Com uma ovelha às costas, em tronco nu e com um ar estafado. A imagem de João Paulo a fugir das nuvens de fumo atrás de si tornou-se indissociável de um dos incêndios que devasta o concelho de Leiria. Mas o jovem de 22 anos não quer saber da fotografia: “Não é uma coisa que me traga boas recordações. São coisas trágicas. A fotografia pode ser divulgada em qualquer país, mas não me interessa”. Não ignora, porém, as “críticas e palavras feitas” que já leu sobre si apenas com base nesse registo. “E isso não apoia uma pessoa que tentou ajudar os bombeiros“, lamenta em conversa com o Observador, esta quarta-feira, no dia a seguir à tragédia.
A fotografia que acabou por ser amplamente partilhada nas redes sociais tem-lhe até “trazido alguns problemas”, em particular os “comentários ofensivos ao facto de estar sem camisola”. “Depois, chego a casa e tenho a minha namorada preocupada. Não quero saber de fotos, quero é salvar o que está aqui”, atira.
João Paulo mostra-se indiferente à imagem. “O que me importa é salvar os meus, salvar os meus bens. Os bombeiros não chegam a todo o lado, ajudei a resgatar pessoas e animais e hoje talvez seja preciso novamente. A foto pode circular em todo o lado, não me importa”. Mas não deixa de lamentar que a fotografia tenha atraído atenções, não pela história que está por detrás dela: a de um jovem de 22 anos que salvou, junto com amigos, cerca de 10 pessoas e mais de meia centena de animais das chamas que não dão tréguas.
A história do incêndio que atingiu a aldeia onde João Paulo vive desde sempre começou pouco depois do meio-dia desta terça-feira, na freguesia da Caranguejeira, no concelho de Leiria. O jovem estava a trabalhar na empresa de construção civil da família, localizada na mesma freguesia onde vive, quando viu as chamas a aproximarem-se. Pelas 13h00, já o jovem estava a combater as chamas. “Foi uma situação um bocado difícil para mim porque estava sozinho. Vieram-me chamar de repente e não tinha ninguém ao pé de mim: não havia bombeiros suficientes para fazer isso. E fui tentar tirar as pessoas de casa”, recorda.
As chamas chegaram a estar a cerca de 100 metros da sua casa, mas foram as habitações que estavam “mais perto dos pinhais”, os vizinhos e dezenas de animais que o jovem tentou salvar. “Tirei cerca de 10 pessoas de casa, para além dos animais todos, a minha namorada, o meu pai e vizinhos de outras empresas [além empresa de construção civil em que trabalha], disse, acrescentando: “Passei um dia muito difícil, com muita correria, a salvar pessoas aqui da terra, a salvar animais, a tentar ajudar o máximo possível que conseguisse da minha parte”.
João Paulo rejeita o título de herói e evoca por diversas vezes as pessoas que o acompanharam na luta contra as chamas. “Não fui sozinho. Tinha imensos colegas de trabalho, amigos aqui da zona a ajudar a salvar outras. Corremos tudo o que conseguimos para tirar as pessoas”, afirmou.
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João Paulo diz que fogo chegou às casas em dois segundos e critica demora a retirar pessoas
O “máximo possível” foram cerca de 20 ovelhas de vizinhos e ainda mais de 40 cabras do seu avô, que foram salvas e retiradas de um barracão que acabou por arder: “Está praticamente queimado”. João Paulo descreve este momento como o “mais preocupante” do dia: “Foi logo ao início da tarde, quando tivemos o fogo a cercar-nos“. Por diversas vezes ao longo da tarde, o jovem de 22 anos percorreu os 250 metros que separavam o barracão onde estavam os animais da sua casa, onde os colocou, afastados do perigo das chamas. O esforço foi gratificante, porque nenhum ficou para trás: “Conseguimos salvar todos os animais nessa situação”.
O fogo que começou na freguesia da Caranguejeira já chegou a ser combatido por mais de 400 operacionais, mais de 120 veículos e sete meios aéreos, de acordo com dados da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). E já esteve até por duas vezes em fase de resolução: a primeira, três horas depois de deflagrar e a segunda às 18h44 da tarde de terça-feira. Mas poucos minutos depois voltou a reativar e, quando na tarde desta quarta-feira João Paulo falou com o Observador, ainda não dava tréguas.
Chamas que atingiram várias freguesias de Leiria foram controladas
Em apenas um dia, o incêndio da Caranguejeira estendeu-se ao longo de outras seis freguesias do concelho de Leiria — onde já mais de três mil hectares foram consumidos pelas chamas. Apesar de não estarem totalmente extintos, o presidente da Câmara de Leiria, Gonçalo Lopes, garantiu que todos os incêndios “estão controlados” e que está em curso a operação de rescaldo e combate a alguns reacendimentos.
O jovem de 22 anos acredita que a situação chegou a este extremo devido à demora na tomada de decisão para retirar as pessoas das suas casas. “Na estrada principal, tínhamos fogo a 100 metros das casas e fui falar com um polícia: disse-me que não era necessário tirar as pessoas das casas, que o fogo não ia avançar”, começou por relatar, continuando: “O fogo chegou ao pé das casas em dois segundos. O senhor da GNR não me quis ouvir. Apesar de não perceber nada disto, vim aqui ajudar os bombeiros porque é um local onde vivo há 22 anos”.
Quatro incêndios continuam a não dar tréguas, três deles no distrito de Vila Real
“Estou cheio de cãibras por andar a correr para baixo e para cima a tentar apagar fogos”. Fogo chegou à terra da namorada e João Paulo foi para lá ajudar
O dia-a-dia de João Paulo é feito na freguesia de Boa Vista, onde mora com os pais e trabalha na empresa familiar. A sua rotina foi, porém, alterada nos últimos dias, pelos piores motivos. Depois de sair do trabalho, esteve toda a tarde a resgatar os animais e a retirar os vizinhos. “Esta noite foi uma noite sem dormir. Não consegui dormir: às 3h00 da manhã fui dar uma volta e acabei por ir ajudar ali outras pessoas que tinham fogo perto de casa”, contou ao Observador.
João Paulo só voltou ao trabalho na empresa de construção civil várias horas depois, já esta quarta-feira. Mas só lá esteve duas horas, pela manhã. Pela tarde, a notícia de que o fogo estava a chegar à zona onde vive a namorada, fizeram-no sair para “ajudar” novamente no combate às chamas, à semelhança do que fez no dia anterior. “Continuamos atrapalhados”, disse ao Observador.
O jovem de 22 anos não precisa de olhar para a fotografia para lhe vir à memória o “dia difícil” e a “correria”. Sente no corpo a luta do dia anterior: “Estou cheio de cãibras por andar a correr para baixo e para cima a tentar salvar pessoas, animais, ajudar a apagar fogos. “Vai ser um dia muito difícil”.