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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Jesus foi flagelado. Nós também." Todos têm a sua Via-Sacra: sete peregrinos contam a deles

Ander teve de fugir ilegal da Venezuela. José e Maria Isidra assistiram à doença do filho. E Ana Isabel tenta aceitar a morte da mãe. A todos, Francisco deu esperança "de que a alma volte a sorrir".

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2019, Cidade do Panamá. Ander estava nervoso antes de subir ao palco principal da última Jornada Mundial da Juventude. Tinha uma missão especial: ia ler as palavras relacionadas com uma das estações escolhidas para a Via-Sacra. A organização decidiu escolher representantes de vários países da América Latina para falarem em frente ao Papa Francisco sobre a paixão de Cristo. E Ander — que subiu ao palco vestido de preto, com um chapéu de llanero (uma espécie de cowboy da América do Sul) e uma faixa a dizer “Venezuela” — teve a incumbência de falar sobre o escárnio a que Jesus Cristo foi submetido pelos soldados romanos.

“A flagelação e a coroa de espinhos continuam a massacrar com crueldade o rosto e o corpo de Jesus”, descreveu o jovem venezuelano. De seguida, fez um paralelismo entre o sofrimento de Cristo e o dos migrantes. “Jesus quis que o encontrássemos na dor. Encontramos a dor e a angústia dos migrantes nos Evangelhos. Ele também o foi, esteve no Egipto durante a infância. Ele também sentiu os passos daqueles que ontem e também hoje perseguem com brutalidade aqueles que não só perderam tudo, como sentem as fronteiras a fecharem-se. Como as linhas que limitam os países estão coroadas de espinhos afiados, que ameaçam, desprezam e rejeitam tantos irmãos.”

Agora, três anos depois, Ander sentiu que não podia falta à Via-Sacra da JMJ seguinte, em Lisboa. “Para mim, esta Via-Sacra é especial. Porque vou reviver aquele momento do Panamá”, conta ao Observador, depois de mostrar uma fotografia sua no palco da cidade do Panamá, com o Papa Francisco visível ao fundo.

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Aquilo que Ander não imaginava em 2019 é que, entre uma JMJ e outra, aquelas palavras ganhariam um significado especial para si. “Jesus foi flagelado. E eu disse que nós também somos flagelados, porque somos migrantes… E tornei-me num.”

O calvário da vida de Ander, que sentiu a “depressão” de ser imigrante. “Mas Deus não me abandonou”

Dois meses depois de regressar do Panamá à casa que partilhava com os pais e a irmã, no bairro de Catia em Caracas, Ander enfrentou algo que não achava possível. A 7 de março, um apagão elétrico deixou a capital venezuelana praticamente toda às escuras. Sair de casa tornou-se demasiado perigoso. E Ander e a família passaram uma semana inteira — o tempo que durou aquele apagão — fechados em casa, sem comida.

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

“Foi muito pior do que tudo o que passámos com a Covid”, admite o jovem. Nesse momento, a família tomou uma decisão: seria melhor para Ander e a irmã, Dubrasca, saírem do país. Aquela tinha sido a gota de água.

Partiram, sem vistos de imigração — ela para a República Dominicana, ele para França. Hoje em dia estão legais em Espanha, onde obtiveram asilo político. Dubrasca continua os seus estudos na área da Biologia, Ander voltou a conseguir trabalho como engenheiro químico. Os pais juntaram-se entretanto à filha, que está em Barcelona (o irmão trabalha na capital, Madrid).

“Na altura estava muito sozinho e senti-me muito deprimido. Mas Deus não me abandonou. Havia sempre alguma coisa que me dava esperança, nem que fosse algo pequenino."
Ander, imigrante venezuelano em Espanha

Dez minutos antes de conversarem com o Observador, Ander e a irmã Dubrasca estavam aos saltos no corredor central do relvado do Parque Eduardo VII. Chegaram cinco horas antes da Via-Sacra, com um grupo de venezuelanos. Sob o sol abrasador de Lisboa, Ander dançava em tronco nu, tornando visível a cruz grande que tem tatuada no peito. E que é acompanhada de uma mais pequena, dourada, que tem pendurada numa argola que usa na orelha direita.

Ao recordar o que passaram nos últimos três anos, porém, os rostos dos dois irmãos fecham-se. “Fiz de tudo, a vida de imigrante é assim. Fiz mudanças, carreguei muitos sofás. Cuidei de vários idosos, trabalhei em lares. Fiz muito, muito”, conta Ander, abanando a cabeça, com a cruz dourada na orelha a cintilar.

“Na altura estava muito sozinho e senti-me muito deprimido. Mas Deus não me abandonou. Havia sempre alguma coisa que me dava esperança, nem que fosse algo pequenino”, diz. Valeu a pena a espera: o calvário teve um fim e hoje têm “uma boa vida”, onde o único incómodo são “as muitas saudades” do seu país. Precisamente por isso, o venezuelano garante que a nova Via-Sacra a que vai assistir no Parque Eduardo VII tem particular significado para si: “É por isso que hoje estou aqui. Para agradecer e para estar com a minha gente venezuelana.”

Segregação, perseguição e violência. O sofrimento dos ausentes na Jornada está na cabeça de Jan, Ofélia e do padre Pedro

Nem todos sentem com a mesma profundidade o sofrimento. As vidas de muitos peregrinos “felizmente” correm bem, dizem ao Observador muitos dos jovens que ali estão para assistir ao momento da Paixão. Esta é antes uma oportunidade para um momento mais introspetivo, de aprofundamento da sua relação com Cristo.

Mas até entre os que dizem não ter razão para se queixarem, há o reconhecimento de que há muitas outras vidas de sofrimento. É o caso de Jan, checo de 25 anos que veio sozinho para Lisboa, para repetir a participação numa Jornada depois de ter estado em Cracóvia (Polónia), em 2016.

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

No ano seguinte, decidiu participar numa missão católica, por sentir que precisava de fazer algo pelos outros. Esteve um ano na Bulgária, a trabalhar com crianças ciganas. Aquilo que viu deixou-o em choque: “Foi muito duro ver o contraste entre os outros búlgaros e os búlgaros ciganos. Eles são muito, muito segregados”, confessa, enquanto tenta agarrar a bandeira da República Checa que traz às costas e que foi agitada por uma rabanada de vento. “Mas também foi muito inspirador. Foi muito difícil, mas uma grande experiência.”

O sofrimento de outros também preocupa Ofélia, que veio de El Naranjito, no México, para acompanhar um grupo de 25 jovens da sua paróquia. “Esta é a paixão de Cristo, não é? É importante!”, diz ao Observador, com convicção. “Quero aproveitá-la para pensar nos problemas sociais do meu continente e do meu país.”

"Ainda ontem mataram um rapaz que conhecemos, morreu num fogo cruzado entre dois gangues. Antes disso, há um mês, outro morreu num assalto.”
Ofélia, peregrina mexicana de El Naranjito

Em concreto, Ofélia está focada na “perseguição” que diz que os católicos sofrem na América Latina, mas sobretudo na situação da violência no seu país, que conhece de perto. “Afeta-nos muito. Ainda ontem mataram um rapaz que conhecemos, morreu num fogo cruzado entre dois gangues. Antes disso, há um mês, outro morreu num assalto”, revela, sem querer dar mais pormenores, para não perturbar os jovens do seu grupo, que ouvem a conversa por perto. É nesse sofrimento que esta mexicana se foca ao longo de toda a Via-Sacra desta sexta-feira. “A oração pode fazer milagres”, afirma. “Vou rezar para que os jovens ganhem consciência do valor da vida humana.”

Em Portugal, o padre Pedro não nota situações de discriminação tão graves quanto Ofélia relata na América Latina. Mas, na sua comunidade, numa aldeia — que prefere não localizar — no Alentejo “profundo” também há focos de um certo preconceito contra os católicos praticantes. Não que seja impedido de praticar a sua religião, há, por si, “respeito na comunidade”. Mas é nas escolas, que se faz sentir. “Para os jovens é mais difícil assumirem-se como católicos. São enxovalhados publicamente nos liceus e nas escolas quando o fazem”, afirma, ao Observador, enquanto aguarda junto a umas baias de segurança a chegada do Papa que, espera, por ali passe no papamóvel.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Os casos de intolerância não são tão comuns assim, mas em número suficiente para que o padre Pedro já tenha ajudado jovens a “preparar a sua defesa” quando são “gozados” por serem católicos. “A maior defesa é eles não terem medo”, afirma.

A  gratidão para uns e a “esperança de que a alma volte a sorrir” para outros

José e Maria Isidra ficam os dois sem palavras. Não sabem o que responder quando a pergunta é sobre como é que dois pais conseguem receber o diagnóstico de tumor feito a um filho. Durante segundos, não reagem. Maria Isidra seca discretamente com as mãos os olhos tapados com óculos escuros que a protegem do sol alto e quente que aquece o Parque Eduardo VII.

O filho, hoje com 23 anos, foi em 2020 diagnosticado com um tumor no cérebro que atirou a família para uma fase de profundas dificuldades: “Passámos três meses muito maus, porque ele não conseguia ver, tinha visão dupla, não se conseguia equilibrar, teve de deixar os estudos. Foram meses muito complicados, mas ele teve muita força de vontade”, conta a peregrina espanhola, de 52 anos, em conversa com o Observador. José, 55 anos, também tenta pôr em palavras o sentimento de “desespero” por que passou: “É muito duro, porque é uma situação que surpreende e não podes fazer nada, transcende-te”.

“Passámos três meses muito maus, porque ele não conseguia ver, tinha visão dupla, não se conseguia equilibrar, teve de deixar os estudos. Foram meses muito complicados, mas ele teve muita força de vontade.”
Maria Isidra sobre o diagnóstico de cancro no cérebro do filho

O filho, que passou por intensos tratamentos de radioterapia, recuperou — “Graças a Deus… e à ciência”, acrescenta José. Está hoje em fase de remissão, a fazer exames periódicos para garantir que o tumor não deixou sequelas. Retomou os estudos em Madrid — está a fazer um mestrado em engenharia industrial — e voltou a tocar numa charanga que percorre Espanha de festa em festa. Faz hoje uma vida praticamente normal, fora os exames periódicos a que continua a ser sujeito por prevenção, mas não tem grande relação com a religião. Por isso, não fez questão de ali estar.

Ao contrário dos pais, que viram nas Jornadas uma forma de “dar graças” e “agradecer”. É para isso que ali estão. “Sentimos que era a nossa obrigação”, diz José, que no ano passado fez, com Maria Isidra e um grupo de peregrinos, o Caminho de Santiago com o mesmo intuito.

A figura de Francisco transmite-lhes a paz que durante muito tempo esteve ausente nas suas vidas. “Quando ele fala parece que está a falar-nos individualmente”, sente José. Maria anui e atira: “Fala dos problemas reais, de todos nós, parece que nos compreende”.

Para o casal que veio de Sória, a fé serve também para isto: não só para pedir, também para agradecer. Mas mesmo quando a vida não tem o mesmo rumo, encontram-se formas de encontrar alento, e suporte, na Igreja. Quando a mãe de Ana Isabel, 29 anos, natural da Senhora da Hora, Matosinhos, morreu sete meses depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro no pulmão, a Igreja foi um porto de abrigo.

“Fiquei um bocado desamparada, o meu pai esse ano também esteve doente. Eu tratava da minha mãe, não dormia. O meu pai também estava mal, tratava dos dois. Faltei à faculdade”, conta. Encontrou apoio na paróquia, no grupo de acólitos a que pertencia, em jovens, numa “família de famílias”, resume.

“Houve hesitações, medo, momentos de choro mas o que me fez continuar foi saber que Deus chamou-a a si, que ela já teria cumprido a sua missão na terra, e era uma realidade que eu tinha de aceitar, e vou acentuando. A religião permite-me ter esta fortaleza."
Ana Isabel, peregrina portuguesa, sobre a morte da mãe

A Igreja também tem essa missão, acredita: ser uma espécie de pai e mãe perante os acidentes da vida. “É preciso esta ideia de paternidade e maternidade, que conseguimos encontrar em Deus. Deus é pai e mãe ao mesmo tempo, não esquecendo Maria. E naqueles momentos de maior aflição, perante um sentimento de abandono, de dificuldade em continuar pelo caminho, porque sabemos que é difícil, em que não temos quem nos acompanhe, quem nos incentive, é normal que haja maior tendência para aprofundar e intensificar a nossa oração”.

Apesar de acreditar que a Igreja ainda tem um caminho a percorrer “em termos de inclusão”, não se afasta e quer contribuir para essa mudança e para uma “missão” que, crê, deveria ser mais transversal na sociedade: ajudar o próximo. Fá-lo não só por si, e pelo outro, para “retribuir” o que diz ter recebido, mas também pela mãe, que era crente e a iniciou, e aos dois irmãos, desde cedo na religião católica. Seguir este “trajeto e não desistir” é também uma forma de “honrar a sua memória”. “Houve hesitações, medo, momentos de choro mas o que me fez continuar foi saber que Deus chamou-a a si, que ela já teria cumprido a sua missão na terra, e era uma realidade que eu tinha de aceitar, e vou acentuando. A religião permite-me ter esta fortaleza, de que ela está na comunhão com Cristo, e encaro isto na perspetiva da fé, que ela cumpriu a missão dela. E agora cabe-me a mim cumprir a minha”, afirma Ana Isabel.

FILIPE AMORIM

A Via-Sacra a que horas depois da conversa com o Observador assistiria, é, para si, uma metáfora para a vida, a sua e de todos perante os infortúnios que vão surgindo. De Francisco esperava ouvir uma mensagem virada para os jovens. “Quando estava a vir para cá estava a falar com os ‘meus’ jovens que perguntaram: vamos à Via-Sacra porquê? Expliquei: ‘Ele vai olhar para os últimos passos de Cristo até à morte e vai interpretá-los, à luz das dificuldades que os jovens têm e vai-nos dar umas luzes e indicações para que o Evangelho, lido ao dia de hoje, na tua vida e nas tuas circunstâncias te possa ajudar a permanecer firme’”.

Como Ana Isabel esperava, Francisco falou aos jovens sobre o “caminho” que Cristo percorreu — “o caminho do seu sofrimento, o caminho das nossas ansiedades, o caminho das nossas solidões — e que, no palco, seria percorrido agora em conjunto, por todos. O pedido foi para que os jovens, em silêncio, pensassem nas suas próprias ansiedades e solidões. E que, como Ana Isabel e tantos outros têm tentado fazer, “tenham a esperança de que a alma volte a sorrir”.

 
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