Em entrevista à Rádio Observador, e numa altura em que se agudiza a saída de médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (a maior do país) defende que deve existir um período de cinco anos de permanência obrigatória dos médicos recém-especialistas no SNS. Uma medida que, defende o médico reumatologista, seria também benéfica para os próprios médicos.
João Eurico Fonseca defende também a generalização dos centros académicos, de modo a dar aos médicos mais condições para fazer investigação e formação ao longo da carreira, aspetos essenciais para reter os profissionais no SNS, numa altura em que, sublinha, domina “o desencanto” das novas gerações pelo sistema público de saúde.
Quanto à recorrente discussão sobre o aumento das vagas nas escolas médicas, o diretor da FMUL mostra-se favorável à ideia — até porque diz, “Portugal vai precisar de mais médicos do que os que está atualmente a treinar”). Esse alargamento, defende, teria de estar integrado numa lógica de abertura das faculdades a alunos estrangeiros, que poderiam aumentar as verbas das faculdades, permitindo a contratação de mais docentes e o investimento nas infraestruturas.
“Somos cada vez mais eficazes, mas cada vez é mais caro tratar uma doença”
Como é que o diretor da maior faculdade de Medicina do país olha para o estado em que se encontra o SNS, com a insuficiência de resposta que é visível em várias áreas? Está preocupado?
Estou preocupado. Aquilo que vivemos é consequência do mundo. A Saúde tem evoluído muito ao longo dos últimos 30 anos, mas de uma forma peculiar. Somos cada vez mais eficazes, mas cada vez é mais caro tratar uma doença. Isso está relacionado com aspetos tecnológicos, mas também com a utilização de fármacos. O SNS tende a ser mais eficaz (fazendo mais com menos dinheiro), por comparação com outros sistemas puramente privados como o americano — onde os outcomes (resultados práticos), do ponto de vista da sobrevivência e do bem estar das pessoas, é atingido abaixo do que conseguimos.
Mas a verdade é que os governos têm colocado cada vez mais dinheiro no SNS, sem consequências práticas.
Sim, sem que tenhamos uma resolução do problema. É evidente que o nosso SNS também tem características peculiares: tem uma história de 40 anos, de desenvolvimento desde o zero. E o que temos é uma obra fantástica, com resultados de esperança de vida, mortalidade infantil, vacinação que nos devem orgulhar. Ficámos satisfeitos, mas, ao mesmo tempo, ficámos frágeis. Conseguimos isso à custa de um enorme esforço dos profissionais de saúde e de uma paz no desenvolvimento do SNS, com alguma medicina privada com pouca projeção.
Hoje, muitas pessoas não encontram solução rápida no SNS, se precisarem de aceder a uma consulta, a um serviço de urgência, de fazer uma cirurgia. São lacunas a colmatar.
São consequências de um nível que atingimos. E temos agora de saber sair disto. Atingimos um nível de tratamento de doenças raras ótimo, mas isso teve um custo: financeiro e para os trabalhadores da saúde. À medida que aumentamos a complexidade, aumentamos o número de horas necessárias para tratar uma pessoa e não podemos ter o mesmo outcome e a mesma capacidade de integrar a formação e a investigação, paralelamente a este desenvolvimento clínico.
Como atrair médicos? Apostando na investigação e na formação, diz diretor da FMUL
De que reformas necessita o SNS? Como podemos melhorar a resposta aos utentes?
Precisamos de inverter o problema. Temos de oferecer aos profissionais de saúde o que é mais atrativo, uma vez que não conseguimos competir com os salários do setor privado e outros países. Temos de ter um estímulo à atividade profissional, marcada pela educação e pela investigação. Muitos dos profissionais do SNS encontram o bem estar quando estes aspetos são devidamente equilibrados na atividade do dia a dia.
Porque é que o SNS não valoriza a investigação e a formação ao longo da carreira médica?
Porque temos um SNS muito vocacionado para outcomes numéricos pouco diferenciados, ou seja, pensamos em número de consultas e cirurgias e esquecemo-nos de que os hospitais terciários (que tendem a estar associados a faculdades e a institutos de investigação e que têm como missão tratar doenças complexas, dar formação pré-graduada e treinar adequadamente os internos) estão sobrecarregados do ponto de vista de trabalho. Se conseguirmos equilibrar os vários pesos, se conseguirmos fazer com que o trabalho mais diferenciado seja valorizado atendendo ao tempo despendido a tratar doentes, se valorizarmos o tempo para a formação e para a investigação, há maior probabilidade de os profissionais aderirem a um conceito que vai além da questão económica.
A questão é que neste momento os profissionais têm a maior parte do tempo alocado à atividade assistencial, há menos tempo para projetos de investigação e para a formação. Como se quebra esta corrente?
É um círculo vicioso. Temos de parar este processo, começando pelos centros académicos, que são estruturas que juntam hospitais terciários, faculdades de Medicina e institutos de investigação. Temos de valorizar as carreiras dos profissionais nestas instituições.
É preciso generalizar os centros académicos?
Sim, de modo a parar o processo de sangria de profissionais. A maior parte das pessoas não toma a decisão para a sua carreira com base apenas em fatores financeiros. Há muito fatores em cima da mesa: se as condições laborais, os projetos, as lideranças forem as adequadas, estou convencido de que os médicos vão decidir ficar em locais onde seja permitida a sua diferenciação, a sua formação e a investigação clínica.
“Há de facto um desencanto [dos jovens médicos] pelo SNS”
Há cerca de dois meses, mais de 400 vagas para formação de especialidade ficaram por ocupar, o que nunca tinha acontecido. Há um desencanto dos estudantes de Medicina com o SNS?
Esses números têm de ser analisados melhor, mas são muito preocupantes. Uma parte pode ser explicada pela emigração. A outra parte [da explicação] pode ser a migração para outras oportunidades profissionais, que é cada vez mais uma opção para os médicos. Há de facto um desencanto com o SNS, a nova geração está preocupada com a qualidade de vida, com a diferenciação e tem dificuldades em encontrar alojamento (nomeadamente na cidade de Lisboa, onde os preços não são compatíveis com os ordenados).
Qual é o sentimento entre os alunos da FMUL?
Existe uma desilusão com vários aspetos. Temos de cerca de 2200 alunos de Medicina e a forma de ver a vida é diferente entre todos eles. Mas há pessoas que sentem desilusão com a faculdade, no sentido em que esperavam que a faculdade os pudesse ajudar com o alojamento, com as condições de trabalho. Gostariam também de estar a ser recebidos nos anos clínicos em grupos mais pequenos, ter um contacto mais fácil com os hospitais e não viver a ansiedade que se vive em alguns hospitais e que os alunos também sentem. Ao fim de alguns anos, tudo conta para a decisão final dos alunos.
Muitos destes alunos que não entram numa especialidade optam por ser médicos indiferenciados. Este fenómeno pode, a prazo, colocar em causa a qualidade da Medicina que se pratica em Portugal?
Acho que é uma ameaça [à qualidade da Medicina]. Acho também uma ameaça a ilusão de que podemos recrutar médicos noutros países sem termos uma valorização correta da sua formação. Temos de ter noção de que trabalhamos com a Medicina europeia. Para que alguém se integre adequadamente, tem de ter um período de treino clínico para além dos conhecimentos teóricos — isso é ganho durante o internato. Quem não esteja educado nesta realidade (e que venha da América do Sul ou de África), pode ter muita dificuldade em praticar uma medicina de qualidade.
O que leva um médico a optar por não ingressar na formação de especialidade?
Por um lado, [como indiferenciado, a trabalhar em empresas de prestação de serviços] recebe um incentivo financeiro superior a um médico que esteja a fazer o internato de especialidade. Depois, as vagas para internato, embora sejam em número suficiente para todos os candidatos, podem não satisfazer alguns dos candidatos. Esses candidatos podem não entrar num determinado ano, ficando como prestadores de serviços, na expectativa de entrarem num ano subsequente. O problema é que, entretanto, ao entrarem no mercado de trabalho, têm oportunidades económicas que entram em conflito com o ordenado de um interno.
Diretor da FMUL defende aumento das vagas, com espaço para alunos estrangeiros
Portugal forma cerca de 1800 médicos por ano (cerca de 300 na FMUL). Há poucos meses, ouvimos o diretor-executivo do SNS dizer que Portugal precisa de formar mais médicos, uma ideia que tem sido contestada nomeadamente pela Ordem dos Médicos e pelos sindicatos. Seria exequível aumentar a formação?
As contas relativas ao número de médicos a exercer em Portugal têm de ser mais bem feitas. Existe um registo que não está perfeito. É provável que os médicos a exercer sejam insuficientes para as nossas necessidades. A realidade é que estamos com problemas em manter o SNS em alguns setores. Temos de ser capazes de formar mais médicos, sem estragar a qualidade da formação. As faculdades de Medicina públicas estão encostadas ao limite da sua capacidade de formação e é muito difícil aumentar a formação se não forem oferecidas outras condições.
Quais?
A primeira é as faculdades de Medicina poderem gerar mais verbas próprias. Uma das formas de conseguir isso é termos estudantes internacionais. Claro que podemos pensar que esses estudantes internacionais podem fazer o curso e ir-se embora. Isso é pouco provável. Provavelmente, até terão vontade de ficar em Portugal. A grande vantagem para as faculdades é a verba envolvida, que é muito superior à propina de um estudante português. Com isso, as faculdades de Medicina poderiam investir nas suas infraestruturas e nos seus profissionais, e com isso, receber mais alunos.
Neste momento, há entraves à vinda desses estudantes?
As faculdades de Medicina não estão autorizadas a ter esses estudantes. Esta é uma barreira que não tem lógica nenhuma. Todas as faculdades têm estudantes internacionais e lutam por isso, porque esses estudantes aumentam a qualidade do ensino e dão um impulso financeiro importante. Isto é uma realidade em todo o lado menos nas faculdades de Medicina, porque se pensou que os estudantes internacionais não queriam ficar em Portugal. Essa é uma premissa errada.
Portanto, é a favor do aumento dos numerus clausus?
Sou favorável à entrada de estudantes internacionais e ao alargamento da capacidade formativa a estudantes portugueses também. Não sou favorável ao dispersar da nossa capacidade formativa numa miríade de faculdades privadas, que acabam por enfrentar muitas dificuldades, acabando numa competição com as faculdades públicas pelos locais de treino clínico, que são os hospitais públicos. Não há dúvida de que Portugal vai precisar de mais médicos do que os que está atualmente a treinar.
E faria sentido formar mais médicos? O problema não é a falta de capacidade de atração do SNS?
Em última análise, poderíamos formar gerações e gerações de alunos e de internos que poderão ir-se embora. Temos de criar condições de formação, de treino e, depois, de fixação dos jovens médicos. O modelo terá de ter implicar um aumento da condições de qualidade do trabalho e uma remuneração compatível.
Mas, mesmo que se formassem mais médicos nas faculdades, haveria depois capacidade de os formar nas unidades de saúde? Há cada mais formadores, ou seja, médicos com alguma experiência, a sair do SNS.
A jusante, acho que existem condições para formar médicos internos, futuros recém-especialistas. Neste momento, acho que não existe esse risco.
Mas as dificuldades são cada vez maiores.
Cada vez há maior dificuldade, cada vez é mais difícil receber os alunos nas áreas clínicas, porque temos muito estudantes de Medicina em Portugal e temos áreas clínicas muito sobrecarregadas, com muita atividade — e a presença dos alunos, em determinadas alturas, é confrangedora para as três partes envolvidas: estudantes, médicos e doentes.
“Para o bem de todos”, médicos deveriam ficar cinco anos no SNS depois da formação
Seria favorável a uma espécie de período de permanência obrigatória dos jovens médicos no SNS?
Pode ser uma solução. A formação que é dada a um interno é suficiente, em termos de contributo do Estado… para o bem de todos, um período mínimo pós-finalização do internato deveria ser dentro do SNS. Porquê? Para o bem dos doentes, do país, mas também dos jovens médicos. O internato é o momento decisivo de aprendizagem, em que o médico está sob tutela. Depois disso, o médico ganha autonomia progressiva e vai amadurecendo. Esses anos, vividos em ambiente hospitalar, são de formação complementar oficiosa. Portanto, [seria] um período de 4/5 anos em que o interno continuava a sua progressão. Após esse período, era livre para sair. Não tenho problemas com isso, provavelmente outras pessoas pensam de outra maneira.
De que forma é que a formação em Medicina tem mudado ao longo dos últimos anos? Quais os maiores desafios que se colocam nesta área?
A formação médica tem sido baseada num conceito teórico e num ensino teórico-prático em pequenos grupos e, depois, um ensino clínico em grupos muito pequenos, de quatro alunos, junto dos doentes. No entanto, há algumas ferramentas adicionais que podem preparar melhor os alunos para os momentos de interação sem e com o doente presente. São métodos baseados em tecnologia e necessitam de algum investimento. É importante dizer que o Estado português está a fazê-lo nas faculdades de Medicina através de um programa de financiamento, e que permite reforçar as faculdades com simulação mecânica (que permitem simular determinadas circunstâncias clínicas), a simulação digital (em que o aluno, através da realidade virtual, consegue simular manobras [clínicas]). Isto permite ao aluno ganhar maturidade para, quando chegar ao contacto com o doente, estar mais capaz de o aproveitar. Isto oferece mais formação.
Acha que esse acréscimo de tecnologia melhora a formação?
Melhora a formação. Outro aspeto importante são as plataformas digitais, que permitem aos alunos um ensino mais imersivo. Dar [esta ferramenta] aos alunos desde uma fase inicial aumenta-lhes a capacidade de visualização da realidade médica, apoia o desenvolvimento do raciocínio clínico e, nalgumas áreas, o ensino digital imersivo pode ser mais impressionante para a memória dos alunos. Portanto, o aspeto tecnológico do ensino médico pode fazer diferença a vários níveis, uma vez que permite que mais alunos estejam expostos ao ensino (estas estruturas são mais autónomas, necessitam de menos docentes), permite um ensino baseado em língua inglesa (preparando mais os alunos para o Erasmus e também as faculdades para receberem estudantes de Erasmus).
Neste momento, estes instrumentos ainda não estão generalizados nas faculdades?
Todas as faculdades já têm alguns instrumentos deste género. O que tem sido possível desenvolver tem sido sempre limitado pela capacidade financeira. É preciso reconhecer a preocupação do Estado em lançar esta linha de financiamento, que acho que vai revolucionar o ensino da Medicina em Portugal.
Tecnologia mas também empatia. “Sem empatia e sem comunicação, ninguém faz Medicina”
Muitas pessoas dizem que a comunicação e a relação médico doente se estão a perder progressivamente, principalmente nos jovens médicos. De que forma se pode colmatar essa falha?
Isso é muito importante. Nós temos um componente científico e técnico, mas há um componente humano que é absolutamente crítico. O ensino da Medicina tem de ser acompanhado por algumas técnicas de comunicação e de empatia. Há pessoas que têm isso de forma inata, há pessoas que têm de treinar. Antes de os alunos entrarem em contacto com o doente, estes ambientes de simulação podem ajudar nisso, através do recriar de algumas situações que apelam à valorização da comunicação, não só em ambiente digital, mas também em ambiente virtual com atores.
Como vê a Medicina daqui a 10 anos? Que tipo de médicos vamos ter no futuro?
Daqui a 10 anos, vamos ter médicos com uma grande capacidade de utilização da inteligência artificial e do digital. Não que o raciocínio médico não se mantenha absolutamente crítico. Os médicos vão ter valorizar esse raciocínio médico, com o conhecimento perfeito das ferramentas digitais e da inteligência artificial, que o possam ajudar a fazer melhor um diagnóstico ou uma opção terapêutica. E, no fim da linha, está a capacidade de empatia com o doente. Porque podemos ter o diagnóstico e terapêutica precisas, mas, se não houver empatia, o doente não vai fazer a terapêutica. Sem empatia e sem capacidade de comunicação, ninguém faz Medicina.
O problema do subfinanciamento das unidades de saúde e do Ensino Superior é um problema crónico. De que forma é que isso vos prejudica?
É afetada como todas as faculdades. Mas as escolas médicas saem mais caro. O grande aspeto diferenciador é que o ensino da Medicina acaba com doentes (e acaba com muito poucos alunos para um docente) numa relação que não pode ser superior a um para quatro. Ninguém aguenta fazer uma consulta com um médico e mais de quatro estudantes, ninguém aguenta estar numa cama hospitalar e ser visitado por um médico e mais de quatro estudantes. Tudo isto cria a necessidade de muitos contratos profissionais e aumenta muito os custos de uma faculdade de Medicina.
Acresce que muitos docentes não são profissionais a tempo inteiro da faculdade; a maior parte é profissional do SNS e tem uma pequena percentagem de contratualização com as faculdades e dá poucas horas de ensino. A complexidade de uma faculdade de Medicina é superior, têm muitos professores assistentes e convidados. E, portanto, têm de ser financiadas por um sistema diferente: é necessário contar os alunos, mas é preciso ter em conta que esses alunos vão precisar de mais docentes. Enquanto não existir um financiamento majorado para as faculdades de Medicina, estas vão ter, cronicamente, maior défice financeiro.
E na prática em que isso se reflete negativamente para os alunos?
Reflete-se na nossa dificuldade para contratar todos os docentes. A maior parte das faculdades continua a ter o que se chama ‘assistente livre’, ou seja, um assistente que não recebe nada. É difícil pensar que o ensino pode ser exatamente igual quer se receba ou não dinheiro. Quem se compromete a trabalhar pro bono compromete-se durante um determinado período. Mas não é sustentável durante muito tempo. A partir de determinada altura, não é estimulante e a maior parte dos profissionais, ou é contratada, ou desiste. Para além disso, há problemas de ligação disciplinar a uma instituição, porque a ligação é ténue. As faculdades de Medicina têm de ser o mais profissionalizadas possível, a realidade tem de mudar.