rocha Vieira é consultor em Belém. Letria e Hernâni envolvem-se na segunda candidatura presidencial do general e Letria será mesmo convidado a assumir funções de porta-voz do Presidente. As páginas do jornal podem não reflectir esse eanismo latente, mas ele faz-se sentir em momentos inesperados: depois de colaborar com a campanha presidencial de Soares Carneiro, rival de Eanes em 1980, Rui Ochoa descobrirá que o seu lugar no jornal será preenchido por outrem. «Julgo que não me perdoaram», conta o fotógrafo

A política, porém, fica à porta. O Tal&Qual (…) zurze à esquerda e à direita. Tanto choca os saudosistas, exibindo o quotidiano de Dona Maria, a antiga governanta de Salazar (em 19 de Julho de 1980), como os comunistas, num inesquecível apanhado de Rui Ochoa com Álvaro Cunhal saudando uma criança, por cima de uma legenda assassina: «Com que então a dar palmadinhas no rabo de um pequeno-almoço?» (4 de Outubro de 1980). Curiosamente, três dos quatro jornalistas fundadores colaboram com o Palácio de Belém durante os mandatos de Ramalho Eanes. Rocha Vieira é consultor em Belém. Letria e Hernâni envolvem-se na segunda candidatura presidencial do general e Letria será mesmo convidado a assumir funções de porta-voz do Presidente.

As páginas do jornal podem não reflectir esse eanismo latente, mas ele faz-se sentir em momentos inesperados: depois de colaborar com a campanha presidencial de Soares Carneiro, rival de Eanes em 1980, Rui Ochoa descobrirá que o seu lugar no jornal será preenchido por outrem. «Julgo que não me perdoaram», conta o fotógrafo, que guarda mesmo assim uma memória saudosa dos meses de trabalho aventureiro no Tal&Qual em 1980. «Até me chamaram fascista.» (…)

A Bond Girl à portuguesa que levou à expulsão do chefe

Os primeiros grandes exclusivos do semanário são notícias sobre disruptura da intimidade do primeiro-ministro («Enfim, juntos», 28 de Junho de 1980), denúncias ocultas («Vasco da Gama Fernandes: Ameaçam Matar-me», 12 de Julho de 1980), crimes fantásticos («Crianças Portuguesas Vendidas para a América», 14 de Agosto), personalidades misteriosas reveladas («A Dona Maria do Salazar», 19 de Julho de 1980) e reportagens do mundo misterioso da espionagem, onde Hernâni Santos cultivará fontes quase inesgotáveis («Eu Montei Escuta aos Líbios Em Lisboa», 20 de Setembro de 1980»).

Há, porém, uma edição que talvez tenha tido o condão de revelar aos protagonistas o papel tremendo que um jornal desta natureza pode assumir, como um aprendiz de feiticeiro que, de súbito, descobre que as suas poções são afinal mágicas. No dia 9 de Agosto de 1980, o jornal expõe a primeira guarda-costas de um primeiro-ministro português. É uma história de João Rebôlo… perdão… de Luís Marques e de Rui Ochoa e começou, na verdade, com uma fotografia de Ochoa captada numa herdade alentejana durante uma cerimónia de entrega de terras a agricultores. «Na fotografia, aparecia a senhora, uma mulher jovem, em funções de segurança atrás de Sá Carneiro», conta Ochoa. «Era a primeira naquele cargo e suscitou a nossa atenção.»

O jornal pede autorização ao Comando Metropolitano da Polícia de Segurança Pública para entrevistar a agente. «A senhora começou a falar. Era nova e revelava uma certa ingenuidade. Contou muita informação e às tantas eu, também muito novo, perguntei-lhe se tinha pistola. Ela pegou na arma e fez pose à James Bond.» O Tal&Qual publica a história sob o título: «Esta Mulher Anda Atrás de Sá Carneiro.» A fotografia torna-a uma Bond Girl à portuguesa. Durante a semana seguinte, as ondas de choque percorrem os comandos policiais e o Palácio de São Bento. Sá Carneiro ordena pessoalmente a expulsão do major José Aparício. A agente é colocada noutra função e o seu chefe demitido. O Tal&Qual, no seu número 7, já provoca demissões e repercussões.

Não é só no Tal&Qual que se constata esse poder. Outros jornalistas, porventura renitentes a princípio com a forma espalhafatosa como o jornal se exibe, descobrem no semanário uma válvula de escape. O Tal&Qual publica o que outras direcções editoriais vetam. No mesmo dia 9 de Agosto, António Ramos publica no jornal um texto que Francisco Sousa Tavares lhe vetara em A Capital. Orlando Raimundo e Eurico Vasconcelos furam igualmente decisões de veto no Diário Popular e publicam textos proibidos no Tal&Qual. (…)

A operação “Deputados Picam o Ponto e Dão à Sola”

Mas o Tal&Qual é, sobretudo, um jornal que segue uma agenda própria que, por vezes, colide frontalmente com a gestão política. Há um longo rol de testes de accountability publicados no jornal e seria fastidioso enumerá-los todos neste livro. Selecciona-se um, publicado em 30 de Novembro de 1984, como metonímia de todos os outros. Há muito que se sabia que alguns deputados da Nação aproveitavam a benevolência da Assembleia da República, que fechava os olhos às ausências parlamentares de sexta-feira, permitindo a vários deputados picarem o ponto e desaparecerem na direcção do horizonte. É montada, na redacção do Tal&Qual, uma operação de grande escala, cobrindo a Assembleia da República, a estação de Santa Apolónia e o aeroporto de Lisboa. O jornal documenta fotograficamente as ausências à esquerda e à direita, pois o lazer não tem partido. «Deputados Picam o Ponto e Dão à Sola», escreve-se na primeira página. «À sexta-feira, é matemático.» Curiosamente, Oliveira e Costa, o banqueiro que virá a fundar o BPN, é um dos prevaricadores. O escândalo dá que falar e suscita críticas de que os kamizakes do jornal sobre a Assembleia enfraquecem a democracia. (…)

Dois repórteres, Ferreira Fernandes e Victor Bandarra, testam o sistema de controlo de entradas do restaurante mais selecto de Lisboa, o Tavares. Envergam fatos-macacos, como operários depois de previamente marcada a mesa, pelo que não há qualquer recurso na lei que preveja a sua exclusão em função da indumentária. O restaurante não lhes barra a entrada e o proprietário até brinca com os jornalistas… da Lisnave. «Fomos de Fato-Macaco ao Restaurante dos Ministros», titula o jornal. Que outra publicação se atreveria a fazer o mesmo?

O recurso aos tribunais é o primeiro trunfo exibido neste jogo perigoso de intimidação, mas o jornal soma vitórias e absolvições nos tribunais da República. Por vezes, os casos são rocambolescos: «O primeiro caso do jornal em tribunal foi comigo como director», lembra Letria. O pretexto não poderia ser mais tonto. Rocha Vieira, ou J. Lobo Serrano, assinara no dia 11 de Outubro de 1980 uma notícia sobre o desaparecimento de droga apreendida numa divisão da Polícia Judiciária. Na edição de 25 de Outubro, «nas nossas palavras cruzadas, a primeira linha horizontal pedia: “Dizem que lá a droga é mais barata (Pl.)”. E a resposta era “Judiciárias”. Fui a tribunal, defendido por Miguel Galvão Telles que rebentou em estilhaços a tese da acusação ofendida. Disse ao juiz que era à Judiciária que cabia provar que não desaparecera droga das suas instalações. Fomos absolvidos.» Noutras ocasiões, a balança do tribunal pode ser mais injusta e nem a arte e manha do saudoso Miguel Pamplona, durante anos advogado do jornal, satisfazem os juízes. O primeiro caso judicial que o Tal&Qual esteve na iminência de perder, sendo por isso forçado a negociar um acordo extrajudicial, foi… gastronómico. Na rubrica Pimenta na Língua, um crítico do jornal destruíra, em trinta linhas, a reputação de um restaurante beirão. O acordo salva a honra do convento. (…)

O consultório de sexologia e a ida ao Tavares em fato-macaco

No espírito de responder a questões que os leitores não ousam colocar, o jornal abre também, em 1982, o primeiro consultório de sexologia da imprensa portuguesa. Recém-chegado dos Estados Unidos, Miguel Oliveira da Silva assina a coluna Sexualmente Falando, onde desfaz tabus e responde a questões. «Chegavam centenas de cartas por semana», lembra Rocha Vieira. Nesse mesmo ano, o Tal&Qual edita o livro com as melhores crónicas. Mais tarde, inicia igualmente os consultórios jurídico, de saúde e do consumidor. Pelas páginas do jornal, passa assim a nata do jornalismo português – além dos quadros do jornal, registem-se os nomes de João Carreira Bom, Luís Pinto Enes, Luís Alberto Ferreira, António Peres Metelo, Artur Portela, Carneiro Jacinto, Jorge Massada, Mário Castrim, Henrique Monteiro, Miguel Sousa Tavares, Paulo Catarro, Júlio Pinto, Ribeiro Cardoso, António Tavares Teles ou Neves de Sousa. Mais tarde, após um banho de fidalguia, alguns limpam do currículo a passagem pelo jornal. Rocha Vieira fará publicar, na edição de 3 de Julho de 1998, todos os nomes de colaboradores para memória futura.

Torna-se ponto de honra nas reuniões de redacção apresentar sugestões mirabolantes, por vezes descartadas por esquecerem o ponto principal – a demonstração de um vício. Em 1983, o jornal desencadeia uma das operações que mais ressonâncias terá na memória colectiva. Dois repórteres, Ferreira Fernandes e Victor Bandarra, testam o sistema de controlo de entradas do restaurante mais selecto de Lisboa, o Tavares. Envergam fatos-macacos, como operários depois de previamente marcada a mesa, pelo que não há qualquer recurso na lei que preveja a sua exclusão em função da indumentária. O restaurante não lhes barra a entrada e o proprietário até brinca com os jornalistas… da Lisnave. «Fomos de Fato-Macaco ao Restaurante dos Ministros», titula o jornal. Que outra publicação se atreveria a fazer o mesmo?

«Foi uma loucura. Saudável, mas foi uma loucura», diz Letria sobre a criação do Tal&Qual em menos de duas semanas

Diana Quintela /Global Imagens

Pontualmente, os repórteres fotográficos recorrem a teleobjetivas para captarem a silhueta de figuras esquivas e nada ciosas de visibilidade. É o caso da história do espião de Hitler, um diplomata português preso em Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial e condenado à morte por espionagem. Depois de intenso trabalho de pesquisa documental, procurando o rasto de um homem que se esforçara por desaparecer, Hernâni Santos e Rui Cabral identificam-no, já sexagenário, na Escola Secundária de Castelo Branco, exercendo funções discretas de professor de Português («Português Espião de Hitler Vive em Castelo Branco», 16 de Abril de 1981). O fotógrafo de então sofre um rebate de consciência e não o fotografa à queima roupa. Capta-o do carro, à distância. Mesmo assim, a silhueta ilustra uma das histórias mais extraordinárias do jornal.

Algumas das histórias mirabolantes do acervo do Tal&Qual resultam precisamente da arte fotográfica de captar o insólito e da graça com que os repórteres desempenham as suas marotices. Quando o jornal decide comprovar que o PSD dispõe de tantos deputados na Assembleia da República que estes nem sequer se conhecem, Manuel Catarino transforma-se do dia para a noite num novo deputado laranja. Ocupa a última fila da bancada, abstém-se nas votações e consegue, por momentos, ludibriar a segurança e a validação das bancadas. Mas é a foto de Hermínio Clemente («Falso Deputado em São Bento», 25 de Janeiro de 1991), imortalizando o compenetrado Catarino entre os representantes da nação, que torna a história memorável. (…)

O “acaso feliz” da foto de Soares na praia e o escândalo Dona Branca

O espontâneo, por vezes, é preparado, embora seja apresentado como se de um acaso se tratasse. A fotografia embaraçosa de Alberto Frias captando Mário Soares na Praia do Vau junto de uma deslumbrante morena de seios ao léu foi apresentada em 1986 como um documento espontâneo («Presidente Numa Boa», 1 de Agosto de 1986). Durante anos, o Tal&Qual resistiu a admitir que o «acaso feliz» que conduziu a bonita rapariga, então namorada de um empresário da noite algarvia, pelo mesmo areal em que passeava o casal presidencial fora planeada.

O próprio Soares queixar-se-á em 1988, numa longa entrevista concedida ao jornal: «Achei que foi um golpe do Tal&Qual que nem por ter dado a volta ao mundo vos honra particularmente.» Neste livro, Jorge Morais reconhece pela primeira vez que o episódio é preparado. Frias capta de facto uma fotografia histórica, mas o tiro de oportunidade é, afinal, o resultado da frieza de um franco-atirador. (…)

Em 1983, chega à redacção uma informação por confirmar. Um colaborador do jornal tem uma relação com uma senhora divorciada e mais velha que lhe conta o modo como subsiste: aplica o dinheiro recebido no acordo de divórcio numa velha senhora de Lisboa que aceita depósitos e paga 120% de juros ao ano. A princípio, ninguém acredita na história – é demasiado fantasiosa, mas José Rocha Vieira consegue obter cópia dos cheques-garantia passados por Dona Branca à cliente em causa e Hernâni Santos faz uma primeira visita, como pseudo-cliente, ao escritório da senhora na Rua Dr. Almeida Cabral, ao Campo Mártires da Pátria.

Chama-se Branca, Dona Branca. Os factos confirmam-se. Há um esquema Ponzi em Lisboa e, à medida que o jornal escava, recolhe informações de que há deputados, agentes de polícia e juízes entre os clientes da Dona Branca. Rocha Vieira assina o primeiro texto memorável sobre o caso no dia 5 de Março de 1983. Antes, tinha sido combinado que a denunciante retiraria primeiro o seu dinheiro depositado na Dona Branca. A partir dessa denúncia, apimentada por uma fotografia captada à distância por Luiz Carvalho, o destino de Maria Branca dos Santos fica selado.

Durante mais de um ano e meio, o Tal&Qual lidera a investigação e os restantes jornais seguem na peugada. Hernâni Santos obtém da esquiva «bancária do povo» a única entrevista concedida por esta antes da sua detenção. «Foi em casa dela que, por coincidência, era vizinha da minha mãe e da casa onde morei em miúdo», conta. «Talvez não tivesse percebido toda a dimensão do esquema, mas houve um indício curioso: ela concedeu-me a entrevista na sua própria cozinha, com sacos de plástico cheios de notas. Referia-se a mim como “meu filho”. Tinha um dente atravessado. Sem falsa modéstia, julgo que um dos meus talentos era persuadir entrevistados relutantes a falarem. Com algum êxito, conseguia colocar à vontade o interlocutor mais desconfiado.» Dona Branca é detida em 1984, julgada em 1988 e condenada em 1989. Deve-se ao Tal&Qual a exposição do seu «negócio», embora permaneça sempre a dúvida sobre a entourage que rodeava a financeira e o seu grau de responsabilidade na trapaça.

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