Numa tarde de domingo, a escritora Isabela Figueiredo, de 59 anos, chega afogueada ao Jardim do Campo Grande, em Lisboa. Vem de deixar as cadelas Serra e Marisol Tempestade em Oeiras. Ainda tem de ir pôr o carro à porta da oficina. São os últimos preparativos antes de partir no dia seguinte para o Festival de Literaturas Europeias de Cognac, em França. O timing não é o melhor, com o lançamento do novo livro, Um Cão no Meio do Caminho, a 22 de novembro, mas a viagem já estava marcada há muito, em parte pela nomeação da autora para o prémio dos leitores.
Apesar do corrupio, Isabela chega inteira e disponível. Aliás, vem com uma ideia. Melhor: um pedido. Gostava que as fotos fossem “diferentes” do que é costume nos jornais, explica, mais próximas da sua natureza irreverente e informal. Para isso, a mulher que nos agarrou pela crueza e seduziu a socos no estômago traz alguns adereços: uma caixa de fruta que apanhou no lixo (alusão ao protagonista de Um Cão no Meio do Caminho), o telemóvel escafiado, um molho de chaves com os sacos para o cócó das cadelas. Pouco depois, há-de apanhar um ramo de árvore do chão. “Isto sou eu”, exclama, sorriso e braços abertos, “Stay Weird” bem legível na camisola, mesmo que de pernas para o ar. “Por favor, não façam de mim uma senhora.”
Diz sempre que não é uma escritora de prémios, mas vai para França nomeada para um.
Eu acho que não ganho prémios porque a minha atitude não é a que dá prémios.
Que atitude é essa?
É a atitude de um escritor mais institucional, mais reverente a todos os grupos políticos e sociais, e eu não sou reverente a nada. Essa independência tem um preço. Sei a imagem que passo, gosto dela e quero que se mantenha assim.
Pensa muito na sua imagem?
Toda a gente olha para mim como um bicho estranho. Eu sou um bicho estranho.
Como assim, “um bicho estranho”?
Eu não sou como os meus vizinhos. Não me visto como uma mulher de quase 60 anos. Agora fui viver para uma aldeia de Arraiolos e a curiosidade das pessoas é enorme: o que faz aqui esta mulher sozinha com duas cadelas? Uma mulher sem marido, uma mulher que vai para esplanada do café onde estão os homens. Estou sempre a sentir esta interrogação do outro sobre mim.
Ainda existem esses cafés só de homens?
Nas aldeias os cafés são dos homens. As mulheres vão de manhã, entre as 8h e as 10h, ou então acompanhadas pelos maridos. Lisboa tem as suas bolhas de classe alta, mas se sair para as margens vai ver isto em todo o lado. Há partes de Portugal que ainda vivem no Estado Novo, sem qualquer diferença a não ser o telemóvel e o computador.
Por que razão se tem retirado para o campo para escrever?
Comecei por ir para Foros do Rebocho, em Coruche. Depois larguei a casa porque ficava num monte onde viviam outras pessoas e eu tornei-me uma pessoa indesejada. Eles prendiam os cães com correntes, eu questionava porque é que os cães estavam presos. Comecei a ter pequenos problemas civilizacionais. Agora arranjei uma casinha numa aldeia em Arraiolos onde me sinto bem, embora tenha a casa em Almada e venha sempre cá. Estou farta da cidade, da violência no trânsito, no contacto interpessoal. Também me sinto menos livre aqui. Há muitas regras, e as regras fazem-me comichão.
No campo não há essas regras?
Embora aquelas pessoas tenham um olhar sobre mim, não me impõem comportamentos. Eu sou a pessoa de fora, a pessoa estrangeira: “Ela é um bicho, mas aceitamos o bicho.”
Essa aldeia em Arraiolos é a mesma que aparece no final do livro, na referência “Almada 2017 – Santana do Campo 2022”. Porque demorou tanto tempo a escrita deste livro?
Não; pouco tempo. Para se observar, para pensar, é pouco tempo. Tenho uma vida complicada. Passo o ano inteiro a viajar para o estrangeiro, seja por causa de traduções – quando sai uma tradução tenho de andar de cidade em cidade, de livraria em livraria, a promover esse livro – ou por causa de festivais literários.
Um escritor tem mesmo de ir aos festivais literários?
Um escritor pode ficar fechado em casa e não aparecer, mas vai pagar um preço, e esse preço é não ser conhecido e não ser lido. E eu quero ser lida.
E o que faz um escritor faz num festival literário?
Essa é uma bela questão. Às vezes sinto que estou a encher chouriços: a dizer sempre a mesma coisa e a responder sempre às mesmas perguntas. Em França, são muito bons: os leitores são interessados, fazem boas perguntas. Mas em Portugal, na minha opinião, os festivais têm de ser todos repensados. Porque uma audiência cheia de velhinhos a fazer croché não é uma audiência virada para a literatura.
Voltando aos cinco anos, por que razão diz que não é muito tempo mas pouco?
Estava à espera de que alguém me fizesse essa pergunta. Quem tenha a vida que eu tenho, a viver sozinha, com duas cadelas, sem companheiro para levar o carro à revisão, tratar das finanças, arrumar a casa, sem uma Pilar, como o Saramago tinha, vai perceber que tem pouco tempo. No meio de tudo isto, levar cinco anos a escrever um livro é maravilhoso. Aliás, eu teria precisado de mais tempo para escrever este livro como acho que devia ter sido escrito.
O que gostaria de ter feito diferente?
Gostaria de ter desenvolvido melhor a personagem da Matadora. Gostaria de, na terceira parte, ter trabalhado mais a intensidade das personagens, o pensamento, a intimidade.
O que a fez lançá-lo agora?
A pressão. Os leitores pressionam imenso. Também há pressões que eu sinto que não sei se correspondem à verdade. Quando o meu editor [Zeferino Coelho] me manda links de notícias sobre mim, não sei se me está a dizer, “Olhe aqui uma notícia sobre si” ou se me está a dizer, “Quando é que apresenta o próximo livro?”
Como é que lida com isso?
Não muito bem. E em relação aos leitores…
…tem ideia de quantas vezes lhe perguntaram, “Para quando o próximo livro, Isabela?”
Este ano fui para a Feira do Livro com o manuscrito de Um cão no Meio do Caminho enfiado num sobrescrito, e quando os leitores me perguntavam, “Então e o próximo livro?”, eu respondia, “está aqui”. Fui bombardeada com essa questão.
É um elogio. Quer dizer que as pessoas gostaram de A Gorda e do Caderno de Memórias Coloniais [que entretanto foi distinguido com o Prémio dos Leitores do Festival de Literatura Europeia de Cognac].
E eu também quero corresponder. Sinto que este livro não é o livro perfeito, mas hei-de lá chegar.
Noutro livro?
Ou talvez neste. Ainda não sei.
Como assim, “talvez neste”?
Comecei a ler o livro e não detetei apenas gralhas – detetei coisas que reescrevi imediatamente. Risquei e pus logo uma seta a dizer, “não quero esta palavra, quero outra”.
Está, portanto, a falar numa segunda edição revista?
Numa segunda edição vou pelo menos tentar fazer mudanças. Neste manuscrito fiz correções até ao último dia. Estava em viagem e mandei um e-mail ao meu editor a dizer, “olhe, nesta página, nesta linha, em vez desta palavra é esta palavra”. E ele disse-me, “Isabela, é a última correção que faz porque o livro vai para a gráfica hoje”.
Numa entrevista ao Expresso no ano passado, dizia que este seria um livro sobre o direito a não ser nada. O press release enviado pela Caminho aos jornalistas falava em solidão. E no Facebook, a Isabela Figueiredo, dizia que era um pretexto para falar de liberdade e de animais. Sobre que é, afinal, este livro?
Para mim, é um livro sobre liberdade. “Não ser nada” é muito importante. São as pessoas que não são nada, anónimas, que trabalham de sol a sol, que mantêm a engrenagem a funcionar. Olhamos para um catador de lixo com muito preconceito, mas é uma pessoa como nós, com uma vida, uma alma. O José Viriato escolheu ser livre.
A mim pareceu-me um livro sobre pessoas que vivem à margem. É esse o preço da liberdade, não pertencer?
Essa pergunta é muito relevante. Quando a Caminho me disse que ia pôr esta frase na contracapa e me mostrou o texto da badana, que é sobre solidão, a minha resposta foi, “a solidão neste livro é apenas a consequência de uma escolha de vida em liberdade”. Tem razão, este livro é sobre viver à margem. Eu própria sinto que vivo à margem. Mas viver à margem, apesar de doloroso, não é um estigma. Acho aliás que é desejável, porque dá-nos liberdade. E a liberdade é o que eu mais procuro. Na literatura e na vida.
Apesar de ser um livro sobre pessoas que vivem à margem, é também um livro que se vai resolvendo em encontros, desde o momento em que os dois vizinhos se conhecem até ao fim. É no outro que está a resposta para as nossas inquietações?
A nossa vida é um percurso com várias paragens. Cada paragem é um encontro. Precisamos do outro para ter alegrias e tristezas. Tenho alguma dificuldade em conceber a vida de um monge fechado num convento. Eu gosto de viver e de sentir as pessoas, mesmo que não tenha nada a ver com elas. Por exemplo, as pessoas da aldeia, que muitas vezes nunca viram o mar, mas tratam das suas rolas com carinho. Há grandeza naquelas vidas. Embora eu seja uma pessoa solitária e que vive à margem, pertenço ao mundo dos outros e preciso deles. E nesse sentido esta frase da capa é importante: “Precisamos de alguém com quem falar, não interessa de quê. Precisamos da voz humana.”
Talvez em 2017, numa conversa na livraria Ler, em Lisboa, ouvi-a responder a alguém que lhe perguntava pelo destino do personagem David, do livro A Gorda, dizendo que ia vingar-se dele neste livro. Foi esse o ponto de partida para este Um Cão no Meio do Caminho?
Foi. Eu precisava de o matar. Porque tenho as minhas questões pessoais a arrumar. E porque algumas coisas têm de ser mortas para nós continuarmos viagem.
Quanto deste livro é autobiografia?
Não é um livro autobiográfico.
Esta resolução de uma questão pessoal pode considerar-se o quê?
Pode fazer-se essa pergunta a todos os escritores. Pergunte ao Dostoievski por que é que ele escreveu o Crime e Castigo. Nós vamos buscar assuntos que têm a ver connosco. O lixo da sociedade de consumo é uma coisa que me preocupa há muito tempo. As pessoas consomem demais. A questão dos animais é para mim primordial e eu quero continuar a explorá-la.
Ou seja, são as suas questões, mas não a sua história, ao contrário do que aconteceu em livros anteriores, como Cadernos de Memórias Coloniais e A Gorda.
Não é a minha história, mas eu estou lá: os meus impulsos, os meus traumas, as minhas questões por resolver e resolvidas.
E o que conseguiu resolver com este livro?
Consegui matar o David, e no melhor dos sentidos. A ideia é libertá-lo a ele e libertar-me a mim.
Só para deixar isto claro: o David era alguém que fez parte da sua vida, que levou para o livro A Gorda e que agora, neste último livro, conseguiu matar.
Os leitores de A Gorda queriam que a [protagonista] Maria Luísa se vingasse do David. E eu pensei que sim, que era justo, mas na verdade o que eu queria era que a Maria Luísa avançasse com a sua vida. Aqui, o David é o advogado que aparece no início.
Embora a Matadora nada tenha a ver com a Maria Luísa.
Nada a ver. Eu só queria aquele momento em que ela mata o homem que não a quis. Ele fica liberto. Vai para o céu. E ela também.
Mas no livro a Matadora não fica liberta. Essa é outra questão.
Não sabe se não vou pegar nesta personagem num próximo livro.
A Matadora é uma acumuladora. Não consegue livrar-se de nada. Nem em termos concretos nem metafóricos. Ele, o protagonista, é uma pessoa que vê valor nas coisas que as pessoas põem no lixo e lhes dá novas existências noutras mãos. O lixo, aqui, representa o passado? Estamos a falar do lastro das nossas vidas?
Estamos a falar sobre esses cadáveres.
Coisas que arrastamos e já não nos servem.
Muitas vezes são emoções, memórias. No caso da acumuladora são também coisas materiais, das quais ela não consegue libertar-se. Sente que libertar-se é desonrar-se a si e aos seus antepassados. Eu também carrego um pouco isso.
Ainda tem caixotes dos pais em casa?
Tenho caixas da minha mãe com objetos religiosos aos quais não sei o que fazer. Não consigo pôr estas coisas no lixo e quem é que se doa crucifixos e missais? Não é que ocupem grande espaço físico, mas ocupam espaço emocional.
É uma questão sua por resolver?
Claro. E nesse aspeto tem muito a ver com a forma como a Matadora encara a questão, porque ela diz, deitar isto fora é desonrar a minha mãe. É um problema que eu não sei como resolver.
E que quer resolver?
Quero. Quero deixar todos os cadáveres. Quero ter uma vida limpa.
Livre.
Carregamos tantas redes cheias de lixo. E eu não quero isso na minha vida. Quero uma coisa que nunca fui, que é viver sem culpa. E eu tenho muitas culpas: tenho culpa em relação ao meu pai, à minha mãe, às pessoas que não amei e devia ter amado, enfim, tenho imensas culpas.
Mais do que a maior parte das pessoas?
Não mais culpas, mas mais consciência dessas culpas. Eu sou uma pessoa sozinha, e uma pessoa sozinha é uma pessoa que está alerta aos outros e a si própria. Não num mau sentido. É exatamente por me respeitar que eu preciso de me libertar dessas culpas.
Acaba por ser o José Viriato, o protagonista, a pôr a casa da Matadora, sua vizinha, em ordem. Quem é este homem?
Queria criar uma personagem que, embora talentosa e inteligente, não quisesse trabalhar, que recusasse a escravatura das nove às cinco. As pessoas vivem vidas muito más, que as desgastam, que as matam. Quero questionar isto: o trabalho, a ideologia capitalista, em que medida nos serve ou destrói.
Mas ele tem uma ética de trabalho irrepreensível.
Ele trabalha, mas no que quer, às horas que quer e como quer, que é exatamente como as crianças deviam ser educadas na escola: o que queres fazer? Como queres fazer? Qual é o teu projeto? Esta personagem serve-me para dizer que as pessoas são educadas para se matarem a trabalhar, não para se realizarem como pessoas, e eu queria uma personagem que se realizasse como pessoa.
Na peça de teatro que escreveu para o Festival Panos, “Lobo à Porta”, já abordava alguns destes temas e também já aparecia uma avó…
… é a mesma avó.
Mas que tinha uma neta, também ótima aluna, que neste livro se transforma em neto. Por que razão quis dar voz a um homem?
Quero muito trabalhar personagens masculinas. Eu sempre vivi no mundo das mulheres. Conheço o que dizem, como pensam. Para mim é fácil. E quero desafios. Quero conhecer o mundo dos homens. Quando fico sentada na esplanada do Café Colina (que não se chama Café Colina) delicio-me a ouvir aquelas conversas.
Porquê?
Porque é outro mundo. Eles não falam como as mulheres. Eles não falam, por exemplo, sobre a vida quotidiana. No café, resolvem problemas, ensinam-se uns aos outros a adquirir um seguro de carro mais barato, falam dos sítios onde trabalharam. Isto os homens do passado. Hoje, esta separação de género é muito indistinta.
Este José Viriato também é um homem muito diferente.
Ele é um homem muito feminino, mas isso é uma fraqueza minha – não sou capaz de criar personagens muito masculinas. O meu grande esforço foi pegar em detalhes para o tornar o mais masculino possível.
Mesmo tendo noção dessa limitação, não hesitou em insistir num protagonista masculino.
Estou aqui para aprender. Só quando estiver completamente submersa no mundo, na vida e nas pessoas é que vou fazer uma boa literatura, e eu quero fazer uma boa literatura. Não quero fazer uma literatura para elites.
A dada altura, comecei a achar que o livro tinha um lado folhetinesco e, pouco depois, a Matadora incita o José Viriato a prosseguir com a sua história, dizendo, “Força, é melhor que a novela que ando a seguir na TVI” (p. 210). Esse tom é intencional?
A vida é um folhetim e as pessoas procuram essa narrativa, cheia de acontecimentos: nascimentos, mortes, zangas, amores…
E que cão é este no meio do caminho?
O título inicial era Café Colina. Tive um acidente muito desagradável com um cão que libertei em Coruche. Não quero falar mais sobre isso, mas estava a contar a uma amiga o que tinha acontecido e ela diz-me, “Já viste que na tua vida há sempre um cão no meio do caminho?” Ouvi isto e senti que era uma revelação. Sim, é verdade, na minha vida há sempre um cão no meio do caminho, algo que estou ali a tentar resolver. É a pedra no meio do caminho do Carlos Drummond de Andrade [“Nunca me esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra”].
Porquê uma pedra e não uma coisa positiva?
Porque eu tenho um grande problema social com os cães: recuso pôr-lhes trela, e na cidade sou obrigada; durmo na cama com eles, e não posso dizê-lo (pode dizê-lo aqui, autorizo-a a dizer que durmo na cama com os cães). Toda a minha relação com os cães é censurada desde sempre. A minha mãe dizia-me, “Não beijes os cães”, e eu beijo os cães. Os cães não têm voz. Não podem dizer, “fui vítima disto, fui vítima daquilo”. Quando vejo um cão numa jaula, não consigo calar. Por isso é que a minha vida está cheia de cães no meio do caminho, que são pedras, preconceitos, obstáculos, que eu tenho de remover. E dá muito trabalho remover pedras.
Sempre teve cães?
Sempre. E os meus cães dormiram sempre comigo.
O que representavam para si?
Eram amigos, companheiros, irmãos. O [apresentador] Cláudio Ramos veio dizer que há uma grande diferença entre cães e filhos e não, não há. Eu não entrego as minhas cadelas a alguém em que não confie profundamente. Protejo-as exatamente como se protege uma criança. E se eu fosse levada para Auschwitz com as cadelas atrás e um SS me dissesse escolhe qual delas queres que fique contigo, eu não saberia qual escolher.
Mas é daquelas pessoas que dizem que gostam mais dos animais do que das pessoas?
Não. Gosto de igual forma. Eu sei que eles são diferentes, e respeito-os como respeito as pessoas. Mas isso é um problema na minha vida. Foi sempre.
Pela forma como a sociedade olha para isso?
A sociedade diz-nos que não podemos ter um porco como animal doméstico mas que podemos ter um gato. Qual é a diferença? As pessoas dizem que o lugar do cão é na rua e não em casa porque suja, mas nós também deixamos sujidade e a seguir vamos limpá-la. Quando sairmos desta esplanada, alguém virá limpar toda a sujidade que nós, os humanos, deixámos: papéis, plásticos, cuspo no chão. Somos de facto uma espécie que se desenvolveu muito, e exatamente por isso temos a obrigação de sermos muito responsáveis em relação às outras espécies.
É uma questão civilizacional?
É, e eu não vou largar este filão. Tive de inventar todo este folhetim para falar de cães e de animais, se quer que lhe diga a verdade.
Queria escrever um livro sobre a nossa relação com os animais?
Sim, e para isso tive de arranjar uma história. E tive mesmo de criar uma personagem que tem medo de cães e que diz coisas terríveis como, “servem para um chop sueyzinho, que maravilha”, que é uma coisa horrível para mim. Eu não quero fazer ativismo. Sou escritora. Quero que as pessoas leiam uma história, leiam o folhetim, e que nessa história encontrem ideias, outras formas de vida, e pensem sobre a sua vida e as suas escolhas. Não quero impor-lhes nada.
A ideia do amor canino, incondicional, não parece condizer com uma mulher tão rebelde como a Isabela Figueiredo.
Nunca teve cães que mordem? Eu recolho cães de canil. Trazem bagagem. Trazem traumas.
[Passa um cocker ao lado da nossa mesa]
Eu tive um cocker que mordia. Vou mostrar-lhe uma coisa. Está preparada?
Não sei.
[Isabela Figueiredo inclina a cabeça para a frente e começa a afastar os cabelos que tapam a orelha direita]
Está a ver esta orelha? Foi-me arrancada por um cocker.
Seu?
Meu. Estou a contar isto porque há muita gente que diz que não gosta de cães porque foi mordida uma vez; eu fui mordida toda a vida. E continuo fiel aos cães, porque os respeito. A minha mãe tinha razão quando dizia, “não beijes os cães porque eles podem magoar-te”. Mas eu também tenho razão quando ouso pisar essa fronteira, correr esse risco.
Quando foi?
Há muito tempo. Eu tinha 20 anos, vivia com os meus pais. Aconteceu do nada. Ele estava na minha cama a dormir. Aproximei-me dele, disse, “Tico, a dona vai-se embora”, e beijei-o. No momento em que me inclinei, ele atacou-me e fugiu. Fui para o hospital com metade da orelha na mão. Tentaram implantá-la e não conseguiram. Fizeram uma cirurgia reconstrutiva, com pele do couro cabeludo e da barriga, e cartilagem da outra orelha, para eu ter uma orelha onde segurar os óculos. A veterinária disse-me na altura que muitos cockers estavam a aparecer com comportamentos agressivos devido à quantidade de cruzamentos e que a melhor solução era abatê-lo. Mas eu ainda lido com isso.
Com essa culpa?
Com essa culpa, exatamente.
E agora, Isabela, a seguir?
Tenho uma ideia mas não quero revelá-la. É muito cedo. Agora quero descansar. Posso dizer que me interessa escrever sobre a forma como o poder tem a capacidade de nos moldar e programar. Porque é isso que depois nos vai levar à margem – as pessoas que têm consciência do molde e não o aceitam.
Qual é a sensação de ver o livro cá fora?
Estou feliz. Gostei de escrever ficção, de ver as personagens escapar à minha vontade, de eu não estar lá.
É uma libertação?
É uma grande libertação.