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"Aconteciam sempre coisas estranhíssimas quando o Jorge Silva Melo apresentava filmes pela primeira vez. Dizia-me 'vais ver, não vai acontecer'", lembra MAria João Madeira sobre os acasos inesperados em volta de Jorge Silva Melo
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"Aconteciam sempre coisas estranhíssimas quando o Jorge Silva Melo apresentava filmes pela primeira vez. Dizia-me 'vais ver, não vai acontecer'", lembra MAria João Madeira sobre os acasos inesperados em volta de Jorge Silva Melo

"Aconteciam sempre coisas estranhíssimas quando o Jorge Silva Melo apresentava filmes pela primeira vez. Dizia-me 'vais ver, não vai acontecer'", lembra MAria João Madeira sobre os acasos inesperados em volta de Jorge Silva Melo

Jorge Silva Melo: um rapaz do cinema

O ciclo passou na Cinemateca em 2019, o mesmo que deu origem ao catálogo sobre a obra do estudante de cinema que acabou a viver a para o teatro. O trabalho de arquivo e análise é agora lançado.

Jorge Silva Melo fazia a apresentação do filme, deixava a sala e ficava no átrio à conversa até que os espectadores saíssem da sessão. Ficava horas a conversar e integrava quem quisesse juntar-se. Formavam-se rodas improvisadas de debate e discussão. Assim na Cinemateca Portuguesa como nos Artistas Unidos. Depois de assistirem aos ensaios dos espectáculos que estavam prestes a estrear-se, os jornalistas eram – e são – convidados a sentar-se nas cadeiras dispostas em círculo, colocadas pela produção na entrada do espaço da companhia, na Rua da Escola Politécnica, para poderem, em conjunto, entrevistar o encenador. É um dos legados de Silva Melo, fundador dos Artistas Unidos.

Foi por essa razão que a programadora de retrospetivas da Cinemateca, Maria João Madeira, decidiu incluir no catálogo agora editado acerca do trabalho de cinema de Jorge Silva Melo (JSM) uma secção, no final, onde aparecem fotos de um desses momentos de convívio após as sessões que várias vezes apresentou na Rua Barata Salgueiro, fossem de filmes seus ou de outros. No caso, as imagens são de 10 de março de 2020, na sessão de abertura da retrospetiva que lhe era dedicada, intitulada Viver Amanhã Como Hoje. Havia, na essência de JSM, uma ideia de coletivo. “Ele gostava muito de conversar, e isso era genuíno nele. Ouvia os outros”, refere Maria João Madeira. “Ele era genuinamente interessado.”

Este catálogo dedicado à obra cinematográfica de JSM, igualmente intitulado Jorge Silva Melo – Viver Amanhã Como Hoje, começou a ser pensado em 2019, juntamente com a retrospetiva que a Cinemateca ia fazer dos filmes que realizou, juntando-lhe uma carta branca para escolher uma série de obras de cinema que fossem importantes na sua vida. O ciclo iria ter início em março de 2020, mês em que o país (e o mundo) entrou em confinamento devido à pandemia de Covid-19.

Imagens dos filmes "Agosto" (1988) e "Ninguém duas Vezes" (1984), obras de ficção realizadas por Jorge Silva Melo

“À medida que nos íamos aproximando da data, íamos ouvindo as notícias”, comenta a programadora, que teve a seu cargo a organização do livro e é também a autora dos textos não assinados. “E começámos a brincar os dois. Aliás, porque aconteciam sempre coisas estranhíssimas quando o Jorge Silva Melo apresentava filmes pela primeira vez. Dizia-me ‘vais ver, não vai acontecer’.” Começaram a retrospetiva e três dias depois estava a ser suspensa. “Fizemos a primeira sessão com ele, a segunda… Mas, ao terceiro dia, na sessão do Ninguém Duas Vezes, ele já não veio porque o médico já o tinha aconselhado a resguardar-se.” Maria João Madeira apresentou juntamente com Miguel Lobo Antunes essa terceira sessão, mas, no dia seguinte, ficou toda a gente em casa. E durante algum tempo.

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Ficou claro na cabeça de Maria João Madeira de que não iriam retomar a retrospetiva no ponto em que tinha ficado. A mostra iria ser recomeçada. E, apesar de, desde o início, programadora e autor terem percebido que o catálogo não iria estar pronto a tempo de ser lançado aquando do reinício da retrospetiva, que veio a acontecer em maio de 2022, também não fazia sentido fazer a mostra esperar pela finalização do livro. “Havia um sentimento de urgência, porque a mostra estava pensada havia bastante tempo”, clarifica Maria João Madeira. “Se fosse suposto alguma coisa esperar seria o catálogo e não a retrospetiva. Também por questões muito pragmáticas, organizativas. JSM era uma pessoa cheia de atividades, tinha uma agenda complicada. E, portanto, o que tentámos foi encaixar a retrospetiva no momento em que fosse possível para ele, para poder acompanhá-la o mais possível.” A retrospetiva da sua obra foi integral, o que nunca tinha acontecido, mas JSM já não a acompanhou, morreu a 14 de março, dois meses antes da sessão inaugurativa.

Este catálogo dedicado à obra cinematográfica de JSM, igualmente intitulado Jorge Silva Melo – Viver Amanhã Como Hoje, começou a ser pensado em 2019, juntamente com a retrospetiva que a Cinemateca ia fazer dos filmes que realizou, juntando-lhe uma carta branca para escolher uma série de obras de cinema que fossem importantes na sua vida.

“Falávamos por email na maior parte das vezes, nessa altura, ou por telefone. Não estávamos presencialmente a preparar as coisas”, contextualiza a organizadora do catálogo. A notícia de que o encenador-cineasta estava doente fez com que Maria João acrescentasse um filme ao ciclo, que incluía não apenas a retrospetiva integral da obra de JSM, mas também os 20 filmes que tivessem marcado a sua vida e trabalho. “Há vários filmes dos anos 70, que foram importantes para ele na altura em que estava a começar a filmar, sendo que ele era um cinéfilo convicto, sério, genuíno, desde muito pequeno.”

O filme acrescentado à programação foi Uma Mulher Para Dois (Design For a Living, 1933), de Ernst Lubitsch. Trata-se de uma adaptação da peça de teatro escrita por Noël Coward, que se estreava na Broadway nesse mesmo ano. Na versão portuguesa, a peça de teatro chama-se Vida de Artistas. Foi o último espectáculo que JSM encenou, a que já não assistiu à estreia, no dia 23 de março, no palco do teatro de São Luiz, em Lisboa. “Foi a única coisa que alterámos, um filme a mais para fazer essa ligação”, explica Madeira. “O resto fizemos tudo tal e qual como tínhamos combinado, nas datas em que tínhamos combinado. Do catálogo, não voltámos a falar.”

Manuel Wiborg e Ángela Molina em "Coitado do Jorge", longa-metragem de 1993

Jorge Silva Melo – Viver Amanhã Como Hoje pretende fazer justiça para com o cineasta Jorge Silva Melo, autor de cinco ficções de longa-metragem (Passagem ou a Meio Caminho, Ninguém Duas Vezes, Agosto, Coitado do Jorge e António, um Rapaz de Lisboa), além de documentários sobre a vida e obra de artistas plásticos como Sofia Areal, Nikias Skapinakis ou Fernando Lemos. Trata-se de dar corpo ao pensamento sobre a obra cinematográfica de JSM. Para isso, Maria João Madeira fez uma pesquisa aprofundada acerca de textos já existentes sobre os  filmes, inclusivamente na imprensa, e reuniu-os juntamente com textos que foram pedidos especificamente para o catálogo, como foram os casos dos dos críticos Luís Miguel Oliveira e Francisco Ferreira, Francisco Frazão, diretor artístico do Teatro do Bairro Alto (espaço que era do Teatro da Cornucópia, fundado por Silva Melo e Luís Miguel Cintra) e do próprio Cintra.

Dos textos já existentes, Silva Melo gostava particularmente do pequeno artigo da artista Regina Guimamães sobre Agosto (1988), que se encontra no catálogo. “Agosto é o oposto das chamadas fitas de Verão, como as paixões que lá se contam estão nos antípodas dos amores de praia”, escreveu Guimarães. E referencia o cinéfilo: “No ramo subtil e luminoso de Rohmer, nasceu um fruto pesado de Antonioni – contudo, é manifesto que este trabalho não vive da receita mas da intuição do autor que nas imagens se traduz pela procura do vibrátil como substituto do latente.”

Maria João Madeira fez uma pesquisa aprofundada acerca de textos já existentes sobre os  filmes, inclusivamente na imprensa, e reuniu-os juntamente com textos que foram pedidos especificamente para o catálogo.

E Não Se Pode Exterminá-lo? (1979), primeiro filme em que JSM assina a realização, a meias com Solveig Nordlund, é uma adaptação do espectáculo da Cornucópia encenado nesse ano por Silva Melo, cujo texto dramatúrgico são sketches burlescos do alemão Karl Valentin, dos quais filmaram cinco que viriam a passar na RTP. Sobre ele, Regina Guimarães escreveu estarmos perante “um objeto fabricado com cuidados e primores” que o afastam do “formato poeirento do ‘teatro televisivo’.”

Passagem ou a Meio Caminho (1980), a primeira longa de JSM a solo, marca, tal como o nome indica, a saída de Silva Melo do teatro da Cornucópia (1973-79). Inicia-se aqui um período dedicado ao cinema que culmina em 1995 com o regresso ao teatro através da fundação dos Artistas Unidos e a estreia da peça António, um Rapaz de Lisboa, texto que JSM viria a adaptar para cinema e que teve estreia comercial em 2000.

“Ele começou por querer ser realizador. Ele queria fazer cinema, antes de fazer teatro”, concretiza Maria João Madeira. “Em jovem, foi estudar cinema. E, quando o fez, em Londres, viu teatro.” Foi assistente de realizadores como Paulo Rocha ou João César Monteiro. No artigo Verdadeiro moderno? Verdadeiro pré-romântico?, além de tentar situar artisticamente o cineasta Jorge Silva Melo, Paulo Rocha fala também das suas excecionais qualidades, como quando, era ele seu assistente na rodagem do filme Pousada das Chagas, um pintor estava havia horas a pintar chagas no corpo de Luís Miguel Cintra para o transformar no mártir São Sebastião e aquilo não estava a resultar. Silva Melo mandou apagar tudo do corpo e pegou ele próprio no pincel para desenhar as chagas, as filmagens estavam a atrasar-se. “De repente, o seu pincel vibrava pelo ar, salpicava o corpo do ator com chagas resplandescentes. Ficou perfeito, e tudo em segundos”, escreveu Rocha.

"Passagem ou A Meio Caminho" (1980) e "António, um Rapaz de Lisboa" (1999)

Houve filmes incluídos no capítulo “Projetos Não Realizados”, como foi o caso de A Linha da Vida, um argumento centrado na história de uma mulher de 40 anos, cujo “trabalho na emigração parece ter dado o suficiente para viver”, que se apaixona cegamente. O argumento acaba por ter várias versões, candidata-se ao Instituto do Cinema e do Audiovisual de então (que se chamava Instituto Português de Cinema), mas, por questões de produção, acaba por não ser concretizado. As páginas de texto estão ilustradas por várias fotografias de répèrage, de locais possíveis para filmar.

A fotografia é, aliás, uma questão importante no trabalho de JSM, como pode ver-se no capítulo chamado “Fotografias de Trabalho”. “Enquanto estava a trabalhar no material, percebi que JSM dava uma importância enorme à fotografia. Há fotografias nos adereços dos filmes todos”, conta Maria João Madeira, que vai fazer esta terça-feira a apresentação do catálogo acompanhada do ator dos Artistas Unidos António Simão, de Francisco Frazão e do diretor da Cinemateca, José Manuel Costa. “E, mais do que isso, havia um trabalho imenso de preparação dos filmes através de fotografias, de muitas fotografias. No Ninguém Duas Vezes (1984), por exemplo, isso traduziu-se em sequências que foram filmadas com o propósito de serem fotografadas e integrarem o filme. É até uma coisa impensável hoje em dia, não é? Parece uma grande produção de Hollywood.”

Dos textos já existentes, Silva Melo gostava particularmente do pequeno artigo da artista Regina Guimamães sobre Agosto (1988), que se encontra no catálogo. “Agosto é o oposto das chamadas fitas de Verão, como as paixões que lá se contam estão nos antípodas dos amores de praia”, escreveu Guimarães. E referencia o cinéfilo: “No ramo subtil e luminoso de Rohmer, nasceu um fruto pesado de Antonioni".

Jorge Silva Melo era fã do azul que se encontra na pintura de Sofia Areal, intitulada Azul da Prússia, e sobre quem fez um documentário em 2016. Mas não foi esse azul que usou recorrentemente nos seus filmes e peças de teatro, como conta na entrevista que deu a Francisco Ferreira a propósito da retrospetiva que o Lisbon & Estoril Film Festival lhe fez em 2013. “Aquele azul do quarto com vista para Setúbal em que está o Carlos, a personagem do Christian Parey [em Agosto], deve ter ficado de tal forma marcado em mim que eu depois disso tenho feito dezenas de espectáculos de teatro com o mesmo azul mal pintado. Foi o Christian, que passou há poucos anos por Lisboa, quem mo assinalou. Foi visitar-me ao São Luiz, eu tinha lá uma peça, e exclamou ao ver um cenário: ‘já vi esta imagem!’” O quarto de agosto a que se referia pertencia ao hotel da Arrábida que Silva Melo frequentou durante anos, desde que era adolescente.

É o mesmo azul “mal pintado” que Maria João Madeira encontrou nas paredes exteriores de uma casa que faz de adereço a uma cena entre os atores Jerry Radziwilowicz e Ángela Molina, Jorge e Ema, em Coitado do Jorge (1993), última longa de ficção que JSM realizou. “É um azul-bebé, mais claro do que o seu predileto, melancólico, azul da Prússia”, pode ler-se no texto introdutório de Maria João Madeira ao catálogo. É o azul, mal pintado, que dá cor à capa e aos capítulos do livro.

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