João Vale de Almeida esteve no castelo de Monsaraz a falar sobre diplomacia no âmbito do SummerCEmp, evento organizado pela Comissão Europeia. Confessou que vê a União Europeia como “alma gémea” das Nações Unidas, pois não há duas organizações no mundo com valores tão coincidentes. E o papel do embaixador é fazer a ponte entre ambas. Foi embaixador da UE em Washington entre 2010 e 2015, ano em que passou a ser embaixador da UE junto das Nações Unidas em Nova Iorque. Numa entrevista ao Observador, contou como os EUA mudaram a sua postura em relação à ONU com a entrada de Trump.
João Vale de Almeida acredita que a composição dos membros do Conselho de Segurança da ONU é algo que não vai mudar a curto prazo (mantendo-se os chamados P5 — EUA, Rússia, China, França e Reino Unido). Confessa que nunca falou com Trump (“não me pronuncio sobre o senhor Trump, porque não o conheço”, disse), mas chegou a estar com a família na Casa Branca ao lado de Barack Obama. O embaixador espera que a postura dos EUA em relação a soluções multilaterais seja “passageira”. Foi chefe de Durão Barroso, a quem junta António Guterres, como “expoentes máximos” da qualidade de portugueses no mundo.
É mais difícil ser embaixador da União Europeia na ONU com Donald Trump na Presidência?
É diferente. Eu servi em Washington com a Administração Obama, agora estou junto das Nações Unidas e tenho os EUA como um dos parceiros, não é direto interlocutor único, mas é um dos parceiros. E obviamente que é uma administração diferente, com prioridades diferentes. Mas temos de nos adaptar a essa nova realidade.
Os EUA agora preferem mais uma relação direta com os países europeus em vez de negociar com o bloco europeu em comparação com o tempo da Administração Obama?
O presidente Obama reconheceu, não imediatamente, mas ao fim de poucos anos, a relevância da União Europeia nas relações internacionais e na relação bilateral com os EUA. Por essa relação conseguimos lançar, quando eu ainda era embaixador em Washington, a parceria transatlântica para o comércio, TTIP [Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento], que era um projeto ambicioso e que partia da constatação de que a União Europeia era um parceiro importante para os EUA. Por razões diversas, esse acordo não foi para a frente, pelo menos ainda não. A Administração Trump tem uma posição um bocadinho diferente em relação a isso, questiona um bocadinho mais a relevância e a importância da União Europeia no comércio e nas relações bilaterais, mas acho que, do nosso lado, nunca vamos desistir de salientar a importância da relação transatlântica. Portanto, nas áreas onde podemos avançar, temos avançado. Numas avançamos, noutras temos de diminuir o nosso entusiasmo e ver qual é a evolução administração americana. Mas a América não se esgota no presidente. Os Estados americanos têm grande importância em termos políticos. Outros atores: as empresas americanas, o setor privado americano, a opinião pública americana, as universidades, os think thanks, há muitos.
O próprio Congresso.
Sim. Há muitos parceiros com os quais temos uma relação muito forte. Em Nova Iorque as coisas passam-se bem porque somos diplomatas civilizados e gerimos os nossos desacordos. Mas obviamente que há uma diferença entre as duas administrações que nós gerimos sempre com essa ideia, de que é fundamental para a União Europeia, como achamos para os EUA, e também para o mundo, que haja uma relação transatlântica.
Esteve várias vezes com Barack Obama. Tem alguma história com o antigo presidente dos EUA? E já, agora, já falou com o presidente Trump?
Nunca falei com o presidente Trump Tenho ótimas recordações do presidente Obama, quer no G8, no G20, quer na relação bilateral na Casa Branca. Quando apresentei credenciais, ele teve a amabilidade de convidar a família. Portanto, a minha mulher, os meus dois filhos, temos fotografias de família com o presidente Obama. Foi uma relação muito próxima de bastante qualidade. Não me prenuncio sobre o senhor Trump porque não o conheço.
Nicky Halley, era uma figura bastante mediática nos primeiros tempos da administração Trump. Entretanto, saiu, e foi substituída por um interino, Jonhatan Cohen. Isto é uma desconsideração de Trump pela ONU, uma espécie de “cadeira vazia”?
Eu tive uma relação muito boa com a minha ex-colega Nikki Halley. É uma excelente diplomata, é uma excelente política, vai ter certamente um futuro na política americana. Temos pena que o lugar esteja vago desde dezembro. Mas, enfim, a candidata passou já no Congresso, foi aprovada já. Portanto, eu espero que a minha nova colega americana chegue a Nova Iorque nas próximas semanas e com ela terei o mesmo tipo de relação que tinha com Nikki Halley. Ou seja: vamos trabalhar até onde podemos trabalhar. Vamos divergir onde temos que divergir, mas sem nunca abandonar a ideia de que há valores que nos são comuns, que há interesses estratégicos que também nos são comuns. Vamos tentar maximizar o campo do entendimento.
Mas voltou alguma tensão à ONU? No tempo de W. Bush houve momentos muito crispados. Com Chávèz a dizer na Assembleia Geral: ‘Cheira a enxofre, esteve aqui o diabo’. Isto depois de George W.Bush ter discursado. Esta tensão voltou? Há a ideia de que os EUA são menos friendly para as Nações Unidas?
Há uma alteração do discurso e também da prática dos Estados Unidos em relação às soluções multilaterais. Os EUA retiraram-se do Acordo de Paris, do Acordo Nuclear do Irão e não estão no Pacto Global para as Migrações. São três exemplos onde os EUA, que antes estavam empenhados em soluções multilaterais, neste momento têm alguma desconfiança, desapego, distância em relação às instâncias multilaterais. Espero que isso seja passageiro porque é fundamental no mundo de hoje reforçar as relações multilaterais.
Na intervenção do SummerCEmp dizia também que Donald Trump se interessou em conhecer o Presidente Juncker quando percebeu quem na Comissão era o grande interlocutor comercial. É difícil perceber quem é o interlocutor da União Europeia?
Nós somos um animal um bocadinho estranho. Não correspondemos àquele padrão tradicional de um Estado-nação, de um governo e um presidente ou um primeiro-ministro que o representa. Nós somos uma entidade mais híbrida, complexa porque temos ao mesmo tempo Estados-nação que correspondem ao tradicional e depois temos a junção desses Estados à volta da UE que tem competências próprias, que tem uma capacidade própria. Os Estados-membros transferiram parte da sua soberania para o quadro europeu. A política comercial é o exemplo mais típico, mas não é o único. Veja a política de concorrência, onde a União Europeia se ocupa de grandes empresas americanas.
E está a tentar taxá-las.
Enfim, nós temos responsabilidade nessa matéria e vamos assumi-la. Portanto, quando há uma manifestação concreta do papel da União Europeia, os americanos ou os outros países percebem melhor a relevância de contactar connosco, de estabelecer contactos connosco. É um bocadinho mais difícil de explicar, se quiser, mas quando é entendido conseguimos fazer muita coisa em conjunto e é esse o nosso objetivo.
Falava há pouco do fracasso do TTIP. Este acordo está definitivamente enterrado ou ainda há hipótese de entrar em vigor?
Com essa designação e com esse contexto, não. Mas continuamos empenhados num acordo comercial com os EUA. Há contactos em curso. Não há negociações formais, mas espero que isso possa ser retomado. Agora, como produto acabado o TTIP acho que não. Mas teve a função histórica de pôr em relevo a importância da cooperação comercial e em termos de regulação entre os dois lado do Atlântico.
O Brexit enfraquece a posição da UE junto das Nações Unidas, que em vez de representar 28, representa 27 ou até pode fortalecer?
O Brexit é uma má ideia. É a nossa posição. Gostaríamos que o Reino Unido continuasse na União Europeia, mas respeitamos a decisão democrática dos cidadãos britânicos, de sair, vamos ver o calendário e as modalidades. Isso está a ser discutido, mas não vou entrar por aí. À partida é uma má notícia para a UE e acho que é também uma má notícia para o Reino Unido, mas enfim, não sou britânico e respeito a posição dos britânicos. Eu acho que é também uma má notícia para o mundo porque o mundo precisa de blocos sólidos. E a UE, obviamente que sai enfraquecida do Brexit. Dito isto, o que eu tenho visto nos 27 é uma grande determinação de compensar o Brexit pelo esforço adicional de coesão e de presença internacional.
O único ponto positivo, então, é que promoveu a unidade entre os 27 que ficam?
Acho que sim. Se vir as sondagens na opinião pública dos 27, o apoio à UE aumentou desde o referendo britânico porque as pessoas no fundo verificaram que nada disto está garantido e que é arriscado entrar em processos que podem conduzir ao que se está a passar com o Reino Unido. E reforçaram o seu empenhamento e o seu apoio à União Europeia. Portanto, em todas as situações negativas, há sempre situações positivas. É isso que temos de utilizar no novo ciclo da União Europeia para consolidar e reafirmar a nossa vontade de trabalhar em conjunto no campo internacional, apesar do Reino Unido eventualmente sair da União Europeia.
Como é para um diplomata estar a fazer uma negociação e ser atropelado por um tweet com mensagem política que atropela o trabalho diplomático?
Acho que a diplomacia atual está confrontada com uma série de desafios. Um deles é esse: gerir a comunicação. Hoje com as redes sociais, o Twitter mas não só, com a facilidade de comunicação com os ciclos mediáticos de 24 horas, o papel dos diplomatas, a meu ver, é ainda mais importante, mas é diferente. Temos de nos adaptar a essa nova realidade, ser capaz de viver com isso. Por exemplo, a existência de atores não estatais na cena internacional que transformaram muito a relação entre os Estados. O caso do ISIS, do Daesh, que é uma entidade não estatal. Muitas vezes temos inimigos e não conhecemos a cara. A questão do terrorismo é um exemplo. Os grupos de Estados da UE lidam com essas situações. São desafios importantes para a diplomacia atual que têm de se adaptar e constantemente arranjar maneiras de lidar com essa situação.
Apesar de tudo, admitir que se quer comprar a Gronelândia no Twitter é um bocadinho menos grave que anexar a Crimeia, por exemplo, e mais fácil de resolver nas Nações Unidas.
Querer comprar a Gronelândia, apesar de tudo, foi uma declaração. A anexação da Crimeia foi uma realidade. Só aí há uma diferença fundamental.
Já que fala no Daesh, a guerra na Síria, por exemplo, mostra a ineficácia das Nações Unidas para responder a um guerra. Os vetos da Rússia e da China são responsáveis por não haver uma intervenção da ONU e assim há uma guerra que dura desde 2011.
As Nações Unidas são aquilo que os seus Estados-Membros quiserem que seja. O próprio secretário-geral está limitado na sua capacidade pela vontade ou não dos Estados-membros, dos membros do Conselho de Segurança e particularmente dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Portanto, são realidades que dependem muito dos próprios Estados. Nós, UE, temos cinco Estados membros entre os 15 do Conselho de Segurança.
É um terço, como dizia há pouco.
É um terço importante.
A Europa não representa isso em termos populacionais.
A organização das Nações Unidas produziu esse resultado, o nosso papel agora tem sido reforçar a coesão entre esses cinco Estados-membros incluindo o Reino Unido, por enquanto. E tentar que eles sejam uma força importante dentro do Conselho de Segurança. Mas há o problema do veto e qualquer um dos cinco primeiros pode exercer esse direito. E, portanto, quando isso acontece, as Nações Unidas ficam incapacitadas de avançar. Portanto, é um trabalho permanente de criação de consensos para que as Nações Unidas sejam o mais eficazes possível.
Vou cometer aqui uma inconfidência, porque usou este termo de comparação há pouco num registo mais informal, acredita que mais depressa mude a composição dos P5 do que o Sporting seja campeão?
É de facto uma grande inconfidência, muitos amigos sportinguista vão levar isso a mal. Temos de ser realistas. Não é amanhã que o Conselho de Segurança vai ser reformado em termos da sua composição. Vai levar algum tempo. Há várias teses. Dentro da própria UE há teses diferentes sobre isto. Portanto, não posso expressar uma posição da União Europeia sobre a reforma do Conselho de Segurança porque ela não existe. É um debate que vai continuar, mas tem como grande constrangimento o facto dos membros permanentes só mudam se quiserem todos. Portanto, há aí um constrangimento estrutural da reforma do Conselho de Segurança. Por isso é que nós temos, a minha equipa e os outros embaixadores, concentrado na maximização dos cinco europeus dentro dos 15 para conduzir as Nações Unidas na direção que achamos ser a certa. Com obviamente o apoio e colaboração ativa do secretário-geral.
Afeta a credibilidade democrática das Nações Unidas o facto de o segundo país mais populoso do mundo, que é a Índia, não ter assento permanente no Conselho de Segurança e, por exemplo, a França ou mesmo o Reino Unido com cerca de 70 milhões de habitantes continuarem com esse lugar?
Como sabe, as Nações Unidas são o resultado do equilíbrio do pós-guerra. E temos de respeitar essa realidade histórica. O que é fundamental, na nossa realidade atual, é maximizar o impacto da União Europeia junto das Nações Unidas para levar as Nações Unidas naquilo que nós consideramos ser a direção certa. E há grandes desafios a vencer. Entretanto, o debate vai continuar sobre a própria organização interna. Há uma reforma importante lançada pelo secretário-geral, que nós apoiamos, e é nisso que estamos concentrados.
A União Europeia podia ter um assento no Conselho de Segurança, como tem no G7? E mesmo que não tivesse poder de veto, ter uma voz permanente.
É uma hipótese de trabalho, que certamente eu incluiria muito positivamente, mas não depende da nossa vontade só. É um objetivo a manter no nosso horizonte. Mas tenho de ser realista na nossa função e o realismo diz-me que a prioridade neste momento é fazer com que os cinco membros que estão no Conselho de Segurança, países da União Europeia, trabalhem em conjunto, reflitam o máximo possível as posições da UE. E, nessa medida, tenham ainda o maior peso no Conselho de Segurança.
Recentemente o G7 reuniu sobre a situação da Amazónia, numa reunião onde não estava o Brasil nem outros países da Amazónia. Este debate, assumindo que a Amazónia é um problema mundial, não devia ser feito nas Nações Unidas?
Deixei Nova Iorque há umas semanas. Estou há umas semanas de férias, por isso não lhe posso dar a situação atual neste momento, mas julgo saber que o secretário-geral fez sugestões para que o assunto fosse discutido agora em setembro na Assembleia-Geral. De qualquer maneira há uma cimeira sobre o clima, importante, organizada pelo secretário-geral com todo o nosso apoio. Nós esperamos que possa ser mais uma plataforma de consolidação do esforço que representa o Acordo de Paris. Mas sabemos já hoje que o Acordo de Paris não é suficiente. Portanto, tudo o que tenha a ver com alterações climáticas, com política de ambiente, está neste momento no centro da política internacional, o que é uma evolução muito importante. Nos últimos 10/15 anos.
O facto de António Guterres se ter deixado fotografar com água pelos joelhos na revista Time é importante para chamar a atenção do mundo para o problema das alterações climáticas?
É fundamental o papel do secretário-geral, que ele aliás desempenha com grande qualidade. Tem um papel de consciência mundial. Tem de ser a referência em termos dos valores, dos desafios, da responsabilidade que todos nós temos de tratar bem o nosso planeta. Eu gosto muito daquela expressão do “não há planeta B”. E o secretário-geral tem feito uma campanha muito clara em relação a isso. E, como lhe dizia, vamos ter uma cimeira no final de setembro, em Nova Iorque, que eu espero que seja uma cimeira agora no final de setembro em Nova Iorque, que espero que seja uma cimeira que envie um sinal claro de que isto é a prioridade das prioridades.
Houve um momento em que tinha quatro candidatos da UE para secretário-geral da ONU e houve um momento em que percebeu que, de facto, a candidatura mais forte e que assumia a liderança para poder ganhar era a de António Guterres.
Houve mais que quatro, até. Obviamente que eu, enquanto embaixador da UE, tive de tratar com igual atenção todos os candidatos. O nosso objetivo era ter pela primeira vez na história das Nações Unidas um cidadão da UE como secretário-geral. Conseguimos esse objetivo. Fiquei particularmente grato por esse secretário-geral ser português e ser António Guterres.
Facilita o trabalho o facto de serem os dois portugueses?
Aí já entra por áreas… (risos).
Quando Barroso saiu da Comissão Europeia, o gabinete dele pôs uma música de despedida que era Go West, dos The Pet Shop Boys. E até se escreveram artigos de que podia ser hipótese e podia contar com o seu trabalho diplomático. Durão Barroso também teria sido um bom nome?
Como disse no painel [no SummerCEmp], as duas ilustrações mais óbvias do sucesso português na cena internacional foi a presidência da União Europeia por José Manuel Durão Barroso e o secretário-geral António Guterres. São dois expoentes máximos da capacidade portuguesa de ocupar funções importantes internacionais. Ele fez dois mandatos de grande complexidade. Eu fui chefe de gabinete dele no primeiro, portanto sou obviamente suspeito. Qualquer visão objetiva diz quer Durão Barroso, quer Guterres, na cena internacional contribuem para o prestígio de Portugal e isso tem uma repercussão muito positiva na capacidade do nosso país de pesar na cena internacional. Durão Barroso é um trunfo para Portugal como são muitos outros.
O Português pode ser língua oficial da ONU?
Eu espero que possa ser um dia. Neste momento ainda não é. Há muita gente empenhada em que o seja. Eu, enquanto embaixador da UE, quanto mais línguas comunitárias, melhor. Enquanto português, tenho obviamente uma simpatia especial por esse objetivo.