Apesar de ser praticamente desconhecido em Portugal, Jón Kalman Stefánsson é considerado um das vozes mais importantes da literatura europeia. Nascido em 1963 em Reiquiavique, na longínqua Islândia, terra de pescadores e de heróis míticos, como Gunnarr, Njál ou Egil, Jón Kalman passou para os seus livros aquilo que conhece melhor — as aldeias, as paisagens frias, a neve. Apesar de a sua terra natal ser o pano de fundo da sua famosa trilogia, iniciada em 2010 com Paraíso e Inferno (cujo último volume, O Coração do Homem, foi editado recentemente em Portugal pela Cavalo de Ferro), Jón nunca pretendeu fazer um retrato histórico da Islândia do século XIX. É que o tempo e o lugar não interessam ao autor — a paisagem é apenas paisagem, a neve é apenas neve. O que interessa é o que está no interior e, aí, somos todos iguais.
Encontrámo-nos com Jón Kalman no âmbito do FOLIO — Festival Literário Internacional de Óbidos. Durante a conversa, numa esplanada de uma das muitas ruas estreitas da vila histórica, falou-se sobre a importância da literatura, da leitura e de José Saramago, “um dos meus favoritos”. Porque “se um livro for bom, nunca acaba”. Segue-nos até ao fim.
O Coração do Homem foi editado muito recentemente em Portugal. É o livro final da trilogia que iniciou em 2010 com Paraíso e Inferno, e que tem como tema algo que é muito próximo de todos os islandeses — a vida dos pescadores, a natureza. Porque é que decidiu escrever uma história assim?
Costuma dizer-se que é a história que escolhe o autor, e não o autor que escolhe a história. Foi o que aconteceu comigo. Escrevi 11 romances, mas nunca escrevi um livro que planeei escrever. E estou contente com isso porque acho que é errado decidir atempadamente o que escrever. Escrever é encontrar algo inesperado. Quando se escreve não se pensa de forma lógica, e se pensarmos assim mais vale irmos trabalhar para um banco. Estamos constantemente a lidar com sentimentos, atmosferas, memórias e com as aspirações das pessoas. Não podemos decidir ou controlar isso tudo.
É preciso saber ir com a corrente?
Sim, de certa forma. Tento ter controlo sobre a história, mas muitas vezes só consigo ter controlo quando estou a reler e a editar. Mas, surpreendentemente — ou não — é a história que decide o seu próprio rumo. Às vezes tento mudar isso e como a história vai terminar mas, no final, nunca funciona. Existe algo que não é para nós decidirmos. Mas é claro que faço alguma coisa [risos]. Mas inicialmente queria escrever uma história completamente diferente.
Que história é que queria contar?
Fiz um plano quando estava a restruturar a história e a ler sobre este tempo [o século XIX]. Tive todo o tipo de ideias, tirei notas e tentei criar um plano. Mas, assim que comecei a escrever, transformou-se em fumo. Lembro-me vagamente que, anos depois de ter escrito os livros, procurei as notas e fiquei satisfeito [por não as ter seguido]. Fui muito inteligente. [O plano] era muito ingénuo e terrivelmente mau. Fiquei contente por não ter conseguido fazer o que queria. Era tão mau que eu esforço-me para me esquecer dele.
Mas sabia que queria contar histórias sobre o destino e a vida das pessoas. Penso que, geralmente, escrevo sobre o quão difícil é estar vivo. Não interessa em que altura estamos ou como é que é o tempo — nunca é fácil ser um ser humano. É uma coisa básica — os sentimentos e querer encontrar um caminho na vida.
É por isso que a personagem principal, o rapaz órfão, não tem um nome? Porque somos todos iguais?
Depois de ter escrito umas 50, 60 páginas, apercebi-me de que ele não tinha nome. Então pensei: “Será que devia ter um nome?”, mas cinco segundos depois apercebi-me que não, de que não precisava. Não me sentei a pensar nos prós e contras de ter um nome — decidi e segui em frente. Depois apercebi-me de que tinha tomado a decisão certa. Se não tivesse um nome, então tinha todos os nomes. Os leitores podem dar-lhe o nome que quiserem.
Os seus livros têm algumas semelhanças com as sagas islandesas — seguem a história de uma personagem que tenta construir o seu próprio caminho, como referiu ainda há pouco. Foi aí que foi buscar inspiração para esta trilogia?
Sim e não. As sagas são um clássico da literatura islandesa, são a base dos nossos costumes. Acho que é por causa das sagas que hoje falamos islandês. As pessoas leram-nas durante séculos.
E continuam a ser lidas hoje em dia? Os mais novos têm oportunidade de as estudar na escola?
Têm de ler pelo menos uma na escola. Normalmente é a Saga de Njál, a Saga de Egil ou a Saga de Grettis. Mas eram mais lidas há 100 anos. Contava-se a história como se fosse uma história de ação. Eram os filmes de ação daquele tempo.
Há realmente muita ação, muitas mortes.
Sim, mesmo muitas. Há um Bruce Willis e um Clint Eastwood em cada história. Podemos ler a Saga de Njál dessa forma, mas também podemos lê-la de outra maneira. É um livro muito profundo, que devemos ler devagar. É uma coisa que não podemos perder — o hábito de ler devagar. É muito importante, porque se não o fizermos passa-nos tudo ao lado. É como estar sempre a fazer amor à pressa. Não é divertido.
A Saga de Njál é uma das mais importantes da Islândia. Porquê?
É uma das melhores. É uma história fácil, com heróis trágicos e bons lutadores, mas também pode ser uma crítica social. Uma das personagens, Gunnarr, é o grande herói da Islândia. Mas ele é estúpido, e podemos ler o livro partindo do princípio que o autor está a gozar com ele. Podemos lê-lo das duas maneiras. É um livro fantástico. A boa literatura é assim, podemos lê-la de várias maneiras. É errado dizer que lemos um livro porque, se for bom, nunca acaba. Vai acompanhar-nos. É uma das razões porque a literatura pode ser importante. Se lermos um bom livro ou um bom poema e ele nos afetar é porque é bom. Entra dentro de nós e passa a fazer parte da nossa vida — vamos sempre lembrar-nos dele. Pode ajudar-nos ou não, mas passa a ser parte da nossa vida. E é por isso que, em parte, é importante ler. É essencial.
Às vezes os livros também nos mudam.
Deviam fazê-lo. Às vezes mudam coisas que não deviam mudar, mas isso acontece com tudo. Porquê escrever se não queremos mudar o mundo?
É por isso que escreve?
Bem, gosto de acreditar que a literatura importa. Escrevo porque tenho de escrever. Um jovem autor perguntou ao poeta [Rainer Maria] Rilke como é que podia saber se era um escritor. Ele, numa carta muito famosa, respondeu-lhe que se ele fosse infeliz sem a escrita é porque era um escritor. Acontece o mesmo comigo. Tenho de escrever, está-me no sangue. Penso que é o meu dever — escrever, encontrar uma maneira de entrar dentro do leitor. Não quero escrever um livro que se lê e depois se esquece. Claro que isso pode acontecer, mas tento evitá-lo.
Neste livro, O Coração do Homem, escreveu que “a arte é perigosa” porque pode fazer com que sonhemos com uma vida melhor. O que é que quis dizer com isso?
Porque às vezes evitamos coisas que podem afetar-nos, mudar-nos. Tentamos seguir um caminho, temos um trabalho e uma vida com a qual estamos contentes. Mas uma das funções da literatura — e de toda a arte — é fazer com que perguntemos constantemente a nós próprios se o que está a acontecer é real ou se devemos desistir de tudo — porque é que queríamos ir para a montanha mas apenas subimos o monte. Porquê? Porque não tínhamos energia para subir a montanha? Estamos mesmo satisfeitos com a nossa vida? Estamos mesmo felizes?
A literatura desempenha um papel muito importante nesta trilogia. É por causa disso? Porque nos faz questionar o caminho que estamos a tentar seguir?
Neste caso, é por causa da personagem principal — o rapaz — que está no meio de livros que o seguem para onde quer que vá. Na Islândia daquele tempo existiam muitas quintas remotas e muitas das pessoas que lá viviam tinham sede de literatura. Procuravam livros, revistas, que naquele tempo publicavam muitas histórias.
Porque estavam muito isoladas?
Sim, sim. Ler era uma forma de romperem esse isolamento. Sempre pensei que isso era bonito, mas também diz muito sobre o que a literatura pode fazer — pode quebrar o isolamento, pode expandir horizontes. E acho que nunca foi tão importante como hoje. Vemos que algumas nações estão lentamente — ou não tão lentamente — a transformar-se em quintas isoladas, sem ligação. Ou não querem tê-la. Se estivermos isolados e não tivermos capacidade de nos colocarmos na posição das outras pessoas, as nossas mentes fecham-se. E quando nos tornamos mentes fechadas é muito mais fácil ter ideias erradas sobre os outros, que é o que está a acontecer na Europa e na América. Donald Trump é um exemplo, a Hungria é outro. E na Polónia, uma nação de poetas, de muitos bons poetas (nenhuma nação tem tantos bons poetas como a Polónia), o governo é de extrema-direita e muito fechado. Isto acontece, em parte, porque as pessoas não são suficientemente curiosas.
Se somos curiosos, lemos. E se lemos, entendemos que as pessoas são iguais em toda a parte. Se as crianças na Europa e nos Estados Unidos lessem livros do mundo árabe, e as crianças do mundo árabe lessem livros da Europa e dos Estados Unidos, talvez não tivéssemos tantos problemas. A literatura, os livros, a leitura podem ajudar-nos a perceber o que é simples e muito óbvio — as pessoas são iguais em toda a parte. Não são precisos fundamentalismos, que estão a criar uma nuvem sobre a Europa. É um grande perigo.
Como é que encara esta situação?
É fácil esquecermo-nos dela no nosso dia-a-dia. Só a possibilidade de uma pessoa como o Donald Trump vir a ser presidente dos Estados Unidos diz alguma coisa — diz que estamos a viver numa altura estranha da nossa História. A popularidade de Marine Le Pen está a crescer em França e a de outros partidos como o dela também. Na Islândia também temos mensagens de ódio. Não são tão frequentes, mas existem. E a conversa é sempre a mesma — que aquelas pessoas não como nós e que, por isso, são perigosas. A literatura pode desempenhar um papel muito importante além do prazer que um bom livro pode dar. Por exemplo, na Alemanha 50% dos livros são traduzidos. Nos Estados Unidos, 1,5%. E isso diz alguma coisa sobre a forma como encaramos o mundo. Por isso é que existe tanta dificuldade em nos colocarmos no papel dos outros.
Sente que tem a obrigação de dizer ao mundo que a literatura é importante e que as pessoas deviam ler mais?
Devia ser importante, e não apenas para nosso próprio prazer. Um bom livro, um bom poema, pode ajudar-nos a lidar com os nossos sentimentos — podem ter um papel, um significado mais profundo. A oportunidade está lá, na literatura. Temos as ferramentas — as palavras. As palavras podem afetar tudo.
Mas às vezes as pessoas não sabem (ou não querem) compreender o que está para além das palavras, para além da história. Nesse caso, talvez precisem de ser ensinadas a fazê-lo.
Claro que algumas pessoas não foram feitas para ler livros, não há nada que se possa fazer em relação a isso. São boas noutras coisas. Mas depois há aquelas que dizem que é difícil ler poesia, ou que não têm tempo, mas depois são capazes de ler um romance policial com 500 páginas.
Muitas pessoas pensam que é difícil ler porque não tiveram um bom professor na escola, que os deixou ler aquilo que queriam ler. Existem muitos bons livros que também são divertidos. Se dermos um livro divertido a um jovem de 13, 14 anos, ele nunca mais se vai esquecer dele e, muito provavelmente, vai querer ler outra vez. Mas, por outro lado, se lhe dermos um livro que é pesado, aborrecido, sério, ele vai dizer que não quer voltar a ler. Um bom professor também pode mudar o mundo.
Falou de poesia. A primeira obra que publicou foi um livro de poemas. Ainda escreve poesia?
Infelizmente não. Vai tudo para os meus romances.
Acha que é por isso que costumam dizer que a sua escrita é muito poética?
Sim, talvez escreva romances porque já não sou capaz de escrever poemas. Em parte, uso a técnica da poesia para escrever romances. A resposta mais simples e honesta que posso dar é que escrevo como penso. É a única forma possível de escrever.
Porque é que já não consegue escrever poesia?
Talvez a ficção tenha tomado conta de tudo, ou então senti que sou melhor ficcionista do que poeta. Apercebi-me ao ler bons poetas que eles são muito melhores do que eu. Talvez faça coisas melhores na ficção. Mas, nos meus sonhos, quando for mais velho, vou sentar-me em casa e escrever poesia. É a coisa mais bonita que conheço — escrever poesia.
Falou sobre romances policiais. Porque é que acha que hoje em dia são tão populares, especialmente os nórdicos?
A razão principal é que são fáceis de ler. Não os leio, mas não tenho nada contra eles. Mas acho ótimo que as pessoas estejam a ler e sei que muitos deles são bons. A coisa mais importante num romance policial é a história e, se esta for limpa e direta, o leitor pode relaxar e ler sem fazer um grande esforço (e às vezes é ótimo relaxar). Mas é um pouco triste que nunca façam um esforço porque parte da magia da poesia e da ficção literária está no facto de o leitor também poder “escrever” enquanto lê. O leitor põe alguma coisa de si nos livros. A literatura existe porque há um leitor e um escritor — a literatura é o lugar onde os dois se encontram. Não existe literatura sem leitores.
Penso que muitos romances policiais também são incrivelmente populares porque distraem. E, claro, falam de assassinatos. Basta olhar para os romanos: o que é que eles faziam para manterem as multidões felizes? Construíam coliseus, matadouros. Para manterem as pessoas felizes, criavam formas de entretenimento. De certa forma, é o que acontece com os romances policiais, com os programas de televisão. Servem para nos entreterem. Se estivermos entretidos, não pensamos nas coisas. Mas tenho de salientar que os bons romances policiais podem ser importantes porque lidam com a nossa sociedade. Não falam apenas de assassinos em série, falam sobre a nossa sociedade, e isso pode ser importante.
Porque é que acha que há tantos escritores nórdicos, especialmente suecos, a virar-se para este tipo de literatura?
Se calhar porque há muitos criminosos na Suécia [risos]. Quero dizer, deve-se em parte às modas. Quando uma coisa começa a vender bem, é como uma bola de neve — vai-se tornando maior e maior. As editoras aperceberam-se que os policiais nórdicos vendem bem e vão à procura deles. E os autores também se aperceberam que, se escreverem romances policiais, têm um mercado maior ao seu dispor.
Muitas vezes os livros são apresentados como “mais um grande policial de um grande autor sueco”.
Sim, e depois podemos ir ao Ikea comprar mobília sueca. Vê? Os suecos dominam o mundo.
Pode sentar-se na sua cadeira sueca…
…E ler um romance sueco. Eles controlam tudo! Devíamos estar preocupados com os suecos [risos].
Mas isso não pode criar uma ideia errada do que é a literatura nórdica?
Há diferentes teorias. Há quem acredite que os romances policiais nórdicos podem abrir caminho para outros livros, mas há quem ache que não, que é ao contrário, que fecham o caminho porque as pessoas que leem romances policiais só querem ler romances policiais. É difícil dizer qual é a teoria certa, mas é um bocadinho triste que um género tome conta de tudo. Existem muitos bons autores na Suécia, na Noruega, na Islândia, etc. E era bom que as pessoas fossem à procura deles.
Mas torna-se difícil se não forem traduzidos.
Sim, é o problema das modas. O negócio da edição mudou um pouco nos últimos 20, 30 anos — os romances policiais e os bestsellers tomaram conta de tudo. É uma pena, mas os leitores podem mudar isso — têm poder para determinar que livros são editados. Se uma editora publica um livro da Islândia ou da Dinamarca e ninguém o compra, para quê continuar a editá-lo? O leitor também tem a possibilidade de mudar o que é publicado.
Como é que é o meio literário na Islândia e nos outros países nórdicos? É uma realidade distante para a maioria dos leitores portugueses.
É um meio muito vivo, e é diferente de país para país. A Islândia tem um, a Dinamarca outro, etc. Mas todos os países têm uma forte tradição editorial. Quase que exigem ao Estado que os ajude de alguma forma. Mas as mentalidades também estão cada vez mais fechadas. Os romances policiais e os bestsellers são, obviamente, os mais populares e as pessoas estão a ler cada vez menos. A internet e os jogos para as crianças estão a ameaçar a taxa de leitura, que está a descer. Mas, para mim, é difícil fazer uma comparação com Portugal, porque não conheço o meio. Para nós, Portugal é a terra da literatura, de Pessoa, de Saramago.
Então não pensam na praia quando pensam em Portugal?
Bem, eu não penso, mas eu não sou como a maioria. Odeio a praia. Mas vocês têm esta aura literária por causa de Pessoa e de Saramago.
São dois autores de que gosta?
Saramago é um dos meus autores favoritos e Pessoa é Pessoa. É um mundo, um mundo único. É como um país com muitos países dentro de si.
Há quem diga que ele é uma constelação, porque ele tinha muitas pessoas dentro dele.
Sim, ele é único. Não existe ninguém como ele. Se calhar veio do espaço [risos]. Não é de Portugal!
E do que é que gosta mais em Saramago?
Do estilo, da forma como ele conta a história, do poder da linguagem e como o estilo é, muitas vezes, mais importante do que a história. Com autores como Saramago não se está apenas a ler uma história, também se está a apanhar muitas coisas diferentes — todos os pequenos e infinitos detalhes que o seu estilo traz. Livros escritos por um autor como ele têm um grande impacto sobre quem os lê. Pode ser um grande prazer lê-los — lê-los devagar — porque nos tocam. Uma história simples toca de uma forma simples, mas livros simples como os dele e escritos por bons autores como ele podem tocar de uma forma mais profunda. Não me dou ao trabalho de ler livros que não toquem de uma forma mais profunda.
O Coração do Homem, editado originalmente em 2015, foi publicado este mês de setembro em Portugal, pela Cavalo de Ferro. Os dois primeiros livros da trilogia, Paraíso e Inferno e A Tristeza dos Anjos, encontram-se traduzidos em português e publicados pela mesma editora.