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Jacinto Veloso, o piloto que em 1963 desertou da Força Aérea Portuguesa com um avião para se juntar à luta da Frelimo, e depois foi chefe dos espiões e ministro da Segurança e da Economia em Moçambique, tem um percurso tão rico que a sua história de vida está contada neste artigo à parte.
Atualmente, além de empresário, Jacinto Veloso é membro do Conselho Nacional de Defesa e Segurança, órgão de consulta do Presidente da República, Filipe Nyusi. A 24 de Abril, num sábado à tarde, exatamente um mês depois do ataque dos insurgentes a Palma, recebeu o Observador no escritório de sua casa, em Maputo.
Ao longo de uma hora, respondeu a perguntas sobre Cabo Delgado: o que falhou; se houve ou não um “fracasso” dos serviços de informações; as fragilidades que o exército moçambicano está a tentar corrigir; que tipo de apoio externo faz falta para combater os insurgentes; a impossibilidade de os ex-guerrilheiros moçambicanos aceitarem tropas portuguesas no terreno; a ligação entre os insurgentes e o Estado Islâmico; a teoria sobre o apoio de países ou empresas do setor do gás aos terroristas; quanto mais tempo pode durar o conflito; a ausência do Chefe de Estado de Cabo Delgado (só foi a Pemba mais de um mês depois do ataque a Palma); e as dificuldades de combater a corrupção no país.
“Moçambicanos têm de ser mais bem treinados e equipados para poderem confrontar-se com os terroristas”
Quais são as obrigações deste seu cargo no Conselho de Defesa e Segurança?
Sou um dos membros, deve haver à volta de 20. Estou lá há mais de dez anos. Fui reeleito agora de novo pela assembleia. A maior parte dos membros são por inerência de funções, como o primeiro-ministro, o ministro das Finanças, o ministro dos Negócios Estrangeiros, o Chefe de Estado Maior, etc.. Depois há meia dúzia que são eleitos. Constituem os conselheiros de segurança para o Presidente da República.
Este Conselho reúne com que regularidade?
Pelo menos uma vez a cada três meses e sempre que é convocado.
Houve alguma mudança na frequência das reuniões desde que começou o conflito de Cabo Delgado?
Reúne extraordinariamente mais vezes.
Uma vez por mês?
Depende. O Presidente decide: “Amanhã ou depois de amanhã temos reunião”. Vai, coloca as suas questões e o Conselho tenta responder.
Num artigo que publicou no jornal Savana há um ano sobre o conflito, defendia que devia haver apoio externo, o que contraria um pouco em certa medida o que o presidente tem dito sobre este assunto. Como vê o conflito hoje?
Continuo a pensar que é necessário um apoio externo. Mas às vezes há alguma confusão: algumas pessoas pensam que se trata de trazer unidades militares para combater os terroristas no terreno. Eu concordo que isto seja feito pelos moçambicanos, que neste momento ainda não estão muito bem treinados para isso. Aliás fomos todos apanhados desprevenidos com as ações do terrorismo a partir do final de 2017. Fomos todos apanhados desprevenidos e de surpresa. Incluindo os jornalistas. As forças, exceto uma ou outra pequena unidade que nem era para efeitos anti-terroristas, não estavam preparadas. Têm de ser preparadas. Penso que o combate no terreno deve ser essencialmente feito pelos próprios moçambicanos, que estão a aperfeiçoar-se pela prática, mas não estavam preparados. Têm de ser mais bem treinados e equipados para poderem confrontar-se com os terroristas — desde o início que ponho a hipótese de o Estado Islâmico estar por trás disto.
Mas vai mais longe e diz que acha que um dos países com interesse no gás de alguma forma está articulado com as forças no terreno.
Não sei se é um país ou se serão grandes empresas ligadas à exploração do gás natural. É uma hipótese muito provável que estejam por trás desta ação…
Acha que há um contacto entre alguma dessas empresas ou países e os insurgentes que estão no terreno?
Essas empresas que estão a operar no país não têm interesse. Pode haver empresas privadas de estudo de risco, que deram a informação: “Cuidado que isso não é muito seguro”. Talvez por isso a ENI [petrolífera italiana] decidiu fazer a exploração offshore, está a construir uma fábrica flutuante na Coreia do Sul, que deve estar cá no fim do ano, levou dois anos a ficar pronta.
É mais seguro offshore?
É mais seguro, mas também pode ser atingida, também está sujeita a uma ameaça. É mais fácil talvez patrulhar as águas e evitar aproximações do que em terra. Mas há outros meios. Se estes terroristas tiverem alguém por trás interessado, podem usar drones para chegar lá e deixar bombas. Já usaram em Cabo Delgado, há notícia de um drone usado por estes fulanos, para observação ou fotografia. O drone é muito útil para fazer reconhecimento aéreo de uma maneira simples. Podem ser drones pequenos.
Mas acha mesmo que pode haver uma ligação entre uma empresa concorrente do mercado do gás ou um país, e os terroristas insurgentes que estão no terreno? Estão a financiar esta operação?
A Exxon Mobil já há alguns meses que decidiu suspender [o investimento], enquanto a Total decidiu prosseguir. Suspendeu porque provavelmente recebeu informação dos EUA (a Mobil tem grandes interesses americanos), foram informados de que podia haver problemas. É uma suposição, uma hipótese de trabalho. Não há outra razão [para terem suspendido], têm dinheiro. Mas se há interessados em atrasar ou neutralizar o projeto do gás natural em Moçambique não são estes.
Quem é que acha que são?
Era preciso alguém investigar isso melhor, porque é muito complicado. Mesmo a Tanzânia, que está na mesma bacia, suspendeu o projeto há muito tempo, mas está a retomar agora com parceiros que não fazem parte destes grupos.
Mas mesmo como hipótese de trabalho é muito complicada de colocar.
Poderia ser o interesse deste grupo tanzaniano e destas empresas. Mas o facto é que estes terroristas também estão a preparar-se para atacar o projeto. Quem é que tem gás aqui na região? É preciso fazer uma investigação. Pode não ser só gás, podem ser empresas com petróleo, cujo mercado está virado para o Extremo Oriente. Os grandes consumidores que nos próximos anos vão aumentar o consumo do gás natural são a Índia, a China, a Tailândia e outros mais pequenos. São milhões de toneladas por ano. Quem sabe? O Irão é um país fundamentalista islâmico muito forte, que participa em algumas organizações de desestabilização usando redes terroristas. Mas são de orientação xiita e toda esta área do Estado Islâmico é sunita. Arábia Saudita, Emirados Arabes Unidos, Qatar, aquela zona ali toda pode ter interesse por alguma razão. E o próprio Estado Islâmico, aparentemente sente que sofreu uma grande derrota no Iraque e na Síria, onde ocuparam mais de 200 mil km 2 e estavam a governar, com um califado muito forte.
Fracasso dos serviços de informação moçambicanos? “Fracasso, não. Mas naturalmente alguma deficiência”
Mas porquê aqui em Moçambique? Para provocar esta perturbação e ter um aumento do território? Há outras razões que tornam fácil o ataque ali?
O Estado Islâmico tem um comando central, tem comandantes muito fortes, antigos generais daquela zona que são fundamentalistas, mas competentes do ponto de vista militar, de intelligence, de telecomunicações e armamento. Independentemente do eventual interesse de concorrentes interessados em atrasar o projeto, há o próprio interesse do Estado Islâmico que está a sair dessas zonas e decidiu que o melhor lugar para atuar era em África, porque estes países africanos têm exércitos muito fracos, o Estado é fraco, e existem contradições internas que é possível explorar com muita facilidade. Como Cabo Delgado é uma zona de tráfico de drogas pesadas que vêm essencialmente do Afeganistão e são distribuídas a partir dali, o Estado Islâmico deve ter alguma ligação com esta gente do Afeganistão, porque também está a tentar controlar a costa. Independentemente do gás, pode ter como objetivo controlar uma zona, para poder controlar esses produtos em trânsito. Segundo um cálculo da ONU há mais de cem milhões de dólares de droga pesada que passa por ali, é depois encaminhada para a África do Sul e para a Europa, por vários mecanismos. Há interesses nestes negócios, em pedras preciosas, contrabandos diversos e armamento. Aparentemente um barco com tripulação paquistanesa e armas foi intercetado em Cabo Delgado.
Este conflito em Cabo Delgado não mostra um fracasso dos serviços de informação moçambicanos?
(longa pausa) Fracasso, não. Mas naturalmente alguma deficiência. Todos os serviços do Estado foram apanhados desprevenidos. Imagino que os serviços de informações moçambicanos devem ter acompanhado aqueles conflitos dos muçulmanos fundamentalistas, que são fricções de há muito tempo. No meu tempo [como ministro da segurança e diretor dos serviços secretos], há 40 anos, já existia esse conflito entre os [muçulmanos] fundamentalistas e os moderados. Mesmo aqui em Maputo. Como é que aparece? Os jovens receberam bolsas de estudo oferecidas pelos países muçulmanos, Sudão, Afeganistão, Arábia Saudita, e alguns de locais sérios, como Egito e Argélia. Uns são dominados pelas madrassas e universidades corânicas pelos fundamentalistas. Quando esses jovens regressaram tentaram introduzir as ideias fundamentalistas em casa, junto das famílias que eram moderadas, conservadoras, não radicais. É possível que isso tenha sido detetado. Mas não foi detetada a possibilidade do uso da força para impor uma regra jihadista, o uso de catanas, decapitar pessoas, para criar medo e terror, para melhor dominar e recrutar, para dizer: “Se estiver connosco não lhe cortamos a cabeça”. Na minha opinião, não é um fracasso dos serviços de intelligence. Não foi previsto isto. Não estava no programa de ninguém. Só quando aconteceu é que nos demos conta de que estavam a usar as diferenças e fricções locais.
Mas aí é que é importante a intelligence, para ajudar a antecipar e a prevenir. Se não detetou uma coisa desta envergadura, mostra a deficiência e é um fracasso.
Pronto, a conclusão é sua.
Percebo que tenha dificuldade em aplicar esta palavra a um serviço que liderou…
Em termos absolutos é um fracasso, mas eu não considero um fracasso. Enquadra-se no desconhecimento geral, incluindo dos jornalistas.
Mas os jornalistas não têm acesso a este nível de informações classificadas…
O jornalista deve ter cuidado com aquilo que diz.
Houve então uma deficiência no período inicial quando começaram os ataques. Mas os ataques já começaram em 2017, há mais de 3 anos e meio. Como avalia o que foi feito neste período já longo e o que correu mal para os insurgentes terem aumentado o território e continuarem a fazer ataques e vítimas?
Em 2017 há um ataque surpresa, que surpreende todas as forças — forças armadas, polícia, serviços de segurança, intelligence —, mas desde essa altura inicia-se uma nova etapa da organização. Isto não é fácil e é preciso meios. E falta tudo isso. Portanto a resposta que foi dada foi a possível naquele momento. Está a ser melhorada agora. No início havia a ideia de que eram uns insurgentes locais, que facilmente se podiam dominar. Mas não se tomou em consideração que podia haver um apoio externo muito forte. Chamei a atenção para isso, inclusive no Conselho de Segurança. Alguém tomou em consideração, mas até se pôr em prática um mecanismo de formar, de equipar… As Forças Armadas moçambicanas estavam completamente enfraquecidas. Depois do acordo de paz de Roma [assinado por Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama, da Renamo, em 1992], todo o projeto de reorganização das forças armadas moçambicanas foi feito para começar praticamente do zero e liquidar o que havia antes, talvez para reduzir a capacidade de intervenção. Isto reflete-se até agora. Criou-se um exército bem organizado, com boa estrutura, agora muito bem fardado e equipado, mas não preparado para enfrentar uma situação terrorista. Está agora, de há dois anos para cá, a organizar-se para isso.
Isso demora muito tempo.
Formar uma unidade especializada leva 12 a 18 meses. E é preciso equipá-la. E dar tempo para ganhar experiência.
Então estamos a falar de um horizonte ainda longo para se pôr fim a este conflito…
Ainda longo. Por isso é que a sua pergunta do apoio externo… acho que é preciso apoio externo, em termos de formação, treino, em todos os tipos de telecomunicações, logísticas, transporte.
E de intelligence?
Intelligence usando meios mais modernos de obtenção de informações.
Por exemplo, consegue ter-se informação credível e relevante sobre os líderes dos insurgentes, quem são, onde estão?
Devem estar a trabalhar sobre isso, mas também não é fácil. Porque eles são orientados pelo Estado Islâmico, que já sabe como foi derrotado na Síria e no Iraque, e já sabe como se comportar e como proteger os seus homens. Um líder tanzaniano foi liquidado. E outros estão ainda em identificação. Mas não tenho informação detalhada.
O nível de informação de que dispõem sobre este inimigo parece algo rudimentar. Temos visto uma escalada, de Mocímboa da Praia para toda a área em que estão agora. E o que parece é que há uma falta de urgência do governo moçambicano.
Parece, parece, e se calhar é verdade, mas não posso garantir. Sim, a interpretação externa é essa, que fracassou. Ainda há dias vi um artigo do Le Monde que é catastrófico sobre esse assunto. Essas são as apreciações, que não são difíceis de tirar. São conclusões lógicas da situação. Outra coisa é a situação real. Como as coisas estão a progredir e a desenvolver-se internamente. Não tenho conhecimento de como a situação está a evoluir nos últimos 12 meses. Tenho conhecimento geral, mas não de detalhes.
Mas fala-se do assunto nas reuniões do Conselho de Segurança…
Fala-se, mas não se entra em detalhes, como saber quem é o líder, isso são coisas especializadas, tratadas em órgãos especializados. Ali do que falamos mais é sobre políticas e estratégias, não táticas de combate, isso não se discute isso no Conselho de Segurança. Política e estratégia é isto: precisamos de ajuda externa para certos tipos de atividade. O essencial no terreno deve ser feito pelos moçambicanos. Mas agora verificou-se que o apoio aéreo que foi feito também por alguns moçambicanos deu resultado.
Parece que passa muito tempo até acontecer alguma coisa.
Parece, a mim também me parece. Mas a realidade é essa.
“É preciso contra-atacar, não esmorecer, não desencorajar porque o inimigo teve uma vitória momentânea”
Durante este período todo, o argumento principal contra o envolvimento de tropas estrangeiras tem sido a defesa da soberania, mas a soberania está a ser completamente atacada em Cabo Delgado.
A soberania não é afetada pelo apoio externo. Depende de como é. Se pedir apoio externo para substituir o presidente, o ministro da Defesa, ou o comandante… Mas não é isso.
O que aconteceu em Palma foi o golpe mais duro de todos…
Sim, e é possível que haja outros. Nós não estamos a combater insurgentes locais. Estamos a combater o Estado Islâmico. É uma força muito poderosa, com muita capacidade tática, militar, de informação, de contra-informação, de publicidade e financiamento. É contra isso que nós estamos [a combater]. E talvez isso tenha levado algum tempo a ser assumido pelas nossas próprias forças.
Mas este golpe de Palma tem um efeito catastrófico.
Tem um efeito catastrófico…
Em termos de vidas humanas e também em termos económicos. É o que toda a gente dizia que não podia acontecer. Como é que aconteceu uma coisa destas?
Aconteceu assim, porque as coisas são feitas desta maneira, porque as forças não estavam suficientemente preparadas. Agora é preciso contra-atacar, não esmorecer, não desencorajar porque o inimigo teve uma vitória momentânea. É preciso que não tenha mais, é preciso contra-atacar.
Também se vê pouco isso do contra-ataque…
Por enquanto, por enquanto.
Parece que normalmente o governo está à espera dos ataques…
Vê-se pouco, mas estão a preparar-se.
O seu livro mais recente [sobre as negociações de paz com a Renamo, de que foi mediador] tem umas páginas sobre a Arte da Guerra [de Sun Tzu], que contrariam totalmente o que está a ser feito. Quanto mais curto for o conflito melhor, por exemplo. É quase como se os grandes estrategas militares estivessem divorciados de Moçambique neste momento. Porque o que está a ser feito é exatamente o contrário. No início houve uma desvalorização aparente do conflito. Porquê esta desvalorização durante tanto tempo, ainda por cima num conflito na província onde nasceu o presidente?
Não sei se se desvalorizou. A consciência da realidade é que não aconteceu. Não foi uma desvalorização. Foi a falta de conhecimento, não se tomou em consideração a situação real.
Mas a partir do momento em que há partes da província em que não se consegue entrar…
Eles controlam. É a guerra isto.
Mas isso sabia-se logo em 2018…
Mas a fraqueza do Estado levou a que esse grupo inimigo pudesse tomar essas posições. Agora o que se deve fazer? Acha que se deve desistir? Podemos criticar, que se andou mal, mas temos de organizar-nos corretamente para contra-atacar.
Isso está a ser preparado? Vai haver um contra-ataque?
Está a ser preparado. Talvez não amanhã ou depois de amanhã, mas daqui a um mês, ou dois ou três.
E acha que esse contra-ataque poderá ter efeito?
Vai ter de ter. Se não é a derrota, que temos de evitar a todo o custo.
“Mas quando há uma situação grave o presidente deve ir lá? Faz parte de que regra?”
Precisamente por ser a província do presidente, provoca um pouco de estranheza ele não ter ido lá pessoalmente, confortar as vítimas, depois do ataque a Palma, que teve este efeito devastador em termos de moral. Porque é que acha que não foi?
Talvez não tenha tido ocasião para ir.
Haveria algo mais importante nesta altura?
Mais importante não sei. Mas o presidente não pode ir a todas as coisas. Tem os seus comandantes lá, tem o ministro da Defesa, tem o ministro do Interior, o Chefe do Estado Maior…
Mas é um ataque ao país com uma projeção global…
Mas ele falou!
Mas não esteve lá.
Mas porque haveria de estar lá?
Porque tem pessoas a sofrer e a fugir em Cabo Delgado.
Isso é uma interpretação político-jornalística. Isso não quer dizer que ele não vá daqui a pouco. [O Presidente Filipe Nyusi iria de facto a Pemba, capital de Cabo Delgado, três dias depois da realização desta entrevista].
Passou um mês. Faz um mês hoje.
Essa parte não concordo. O presidente vai lá consoante uma situação em que acha que deve ir. Ele já esteve lá várias vezes.
Mas como nunca houve uma situação tão grave…
Mas quando há uma situação grave o presidente deve ir lá? Faz parte de que regra?
Da regra de confiança entre eleitos e eleitores.
Então é um erro dele. Está a perder confiança…
Vê isso assim?
Não, não vejo. Se ele não foi e devia ir está a perder confiança. É a sua conclusão, é publicar isso…
Podia haver outras razões que justificassem…
Há algumas razões. Ele esteve em reuniões com a SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral), com o presidente do Botswana, com o presidente do Zimbabwe — que é meu amigo pessoal — para ver como fazer. Estes assuntos talvez naquele momento sejam mais importantes do que Cabo Delgado.
Como tem sentido o presidente em relação a este assunto? Fica abalado quando há um ataque?
Naturalmente, super-preocupado. É por isso que chama as pessoas e vamos lá discutir. Ele próprio está a intervir quase diariamente com os comandantes, com os dirigentes das áreas…
E nas reuniões do Conselho de Defesa e Segurança, há consenso?
Há opiniões diferentes, mas acaba-se num consenso.
Qual é a maior divisão?
Não há divisão. Há opiniões diferentes. O consenso é o presidente que tem de tirar. Mas o apoio externo não é um problema para ninguém. O problema é que está a ser confundido. Diz-se que o partido no poder recusa o apoio externo. Apoio externo é muito vago. Não recusa apoio externo. O que a Frelimo tem dito é que o combate no terreno deve ser feito pelos moçambicanos. Este é que é o ponto.
Incomodava-o ver tropas portuguesas no terreno?
Dificilmente se pode pensar nisso. Para já por causa de um passado recente, para aqueles que ainda estão vivos e vêm daquele tempo, e são muitos combatentes da Frelimo.
Não iriam aceitar bem isso?
Não. Mas alguns deles foram treinados pelas forças portuguesas. Aliás o acordo de Roma [assinado em 1992 com a Renamo] diz que as forças portuguesas é que vão treinar as forças armadas moçambicanas. Mas o que falta são outras coisas mais específicas, como usar o satélite para identificar movimentos, ou usar drones. Tudo isso está em processo. Aí precisamos de apoio externo. Não há capacidade financeira, estamos mal, não há dinheiro.
“Ter o terrorismo controlado é uma questão de pouco tempo: 2, 3 , 4 , 5 anos no máximo”
As tropas não são muito bem pagas e em termos logísticos não estão muito bem armadas. Está prevista alguma melhoria da situação financeira dos militares que estão no terreno, que ganham entre 7 e 15 mil meticais [100 a 212 euros]?
Há uns subsídios, não estou por dentro, mas está a ser tratado. Está em processo.
É uma questão importante para combater as deserções?
O mais importante nem é isso. O mais importante é o combatente que está no terreno ter a logística completa. Tem de ter água, comida e assistência garantidas.
E não tem neste momento?
E neste momento tudo isso é um pouco irregular. Um subsídio a mais ou a menos não é o mais importante. Importante é ter condições mínimas para combater. Tem de ter munições. Às vezes não tem, acabam logo, não é possível fazer combate, são deficiências que têm de ser superadas. Mesmo algumas munições são antigas, já não têm efeito, algumas falham. Tudo isto tem de ser reformado.
A hipótese de haver um exército privado a controlar um perímetro frente à Total é aceitável?
Não sei, tem de ser discutido. Para mim é aceitável, defenderei essa posição. Não sei o que dirão os meus colegas. Mas essa pode ser uma boa saída: um exército privado, ou mesmo um exército nacional com um reforço privado, que conjuntamente desenvolva uma ação. Acho que é possível que nas negociações com a Total isso venha a ser colocado dessa maneira.
Qual é o horizonte em que acha que será possível resolver este conflito?
Resolver completamente vai levar muito tempo.
Dez anos?
Dez anos não digo. Para liquidar talvez mais de dez anos. Mas para ter a situação controlada, o terrorismo contido e controlado, e com ações esporádicas que sempre haverá, é uma questão de pouco tempo, 2, 3 , 4 , 5 anos no máximo.
Qual acha que é o próximo passo dos insurgentes em termos geográficos. Pemba? Mueda?
Não sei. Acho que Pemba deve estar a ser protegido agora, com tantas ameaças que houve.
Eu entrei e saí de Pemba e não houve ninguém a mandar-me parar ou a pedir-me para ver o que tinha no carro. Não fica surpreendido com isso? Não devia haver uma segurança maior?
Se calhar estão demasiado à vontade. Devia haver alguma coisa. Eles vão querer mostrar que são mais fortes que as forças armadas. Até pode ser uma coisa simples: meter um carro ou um camião armadilhado em Pemba.
Podem evoluir já para atentados?
Acho que podem. Faz parte da tática do Estado Islâmico.
Pessoalmente, tem medo de um ataque deles em Maputo?
Medo não tenho. Mas temos de estar alerta.
Prevê que possa demorar uns anos até a situação ficar controlada, mas até lá Moçambique fica a conviver diariamente com o terrorismo. Também não é vida.
Também não é vida. Estou a dizer isto na pior hipótese. E temos de considerar sempre para efeitos práticos a pior hipótese. A pior hipótese é parar o projeto de gás, é isso que está a ser considerado. E é isso que está a acontecer.
A si custa-lhe pessoalmente não poder ir a Mocímboa da Praia [a terra de onde desertou com um avião da Força Aérea Portuguesa para a Tanzânia em 1963]?
Não tenho necessidade de ir a Mocímboa.
Mas não o incomoda?
Naturalmente incomoda.
Conhece alguém de lá que tenha sido atacado?
O meu antigo vice-ministro mora em Pemba, é um combatente antigo, um homem da Segurança que conhece a situação.
“O Estado deixou alastrar muito todo o problema da corrupção. Agora para parar é muito complicado”
Quase 50 anos depois da Independência, vemos um país com grandes riquezas naturais, mas ainda com uma grande dificuldade em combater a pobreza da maioria da população e também com problemas de corrupção, que são denunciados publicamente com grande regularidade. A um nível mais pequeno e a um nível maior. Quase não é possível fazer seja o que for aqui sem ter de pagar x meticais a alguém. Isto não lhe deixa uma sensação de falhanço?
É muito mau. A corrupção é péssima. Há um combate aberto contra a corrupção, está a haver vários casos detetados e julgamentos em tribunal, mas não é suficiente.
Mas o dinheiro continua a ser desviado…
Qual dinheiro? Diz-se, mas eu não sei. Era preciso dizer “o dinheiro tal está a ser desviado”, para serem julgadas as pessoas. Tem de se dizer quem está a desviar, quem está a usufruir, que é para ser julgado. O presidente faz grande força para haver um combate. Mas infelizmente muita gente, muitos deles são membros da Frelimo, etc. e eles próprios praticam a corrupção, portanto é difícil parar isto. Mas se há desvios, é preciso saber quais são. Às vezes há dificuldade em dizer que há um desvio ali, porque se pode sofrer retaliações, mas há maneiras de fazer isso e é preciso fazer. Pelo menos não entrar em novos esquemas.
Mas está lento esse processo de parar com isso….
Está na velocidade possível, não é lento. O Estado deixou alastrar muito todo o problema da corrupção. Agora para parar é muito complicado. Mas está a haver alguns resultados.
O facto de Cabo Delgado ser uma província tão pobre e de as pessoas viverem tão mal acaba por facilitar que as pessoas se juntem aos insurgentes?
A ideia da pobreza em Cabo Delgado está a ser agora evidenciada para mostrar a ineficácia do governo e o campo favorável que dá para o terrorismo atuar. Mas a pobreza é idêntica em Cabo Delgado, Niassa, Zambézia em certas zonas. O que é diferente em Cabo Delgado é a utilização por muçulmanos do fundamentalismo, que leva a que os próprios muçulmanos moderados sejam considerados infiéis. Este é que é o fulcro da ação terrorista para recrutamento, mediante pagamentos. Mesmo em Palma, segundo informação que tive há dias, há casas em que o chefe de família recebeu dez mil, 20 mil meticais para guardar armamento para ser usado naquela ação. Isto significa que as pessoas vendem qualquer coisa. Mas a pobreza existe em muitos lugares, não foi a pobreza que criou o problema.
Mas contribuiu e facilitou…
Foi bem utilizada pelo Estado Islâmico, que tem um estado-maior que sabe o que está a fazer e sabe como explorar isso, tem os seus agentes locais que estudaram o assunto.