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[Artigo publicado a 30 de setembro e republicado a 10 de dezembro, a propósito da demissão da diretora do Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, Cristina Gatões]
Deitado de barriga para baixo, algemado, com os pés atados por ligaduras e com lesões e fraturas por todo o corpo. Ihor Homeniuk terá sido deixado assim durante mais de oito horas numa das salas do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa na manhã de 12 de março de 2020 — dois dias depois de chegar a Portugal. Foi nessa sala que três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foram vistos e entrar, com um bastão e um par de algemas. E dela que foram vistos a sair, 20 minutos mais tarde, deixando a garantia aos seguranças que “agora” o ucraniano estava “sossegado”. Um deles ainda comentou com os outros: “Isto hoje, já nem preciso de ir ao ginásio”.
O que lá aconteceu dentro para que o cidadão ucraniano tivesse sido deixado naquele estado, ninguém viu a não ser os envolvidos: Ihor acabou por morrer asfixiado (segundo a autópsia) e os três inspetores nunca falaram sobre o assunto. Aliás, quando alguns vigilantes tentaram entrar na sala, para ver o que se passava, terão sido “de imediato repreendidos” por um deles: “Isto aqui é para ninguém ver”. Para o Ministério Público (MP), que esta quarta-feira os acusou aos três pelo homicídio, não restam dúvidas: Ihor Homeniuk foi alvo de um “tratamento desumano” que culminou na sua morte.
Três inspetores do SEF acusados do homicídio do ucraniano Ihor Homenyuk no aeroporto de Lisboa
Os três inspetores arriscam agora uma pena de prisão de 25 anos e aguardam os próximos passos judiciais em prisão domiciliária. Enquanto isso, há outra investigação paralela em curso: a eventual prática de crimes de falsificação de documento, nomeadamente, da certidão de óbito de Ihor Homeniuk — investigação essa que já levantou suspeitas sobre uma possível segunda morte no aeroporto.
Numa acusação de 17 páginas a que o Observador teve acesso, o procurador Óscar Ferreira relata o que aconteceu desde que o passageiro ucraniano chegou a Portugal no dia 10 de março até ter sido declarado o seu óbito: como a sua entrada terá sido impedida, como terá recusado entrar em dois voos, como terá tido um comportamento agitado e como terá acabado isolado na sala onde acabaria por morrer.
Ihor Homeniuk. PJ não descarta possibilidade de um segundo homicídio no aeroporto de Lisboa
10 de março. A chegada a Portugal, a inspetora que serviu de tradutora e o alegado ataque epilético
O voo era o TK1755, proveniente de Istambul. Foi ele que trouxe Ihor Homeniuk da Turquia até Portugal no dia 10 de março de 2020. O avião aterrou por volta das 11h00 no aeroporto de Lisboa. Por ser de nacionalidade ucraniana, o passageiro teve de passar no controlo de fronteiras do SEF, onde foi intercetado por um inspetor que analisou os seus documentos, relata o MP. Ihor acabaria por ser travado logo ali e passar pela segunda linha de controlo. Eram 19h30 quando foi entrevistado pelo inspetor Rui Tártaro. O que aconteceu nas mais de oito horas desde o desembarque à entrevista é uma mancha no tempo por preencher. A acusação não relata onde esteve ou com quem esteve e nem sequer especifica o porquê de ter sido barrado logo no primeiro controlo.
Certo é que, na tal entrevista, o inspetor que a fez terá decidido recusar-lhe a entrada em território nacional. A justificação? “Alegadamente ter referido que vinha trabalhar e não possuir visto para tal” — uma justificação sobre a qual o MP tem dúvidas. É que a entrevista foi feita por um “inspetor do SEF que não domina a língua ucraniana” e por uma inspetora que supostamente a dominaria. Só que o MP entende que por ser funcionária do SEF, a inspetora “não estava habilitada por razões de imparcialidade a efetuar qualquer tradução”. E, por isso, afirma haver “dúvidas sérias sobre se o referido cidadão declarou que pretendia trabalhar em Portugal”, lembrando que o país “tem acolhido inúmeros cidadãos ucranianos” que “constituem uma comunidade pacífica e trabalhadora” — a “quarta comunidade de estrangeiros em Portugal”.
Às 21h15, após a entrevista, na entrada no espaço Schengen do aeroporto, Ihor Homeniuk “desequilibrou-se” e caiu no chão. Também aqui, estas duas horas são uma incógnita: o MP não detalha onde o cidadão ucraniano esteve ou quais os possíveis motivos para este desequilíbrio. Relata apenas que um dos inspetores que estava com ele percebeu que Ihor estava com “dificuldades em respirar” e colocou-lhe “uma caneta na boca para lhe desenrolar a língua”.
O homem acabaria no entanto por ser transportado para o Hospital Santa Maria, em Lisboa, onde foi submetido a vários exames. Exames esses que não revelaram que Ihor tivesse sofrido “qualquer convulsão” ou “ataque epilético”. O homem queixou-se depois de dores nas pernas e na barriga, mas os exames, mais uma vez, não revelaram qualquer lesão.
11 de março. As duas tentativas de embarcar e o comportamento agitado que fez com que fosse algemado e isolado
Ihor Homeniuk passou a noite no hospital e só regressou ao aeroporto por volta das 11h30 do dia seguinte, onde esperou até às 15h28 pelo embarque no voo TK1760, que o levaria de regresso a Istambul. Só que, “por motivos não esclarecidos”, o homem terá recusado embarcar naquele voo. Foi então levado de novo para o Centro de Instalação Temporária do SEF, onde aguardaria por um novo voo — eram 15h58, detalha o MP.
Sete horas depois, dois inspetores do SEF terão sido alertados por dois vigilantes e por alguns passageiros ali retidos que o cidadão ucraniano estava de novo com um “comportamento agitado”. Ihor Homeniuk acabaria, por isso, por ser algemado e levado para uma sala, isolado dos restantes passageiros, relata a acusação. Foi-lhe também dado, na tese da investigação, um medicamento que fora prescrito no Hospital de Santa Maria. “Depois de lhe retirarem as algemas, deixaram-no ali, apenas com um colchão, um lençol, cobertor e almofada“, descreve o procurador.
Madrugada de 12 de março. O comprimido para “o acalmar” e os inspetores que lhe “ataram com lençóis” os braços
Ihor Homeniuk continuou agitado e tentou sair da sala — o que levou os elementos de segurança a alertar o SEF. Eram 1h06 da madrugada quando dois inspetores foram ver o que se passava, escreve o MP. Com eles, foi também um enfermeiro da Cruz Vermelha, acompanhado pela sua assistente, que terá dado ao homem um comprimido para “o acalmar”, sugerindo no entanto aos inspetores que o levassem de novo ao hospital. “O que não foi feito”, lê-se. O procurador aponta que, a essa hora, o homem tinha uma lesão junto ao nariz cuja causa a investigação não conseguiu encontrar.
“Algum tempo depois”, os “sinais de agitação” voltaram. Dois vigilantes, “sem autorização e competência para tal”, terão algemado Ihor Homeniuk “com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços” e chamado de novo os elementos do SEF. Eram cerca das 4h41 da manhã quando dois inspetores terão entrado na sala: “Retiraram-lhe apenas as fitas adesivas dos braços, que, entretanto, ataram com lençóis” — o que, para o MP, só veio agravar “o seu suposto estado de ansiedade”. Além disso, lembra o procurador, “os passageiros com ordem de retorno não podem nem devem ser privados da liberdade”, como terá acontecido neste caso.
O cidadão ucraniano acabou por tentar libertar-se e um dos vigilantes voltou a entrar na sala e “retirou-lhe os lençóis que lhe prendiam os braços, deixando-o apenas com as fitas adesivas nos tornozelos “. Depois, “ficou à porta da sala, sentado numa cadeira a tomar conta” de Ihor.
Manhã de 12 de março. O pedido para não fazer registo de entradas na sala e o comentário à saída: “Isto hoje, já nem preciso de ir ao ginásio”.
8h15 da manhã: Ihor Homeniuk estava alegadamente há cerca de dois dias no aeroporto e há quase 12 horas naquela sala. Três inspetores do SEF terão então aparecido: um com um bastão extensível e outro com um par de algemas, descreve o MP. Antes de entrarem, um deles terá feito um pedido à vigilante que estava na receção e onde são registados os nomes de todos os indivíduos que ali entram: “Atenção, você não vá colocar aí os nossos nomes, ok?”
O que lá aconteceu dentro, ninguém viu: apenas os três inspetores acusados de homicídio qualificado e a vítima mortal, Ihor Homeniuk. Na tese da investigação da PJ, “depois de o algemarem com as mãos atrás das costas e de lhe amarrarem os cotovelos com ligaduras”, os três inspetores ter-lhe-ão dado um “número indeterminado de socos e pontapés”. Já no chão, as agressões terão continuado com recurso ao bastão extensível. Enquanto isso, “aos gritos”, os inspetores “exigiam que permanecesse quieto”, relata o MP.
O que passava terá chamado a atenção de alguns vigilantes, que se aproximaram da sala e abriram a porta, que estava encostada. Mas foram”de imediato repreendidos” por um dos inspetores. Mandou-os embora e disse: “Isto aqui é para ninguém ver”.
As agressões terão durado vinte minutos, segundo o MP. Foi, pelo menos, ao fim desse tempo que os três inspetores terão abandonado a sala. Para trás, terão deixado Ihor Homeniuk de barriga para baixo, algemado e com os pés atados com ligaduras. À saída, um deles informou os vigilantes de serviço que “agora” o cidadão estava “sossegado”. Ao mesmo tempo, outro terá dito para os outros: “Isto hoje, já nem preciso de ir ao ginásio”.
Tarde de 12 de março. As oito horas até ser encontrado, o “tratamento desumano” e uma certidão de óbito que pode ter sido falsificada
Durante mais de oito horas, o homem permaneceu ali até que alguém o encontrasse. Só às 16h43, na tarde desse dia, é que dois inspetores foram à sala para o ir buscar e levar a embarcar de novo num voo com destino a Istambul. E então perceberam que ele “não reagia”.
O INEM só foi chamado “decorridas algumas horas”, segundo indica o MP. Eram já 18h40, quando foi declarado o óbito. Motivo? “Em paragem respiratória presenciada após crise convulsiva”. Só que o Ministério Público teve dúvidas de que esta tenha sido a verdadeira causa da morte e, por isso, extraiu uma certidão para que seja investigada, num inquérito à parte, a eventual prática de crimes de falsificação de documento.
As dúvidas prendem-se com o resultado da autópsia: Ihor Homeniuk tinha lesões na cabeça, tronco, membros e fraturas nas costas, que terão sido provocadas pelo “peso tal” que levou “o tórax a esmagar-se contra o solo”. O homem asfixiou e acabou por morrer. A acusação refere ainda que “os arguidos e outros inspetores do SEF tudo fizeram para omitir ao Ministério Público os factos que culminaram com a morte” do cidadão ucraniano, “chegando ao ponto de informar ao magistrado” que a causa do óbito fora “doença súbita”.
Tudo o que aconteceu naqueles vinte minutos, o procurador resume numa frase: um “tratamento desumano” que viola “gravemente os deveres inerentes às funções” dos inspetores.