Era um interrogatório que deveria ter ficado marcado pelas explicações do arguido José Sócrates sobre os alegados favorecimentos ao Grupo Lena mas que acabou por ter como principal protagonista o juiz Ivo Rosa e a sua revolta contra as notícias sobre o primeiro dia do interrogatório do ex-primeiro-ministro. O magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal zurziu nos advogados, acusou-os de serem as fontes da comunicação social e ameaçou-os com buscas e apreensão dos telemóveis feitas pela Polícia da Segurança Pública na própria sala do tribunal.
Quanto a José Sócrates, o interrogatório não trouxe nada de novo: negou qualquer favorecimento ao Grupo Lena quer no concurso do TGV, quer na internacionalização da empresa para a Venezuela e negou que tenha indicado o nome de Armando Vara para o Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos.
A pergunta e a ameaça
Já depois de Sócrates ter insinuado à entrada para o edifício da antiga sede da Polícia Judiciária que as fontes dos jornalistas “estão muito desorientadas”, o juiz de instrução criminal aproveitou o início da sessão desta terça-feira para dar uma reprimenda aos mais de 20 advogados presentes na sala do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Além de acusar os advogados presentes de serem as fontes dos jornalistas, Ivo Rosa acabou mesmo por dar uma lição de moral ao afirmar que os causídicos que tinham passado informação aos jornalistas sobre o primeiro dia do interrogatório a José Sócrates deveriam pensar na sua profissão, porque enquanto profissionais do foro não estavam a cumprir os seus deveres de cumprirem o sigilo da diligência.
Com José Sócrates sentado à sua frente a ouvir atentamente as suas palavras, o juiz Ivo Rosa ainda perguntou: “Quem se acusa?”
Mesmo após uns pesados, sentidos e igualmente revoltados trinta segundos de silêncio dos advogados dos 28 arguidos presentes na sala, nenhum mexeu os lábios. Pior: alguns dos juristas mais experientes na sala ficaram mesmo ofendidos pela atitude do juiz de instrução. Um magistrado que, refira-se, tem sido elogiado de forma quase unânime pelas defesas.
Pior: Ivo Rosa ameaçou mesmo os advogados com revistas executadas pela Polícia da Segurança Pública no próprio local para apreensão dos telemóveis. O objetivo era evitar as comunicações com o exterior para evitar o que foi apelidado de jornalismo ao segundo.
Após a reprimenda que chegou a ser classificada como sendo de um mestre-escola e não de um juiz, a sessão prosseguiu.
TGV. “Nem sabia que o Grupo Lena participava no consórcio”
O prato forte da sessão desta terça-feira acabou por ser o concurso da 1.ª fase do projeto de Alta Velocidade Ferroviária, vulgo TGV, no qual José Sócrates terá “instrumentalizado” membros do seu Governo, segundo a acusação do Ministério Público (MP). Além de ter pressionado Ana Paula Vitorino, então secretária de Estado dos Transportes, e Carlos Fernandes, para antecipar o lançamento do concurso Poceirão/Caia de julho para março de 2008, Sócrates é acusado pelo MP de ter promovido alterações contratuais, nomeadamente a introdução de uma cláusula relativa às consequências que o Estado teria de assumir caso o Tribunal de Contas recusasse o visto ao contrato que a RAVE desejasse assinar.
Na prática, a Elos conseguiu que o Estado assumisse o ónus de pagar cerca de 14,6 milhões de euros no caso de recusa de visto — direito que o MP considera ilegal.
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Mais tarde, o Tribunal de Contas recusaria o visto ao concurso adjudicado pelo Governo Sócrates ao consórcio Elos e este viria a pedir uma indemnização de cerca de 169 milhões de euros em sede de Tribunal Arbitral. A 5 de junho, o tribunal condenou o Estado a pagar cerca de 149 milhões de euros ao consórcio Elos, sem que este tivesse de construir algo. Tendo em conta que o Grupo Lena tinha uma participação de cerca de 13%, a empresa que era liderada pelos irmãos Barroca teve direito a uma parte dessa indemnização.
O facto de o Grupo Lena ser um acionista minoritário, entre bancos e outras construtoras, levou mesmo José Sócrates a questionar o juiz Ivo Rosa, de forma retórica e irónica: não seria normal que fosse corrompido por todas as empresas do consórcio e não apenas por um acionista minoritário?
Diz o MP que as empresas de Carlos Santos Silva, o alegado testa-de-ferro de Sócrates, vieram a receber, por serviços que não terão sido prestados, cerca de 735 mil euros. Valor que é interpretado pelo MP como sendo uma contrapartida pela atuação de José Sócrates de alegado benefício do consórcio Elos.
Ora, Sócrates negou perante o juiz Ivo Rosa qualquer espécie de favorecimento do Grupo Lena e assegurou que nem sequer sabia que o grupo construtor de Leiria fizesse parte do consórcio que era conhecido como sendo o “consórcio da Brisa”. Questionado pelo juiz, Sócrates acrescentou ainda que mal conhecia Joaquim Barroca, o ex-vice-presidente do Grupo Lena que é acusado de o ter corrompido enquanto primeiro-ministro. Apenas o conheceu quando já era primeiro-ministro e reuniu-se como o gestor três a quatro vezes enquanto foi chefe de Governo.
Ivo Rosa não questionou José Sócrates sobre um dos pormenores relevantes da acusação do MP contra Sócrates e o seu alegado testa-de-ferro Carlos Santos Santos: o facto de Joaquim Barroca ter transmitido ordens de transferência em branco a Santos Silva para este utilizar as contas suíças de Barroca como contas de passagem de fundos com origem no Grupo Espírito Santos.
Apesar do juiz Ivo Rosa não lhe dar muita margem para grandes considerações fora do âmbito do processo, José Sócrates não deixou de fazer as suas considerações políticas. Por exemplo, no caso do TGV, Sócrates considerou que a desistência do projeto por parte do PSD foi um “dos maiores erros estratégicos de Portugal”, defendendo a necessidade do projeto até pelo forte investimento que a Espanha fez na rede da alta velocidade.
O Grupo Lena e a Venezuela
Outro dos alegados benefícios que José Sócrates terá concedido ao Grupo Lena prende-se com o apoio à internacionalização daquele grupo construtor, nomeadamente para a Venezuela. Diz a acusação do MP que José Sócrates não só sempre esteve a par da proximidade entre Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca (então vice-presidente do Grupo Lena), como terá ficado ciente, através do seu amigo, de que o Grupo Lena pretendia apostar na “internacionalização”.
Assim, continua o MP, e já no “âmbito das suas funções como primeiro-ministro do XVII Governo Constitucional”, terá aproveitado “a sua relação de amizade e confiança com o arguido Carlos Santos Silva” para iniciar, “ainda em 2005, uma abordagem a este último arguido no sentido de acordarem formas de José Sócrates, como responsável do Governo, poder apoiar a estratégia e o desenvolvimento de negócios do Grupo Lena, utilizando como intermediário o arguido Carlos Santos Silva, de forma a evitar contactos diretos com os administradores daquele Grupo.
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José Sócrates negou ao juiz Ivo Rosa que tivesse tido qualquer tipo de influência ou favorecimento do Grupo Lena na entrada daqueles construtores na Venezuela de Hugo Chávez e acrescentou que só teve conhecimento do interesse da empresa dos irmãos Barroca já durante uma das visitas oficiais que fez aquele país latino-americano acompanhado de vastas embaixadas económicas, onde se incluía Carlos Santos Silva.
Quer pelos alegados favorecimentos no concurso do TGV, quer pela internacionalização, quer até pelas obras adjudicadas da Parque Escolar, o MP diz forma transferidos cerca de seis milhões de euros das contas do Grupo Lena para as contas Carlos Santos Silva. A saber:
- 2 milhões e 375 mil euros transferidos entre fevereiro e junho de 2007 de uma das contas da UBS de Joaquim Barroca para as contas das sociedades offshore Giffard Finance e Pinehill Finance — ambas de Carlos Santos Silva;
- 500 mil euros transferidos em setembro de 2008 de uma conta pessoal de Joaquim Barroca para a conta da Pinehill Finance;
- 2 milhões e 954 mil euros transferidos entre novembro de 2009 e abril de 2014 a coberto de um contrato alegadamente falso estabelecido entre a XLM — Sociedade de Estudos e Projetos (de Carlos Santos Silva) e o Grupo Lena.
Total das alegadas contrapartidas: 5.829.925 euros.
Sócrates relutante na nomeação de Vara para a Caixa
Outros temas abordados na diligência desta terça-feira foi a entrada de Armando Vara, um dos melhores amigos políticos e pessoais de José Sócrates, na administração da Caixa Geral de Depósitos (CGD) em 2005. E a relação do ex-primeiro-ministro com o financiamento de mais de 256 milhões de euros aprovado pela CGD por sugestão de Armando Vara.
Sócrates começou por corroborar o que Fernando Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças, já tinha transmitido nos autos: não teve nada a ver com a nomeação do seu amigo Vara. Aliás, sempre se terá manifestado relutante junto de Teixeira dos Santos sobre a indicação de Armando Vara, precisamente pela polémica que se poderia levantar, como veio a acontecer.
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E rejeitou qualquer influência no financiamento aprovado pela administração da CGD da qual Vara fazia parte.
Recorde-se que o Ministério Público acusa José Sócrates e Armando Vara de terem alegadamente dividido uma comissão de dois milhões de euros como contrapartida pela aprovação do financiamento do grupo de investidores liderados por Diogo Gaspar Ferreira e Rui Hora e Costa para estes adquirirem e expandirem o resort Vale do Lobo.
O interrogatório de José Sócrates prossegue esta quarta-feira, às 14h.