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John Le Carré
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John le Carré nasceu David John Moore Cornwell a 19 de outubro de 1931 e morreu a 12 de dezembro de 2020, aos 89 anos

Getty Images

John le Carré nasceu David John Moore Cornwell a 19 de outubro de 1931 e morreu a 12 de dezembro de 2020, aos 89 anos

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John le Carré, o espião-escritor que foi criado e treinado entre mentiras

Um pai vigarista, uma infância em fuga, a profissão de espião e a glória literária sob pseudónimo. John le Carré criou uma obra singular para se encontrar a ele próprio. Morreu com a missão cumprida.

“Keep calm and Le Carré On.” Quando o “New York Times” visitou em 2013 John Le Carré em Penzance — uma pequena cidade na Cornualha, a mais ocidental daquela região da Grã-Bretanha –, localidade onde o escritor viveu durante décadas numa casa na falésia, fotografou-o junto a um poster oferecido pelos filhos no seu escritório, poster esse que tinha esta frase inscrita, uma reinvenção da famosa “Keep Calm and Carry On”, do cartaz motivacional feito pelos britânicos durante a Segunda Guerra.

David John Moore Cornwell – era este o nome verdadeiro de Le Carré – definiu de tal maneira os romances de espionagem das últimas décadas que o Oxford English Dictionary lhe atribuiu a invenção da palavra “mole” (toupeira) para descrever um infiltrado, depois de A Toupeira, o seu romance de 1974 (publicado no inglês original com o título Tinker, Taylor, Soldier Spy).

Em 2011, o livro voltava ao centro das atenções com uma adaptação ao cinema (em 1979 foi transformado numa série da BBC de enorme sucesso, protagonizada por Alec Guinness) com Gary Oldman no papel de George Smiley, o protagonista da trilogia Karla, que deu fama mundial a Le Carré. Smiley, um agente secreto de meia-idade, brilhante, mas com uns quilos a mais e traído pela mulher, era “o antídoto para o James Bond” — palavras do próprio autor — que o mundo precisava. Um espião que não era dado à acção, muito menos ao físico, mas fazia manipular a informação com uma habilidade rara.

John le Carré em 1965, já depois de publicado o enorme sucesso que lhe ditou o futuro, "O Espião que Veio do Frio"

Getty Images

“Os romances do Smiley são a chave para compreender os meados do século XX”, descrevia a escritora Margaret Atwood no domingo no Twitter, num post onde lamentava a morte de John Le Carré. Philip Roth já considerara Um Espião Perfeito, lançado em 1986, “o melhor romance do pós-guerra”. O escritor e ex-agente secreto morreu no sábado aos 89 anos na Cornualha com uma pneumonia. A morte foi anunciada no dia seguinte pela sua editora, parte do grupo Penguin Random House.

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Jonny Geller, seu agente literário durante 15 anos, recorda-o como um “indiscutível gigante da literatura inglesa que definiu a era da Guerra Fria”. “A sua falta será sentida por todos os amantes de livros e todos os interessados na condição humana. Perdemos uma grande figura da literatura inglesa, um homem de grande bondade, humor e inteligência.”

George Smiley. O funcionário que teve a sorte de ser o herói certo, para a Guerra Fria e para John le Carré

Autor de mais de duas dezenas de livros – dez deles adaptados ao cinema, como “O Fiel Jardineiro”, de 2005, “O Alfaiate do Panamá”, de 2001, ou “A Casa da Rússia”, de 1990 –, John le Carré nunca quis concorrer a prémios literários. Aliás, quando em 2011 foi nomeado para o Man Booker International Prize, no valor de aproximadamente 65 mil euros, pediu para ser retirado da shortlist. E são muitos os que, nos últimos dias, lembraram que a maior virtude de Le Carré não estava na eventual mestria literária — que alguns lhe reconheciam e outros diziam estar ausente da sua escrita — mas sim na arte difícil de contar boas histórias, usando para tal um acesso privilegiado à realidade que transformava em ficção: a espionagem, os serviços secretos e o valor da informação guardada a sete chaves.

Apesar de não querer este reconhecimento, muitos consideram que elevou o género de espionagem a outro nível. Em 2013, Ian McEwan dizia numa entrevista ao “Telegraph” que Le Carré seria recordado como “talvez o romancista mais significativo da segunda metade do século 20 no Reino Unido”: “Traçou o nosso declínio e descreveu a natureza das nossas burocracias como mais ninguém fez”, disse o escritor inglês, reconhecendo em Le Carré a qualidade de observação do paradigma de ser britânico.

“Sou um mentiroso”, diz Le Carré, citado na biografia de Sisman. “Nasci para mentir, fui criado para isso, treinado para isso por uma indústria que vive da mentira, e pratiquei isso como romancista.” Na biografia, Sisman compara a infância atribulada do escritor, marcada por uma profunda mágoa familiar, ao seu romance mais autobiográfico, "Um Espião Perfeito".

Depois da sua morte, o site “Vulture” dava um conselho a quem se quisesse aventurar pela primeira vez nos livros protagonizados por George Smiley (todos traduzidos para português), atualizando um publicação antiga: “Não precisam de ser lidos por ordem cronológica e, francamente, nem deveriam”, lê-se naquela secção da revista New York. “É muito mais recompensador saltar, passar as ‘experiências’ (o segundo livro é mais um policial do que um livro de espionagem) e as sequelas, até ficar totalmente viciado.”

O artigo aconselha começar por O Espião Que Veio do Frio, de 1963, um dos seus bestsellers – para o jornalista e escritor Graham Greene é “o melhor livro de espionagem que alguma vez leu” –, continuar com A Toupeira, de 1974, e voltar a Chamada Para a Morte, o seu primeiro livro, escrito em 1961, onde apresenta pela primeira vez George Smiley e o “Circo”, a sua versão fictícia dos serviços secretos britânicos, baseada no MI6, o Departamento de Inteligência do Serviço Secreto Britânico, onde trabalhou.

Se apenas recorresse à infância, passada em Dorset, no sudoeste da Inglaterra (terra que gente tão ilustre como William Barnes ou PJ Harvey), Le Carré já teria inspiração para várias obras. Aliás, muitos episódios são contados na sua própria biografia, O Túnel de Pombos, lançada em 2016, e enchem a primeira metade de John Le Carré: The Biography, publicada no ano anterior por Adam Sisman, depois de mais de 50 horas de entrevista e acesso aos arquivos cuidadosamente guardados pelo escritor.

Morreu o escritor John le Carré, o “gigante incontestável da literatura britânica”

No livro, Ronnie Cornwell, o seu pai, é descrito pelo irmão mais velho de Le Carré, Tony (que morreu em 2017), como um homem “que punha uma mão no teu ombro e outra no teu bolso”. Ronnie Cornwell foi preso várias vezes por fraude. Trabalhava na especulação imobiliária, mas esteve envolvido em vigarices de todo o género, atividade que o levou a acumular dívidas: “O mercado negro do tempo da guerra, produtos medicinais, comércio de moeda, armas em circulação na Indonésia, um esquema de apostas de futebol em Singapura”, enumera um artigo sobre o livro.

John Le Carre At Home In Cornwall

Em 1983 na Cornualha, a região de Inglaterra onde encontrou a morada que lhe deu conforto maior

Gamma-Rapho via Getty Images

Chegou até a vender quadros de uma mulher rica em Viena, com o pretexto de que os iria limpar. John le Carré confirma que viveram em extremos, como “milionários ou indigentes”. A sua mãe, Olive, abandonou a família aos cinco anos e foi viver com outro homem. O pai disse-lhe que tinha morrido e só voltariam a ver-se quando o escritor tinha 21 anos – apesar de Olive, ocasionalmente, ainda se encontrar com o seu pai em Londres, por quem ainda estaria apaixonada. Tanto Le Carré como o irmão Tony acabaram por construir uma fórmula de observação-conclusão muito especial e pessoa, uma espécie de espionagem na própria casa, como forma de tentar descodificar o que se passava num ambiente que já não era o deles.

“Sou um mentiroso”, diz Le Carré, citado na biografia de Sisman. “Nasci para mentir, fui criado para isso, treinado para isso por uma indústria que vive da mentira, e pratiquei isso como romancista.” Na biografia, Sisman compara a infância atribulada do escritor, marcada por uma profunda mágoa familiar, ao seu romance mais autobiográfico, Um Espião Perfeito. Aliás, o biógrafo considera mesmo a personagem de George Smiley a figura paternal que Le Carré não teve.

De “O Espião que Saiu do Frio” à “Toupeira”: John le Carré tinha tudo o que o cinema e a televisão queriam

No livro Um Espião Perfeito, Magnus Pym é um agente duplo com um pai vigarista, claramente baseado em Ronnie Cornwell. O pai do autor ameaçou processá-lo pelas parecenças e Le Carré pagou-lhe perto de 12 mil euros para que desistisse. Ronnie Cornwell assinou cópias dos seus livros na qualidade de pai do autor e começou a apresentar-se publicamente como Ron Le Carré, apesar das relações cortadas com o filho. Quando morreu, o escritor pagou-lhe o funeral – mas não esteve presente nas cerimónias fúnebres.

John Le Carré frequentou um colégio interno que odiava e aos 16 anos mudou-se para a Suíça para estudar línguas modernas. Foi aí que viria a ser recrutado por um espião britânico para trabalhar para o MI5 e depois para o MI6, experiências que viriam a dar ainda mais credibilidade aos seus livros. Na biografia, Sisman diz que Le Carré preferiu não entrar em grandes detalhes sobre as suas funções como agente secreto. Mas sabemos que integrou equipas de espionagem na Áustria, quando tinha vinte e poucos anos. Sabemos que olhava com respeito para as armas, com cuidado e reconhecendo-lhes perigo. E sabemos que era respeitador das hierarquias, que as reconhecia como elemento fundamental — ou talvez inegável e insuperável — de uma vida em serviço secreto.

Num artigo escrito na primeira pessoa na New Yorker em, 2008, Le Carré explicava que o sucesso dos seus livros estava na vontade dos leitores em acreditar nos espionagem que o autor criava. E o autor, respeitador e inteligente, fez bom uso desse conhecimento.

No entanto, e como nutria “aspirações artísticas” desde criança, ia “enlouquecendo de tédio” no trabalho — Le Carré chegou a afirmar que um trabalho de espionagem bem feito nunca provoca muito alarido,muitas vezes não acontece absolutamente nada, porque o fundamental é trabalhar a informação — e começou a escrever “Chamada Para a Morte”, o seu primeiro livro com o pseudónimo que o tornaria famoso. Porque não podia usar o seu nome verdadeiro, fixou o alter ego que lhe deu fama (um segredo rapidamente desfeito com o sucesso de O Espião que Veio do Frio, de 1964). Ao mesmo tempo, respirava de alívio, como tantas vezes confessou, porque finalmente começava a deixar de mentir.

A contra-espionagem tornou-se também um dos seus objetos de escrita favoritos (ele que integrou o MI5, o departamento de serviços secretos britânicos especialmente dedicado a tal tarefa). Le Carré reconheceu em diferentes entrevistas ao longo da vida que entre as décadas de 50 e 70, um dos grandes “vírus” dos serviços secretos era a suspeita de que qualquer funcionário fosse um espião ao serviço do inimigo. De todas estas experiências tirou proveitos. “Quando ficou claro que O Espião que Veio do Frio [terceiro livro], seria um sucesso financeiro, Cornwell deixou o seu emprego no governo”, lê-se na biografia.

“Agente em Campo”: o último livro de John le Carré e a ficção da “resistência”

Num artigo na “New Yorker” de 1999, o autor Timothy Garton Ash escreve que a espionagem não é o verdadeiro assunto dos seus livros. “É o labirinto infinitamente enganador das relações humanas: a traição que é uma espécie de amor, a mentira que é uma espécie de verdade, homens bons a servir causas más e homens maus a servir boas causas.” A psicologia humana, aliás, pode ser entendida como o verdadeiro combustível das suas histórias. Num artigo escrito na primeira pessoa na New Yorker em, 2008, Le Carré explicava que o sucesso dos seus livros estava na vontade dos leitores em acreditar nos espionagem que o autor criava. E o autor, respeitador e inteligente, fez bom uso desse conhecimento.

John Le Carre

Nos anos 90, já depois da queda do Muro de Berlim, após o fim da Guerra Fria, eventos históricos que o obrigaram a encontrar novos cenários para as suas histórias

Getty Images

John Le Carré, casado por duas vezes, deixou quatro filhos, um deles também escritor, Nick Harkaway, e vários netos. Mais recentemente, afirmou-se como um dos grandes críticos do Brexit, que considerava “a maior idiotice perpetrada pelo Reino Unido”, dizia ao “El Pais” o ano passado. E foi também um dos nomes mais mediáticos a criticar a eleição de Donald Trump como Presidente dos EUA. Antes, muito antes, foi um constante crítico da forma britânica de governar. Apontou dedos a hábitos de corrupção e aproveitou em boa parte o fim da guerra fria para desbravar diferentes cenários nas suas histórias, mais ou menos ligados com a herança, a atualidade e o futuro da ação da britânica no mundo (ele que chegou a recusar uma distinção das mãos da então primeira ministra Margaret Thatcher): o tráfico de armas e de droga (O Gerente da Noite) ou a exploração de África, mesmo após a queda dos governos oficialmente coloniais (O Fiel Jardineiro). Em Amigos até Ao Fim (2003) referiu-se mesmo às políticas de Tony Blair e à aliança que levaria à invasão do Iraque. Em 2008 lançou Um Homem Muito Procurado, inspirado pelo mundo pós-11 de Setembro e pelo desamparo dos muçulmanos pelo mundo.

Em 2016, em entrevista ao “Expresso”, mostrava-se sem esperança no mundo. “Continuo à procura dela para perceber onde é que os meus filhos e os meus netos irão viver”, dizia. “A grande desvantagem de ser velho é perceber que pouco ou nada muda.”

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