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José Afonso em 1971: um esgotamento nervoso, duas prisões e uma obra prima

Entrevistas da época e os relatos de quem hoje recorda bastidores, ansiedades e canções: esta é a história de "Cantigas do Maio", um álbum revolucionário.

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O Aeroporto da Portela tem os dias contados. A garantia é do Presidente do Conselho, Marcello Caetano, que aponta uma nova morada para o final da década. Entretanto, haja paciência, o único aeroporto de Lisboa “terá de dar vazão ao tráfego crescente de passageiros”. Neste ano de 1971, mais precisamente no dia 4 de outubro, um destes passageiros aguarda a chamada de embarque, carrega um saco de plástico pejado de remédios, calmantes e estimulantes, a Vitamina C para a sinusite, doença que volta e meia tirava-lhe a voz, caso sério para quem vive das cantigas. O destino é Paris, cidade maldita que só deseja distância. E no saco, à mão, os medicamentos para a ansiedade. José Afonso está uma pilha de nervos.

Na bagagem estão uma série de poemas inéditos, entre eles, “Rua António Maria”, uma homenagem a Conceição Matos, a militante clandestina do PCP sucessivamente torturada na sede da PIDE, em Lisboa. No ano anterior, distante da jurisdição da polícia política, José Afonso cantou em Paris “Rua António Maria”, mas a receção não foi calorosa: entre assobios, uivos e gritaria, foi constantemente interrompido por uma certa esquerda portuguesa, enquanto se distribuíam panfletos a descrever o músico como “um atraso de vida” que “não faz mal a uma mosca”. O próximo compromisso de José Afonso era em Cuba, El Festival Internacional de la Canción Popular, e com os nervos à flor da pele, sequer consegue cantar. No regresso a Portugal era inevitável: sofreu um esgotamento nervoso.

Paris, cidade maldita. Mas não havia escolha. O próximo álbum não poderia ser somente outro prodígio, a expectativa insustentável era um conjunto de canções que, apenas com a melodia e verso, golpeasse mortalmente a ditadura. E José Afonso acreditava que em Paris estava alguém capaz de finalmente segurar as propriedades intangíveis do seu cancioneiro: José Mário Branco. “Foi o momento que o Zeca escolheu para fazer aquela gravação, para dar uma encenação musical diferente, uma escolha intencional e desejada”, confirma-nos agora, 50 anos depois, Francisco Fanhais, um dos músicos contratados por José Mário Branco para as sessões de Cantigas do Maio. “Havia a sensação que aquele álbum poderia ser diferente, mas não havia certezas”.

A capa do álbum "Cantigas do Maio", de José Afonso

Homem Traça

Em 1971, convém lembrar, a discografia de José Afonso continha um legado incomensurável, com quase vinte anos de história. “José Afonso tem conseguido coisas extraordinárias”, reflete José Mário Branco ao Comércio do Funchal, um ano antes de Cantigas do Maio. “É um autor que se renova a cada passo, que não tem receio de introduzir coisas novas, de procurar — e que permanece verdadeiro: português, cantor popular”. O primeiro abalo nacional foi o EP Dr. José Afonso — Em Baladas de Coimbra, de “Os Vampiros” e “Menino do Bairro Negro”; Cantares do Andarilho anunciou a boa nova, um caminho definitivo para a música popular portuguesa; e em 1969, Contos Velhos Rumos Novos, o universo musical em expansão. “O Zeca abriu janelas onde nem paredes havia”, contextualiza Sérgio Godinho. “Existe ali uma sequência. O Zeca vem de onde, que criação é aquela? Sempre que saía um disco do Zeca eu ficava muito estimulado, não para imitá-lo, mas para fazer as minhas próprias coisas.” “Foi um murro no estômago”, acrescenta Francisco Fanhais, a recordar o primeiro contacto com este cancioneiro, então um seminarista a caminho do sacerdócio. “Eu estava num ambiente muito religioso, de redoma, aquilo foi muito importante. Ele cantava com uma força e intensidade vocal que me enchia o coração”.

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No Aeroporto da Portela, acompanhado pela mulher, Zélia Afonso, Zeca tinha uma certeza para Cantigas do Maio: teria que ser radicalmente diferente do álbum anterior, Traz Outro Amigo Também. O álbum gravado em Londres, como era habitual, improvisado em estúdio, não encheu as medidas dos ouvintes mais escrupulosos. “Falta à sua música uma maior complexidade, uma característica de universalidade”, considera Mário Correia na Mundo da Canção, garantindo que, “este LP é inferior aos anteriores”, e mais, depois de uma década fulgurante, sugere a “estagnação” de José Afonso — “parece deixar deliberadamente o tão bom caminho iniciado e aperfeiçoado”. “Hoje estou num beco sem saída”, confessava então o músico à Capital. “Não sei para que lado me hei-de virar, porque sou um ignorante em matéria de técnica musical, e a partir de um determinado grau de responsabilidade é necessário não fazer as coisas em cima do joelho”. Aos 42 anos, sob pressão, o tempo urge. Paris é uma encruzilhada.

José Afonso é impedido de embarcar para Paris e escoltado para, segundo a polícia política, “averiguações sobre o exercício de atividades atentatórias da Segurança de Estado”. Na Rua António Maria Cardoso, Inácio Afonso lidera o interrogatório, quebra o gelo ao anunciar: “Com estas mãos matei quarenta”.

Pouco antes, naquele ano de 1971, o músico estava no Coliseu dos Recreios a receber dois prémios da Casa da Imprensa, “delirantemente aplaudido pelo público que, em peso, se pôs em pé”. O cenário era de uma multidão em êxtase a entoar “Canto Moço”, à procura da manhã clara — “Mal se ouviu o seu nome, a plateia levantou-se. Em pé, aplaudiu a chegada do novo ídolo”, relata a Disco, Música & Moda. Era o nascimento do mito José Afonso, de contornos messiânicos. Encurralado, o músico defendia-se: “Não me interessa que me considerem um músico ou uma vedeta. Pelo contrário, estou empenhado em que se desfaça a impressão de que me tornei uma coisa que deve colocar-se numa redoma”. E sacode a água do capote:

“Recuso-me terminantemente a transformar-me num mito de segunda ordem, ou de que ordem seja, tenho defeitos de diversa natureza, insuficiências. Canto de vez em quando, como poderia fazer judo, jogar futebol ou dedicar-me à literatura policial”.

O  ídolo inconformado apresenta-se à porta de embarque, de saco de remédios na mão e o futuro de Portugal aos ombros. Subitamente, entra em cena a PIDE. José Afonso é impedido de embarcar para Paris e escoltado para, segundo a polícia política, “averiguações sobre o exercício de atividades atentatórias da Segurança de Estado”. Na Rua António Maria Cardoso, Inácio Afonso lidera o interrogatório, quebra o gelo ao anunciar: “Com estas mãos matei quarenta”. A apreensão do músico não era fortuita, perguntam-lhe de imediato sobre O Manual de Guerrilha Urbana da Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR), um partido de resistência armada fundado em Paris, reconhecido pelo assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz. A questão é certeira: um homem de ação, José Afonso acreditava que não se derrubaria um regime com paninhos quentes, e pontualmente ajudava a distribuir os manuais de guerrilha da LUAR. Mas naquele dia, o armamento era outro.

Em 1971 a discografia de José Afonso continha um legado incomensurável, com quase vinte anos de história

“O referido poema é todo ele de injúria a esta Cooperação e à honra e consideração devida a Sua Excelência o Presidente do Conselho”, escreve a PIDE sobre as “duas folhas de papel” de “Rua António Maria”. Na papelada, ainda está “uma canção intitulada Morte Clériga” — outro nome para “Avô Cavernoso”, o requiem vexatório a António de Oliveira Salazar. Os achados são suficientes para pernoitar na prisão, em Caxias. Em desespero, Zélia suplica ao editor de José Afonso, Arnaldo Trindade, para engendrar algum milagre. “Apareceu a Zélia com as crianças, a pedir-me ajuda, a dizer-me que ele mata-se, que ele era muito nervoso”, recorda-nos o fundador da editora Orfeu.

“No dia seguinte fui à PIDE, nunca lá tinha ido. Dei o meu cartão e fui logo recebido pelo diretor. Disse que estava lá por causa de um cantor nosso, um dos melhores cantores portugueses, e que estava preso e podia matar-se, e depois iriam ter uma bandeira de mártir às costas”.

No dia 6 de outubro, a PIDE liberta José Afonso: “Os autos não contêm matéria bastante para que possa pronunciar-se quanto à legalidade da detenção do arguido”. Sem o flagrante do manual de guerrilha, o processo aguarda “produção de melhor prova”. Desalentado, José Afonso regressa a casa. “Tive uma série de dificuldades para gravar”, explicaria mais tarde ao Diário de Lisboa, sem chamar os bois pelos nomes: “Aconteceram uma série de imprevistos e que me deixaram demasiado cansado”.

Uma semana depois da prisão, José Afonso está de regresso ao Aeroporto da Portela, decididamente uma pilha de nervos, sob o olhar persecutório do regime, debaixo da pressão dos críticos, da extrema-esquerda eriçada, da vassalagem dos devotos. Mas continua de pé, em movimento, embarca para Paris e entra em estúdio, gravação multipista, aperta o botão, gira a roldana, e erguem-se os adufes, tumbas e a gravilha. Ouvem-se já os tambores. É a edificação do sonho da música popular portuguesa.

“Ando permanentemente de um lado para o outro”

Em Setúbal, no encalço do cantor, devemos a um funcionário do Estado o itinerário do andarilho: “Sai de casa normalmente depois do almoço, instala-se na esplanada do Café Central, junta imediatamente à sua volta larga assistência de jovens, aos quais vai insinuando a sua doutrina, provocando a maior desorientação nesse meio”. A PIDE começa a observação em casa de José Afonso, um primeiro andar na Rua Miguel Rodrigues Bastos, e seguia pelos cafés e tabernas, pelos treinos de judo, pela Avenida Luísa Todi afora, entre a gente que interpolava o ídolo, a exigir uma palavra de alento, um abraço amigo — “Caminha vigorosamente”, assegura o jornalista da Capital, que “a custo” segue atrás de Zeca. “Ando permanentemente de um lado para o outro”, justifica. “Gosto de ver as coisas crescerem à minha volta”.

“Na altura ele não tinha oportunidade de ter outro emprego, por causa da situação política, e eu achei que para ele poder ter uma produção tinha que ter uma certa segurança económica”, explica Arnaldo Trindade, que começa a pagar um salário de oito contos mensais a José Afonso, com a obrigação de editar um álbum de originais por ano. “A canção é um produto como os outros”, defende o músico à "Capital".

Continua a PIDE: “À noite frequenta assiduamente o Círculo Cultural de Setúbal, onde se reúne com outros elementos de ideologia semelhante à sua.” “Pode parecer pretensiosismo”, nota José Afonso, “mas onde me sinto bem é no Circuito Cultural de Setúbal”. Na Avenida 5 de Outubro, o compositor de “Grândola, Vila Morena” lidera sessões de resistência teórica, esclarecimento social e político, aulas de português e história, e canta com regularidade, numas águas-furtadas sem qualquer autorização de espetáculo. Alerta a PIDE: “É de notar que a Polícia de Segurança Pública, sempre tão pronta em intrometer-se em assuntos da nossa competência, faz sempre por ignorar a presença e atuação dos vários elementos comunistas e desafetos que têm atuado naquele Círculo”.

O professor Dr. José Afonso, licenciado em Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, é colocado no Liceu de Setúbal em 1967. No ano seguinte, enquanto recuperava de um esgotamento nervoso, na Casa de Saúde de Belas, o requerimento para o próximo ano letivo seria indeferido. Na prática, é impedido de continuar no ensino público. “Na altura ele não tinha oportunidade de ter outro emprego, por causa da situação política, e eu achei que para ele poder ter uma produção tinha que ter uma certa segurança económica”, explica Arnaldo Trindade, que começa a pagar um salário de oito contos mensais a José Afonso, com a obrigação de editar um álbum de originais por ano. “A canção é um produto como os outros”, defende o músico à Capital, “é preciso que haja uma certa disponibilidade de tempo que eu não teria se continuasse no ensino enterrado até às orelhas dentro do magistério”. Ironicamente, é a expulsão do ensino que empurra José Afonso para a cantoria subversiva a tempo inteiro, o entorno estava à mão de semear, milhares de operários, estudantes e inconformados em ebulição social: a Margem Sul.

“A Margem Sul era um chamariz”, garante Francisco Fanhais, que corre suficientemente o epicentro da resistência associativa ao Estado Novo para ser expulso do sacerdócio e do cargo de professor de Religião e Moral. Ao lado de José Afonso, o ex-sacerdote percorria os centros paroquiais, os clubes de campismo, os sindicatos, as associações recreativas, qualquer recanto com malta por agitar. “Por mais rudimentar que fosse, havia sempre pelo menos um microfone”. A presença anunciada de José Afonso, à boca calada, era uma garantia de público, recorrentemente, sem ninguém avisar o próprio José Afonso. “Eis que aparece José Afonso no palco, para fazer uma pequena comunicação”, escreve o Diário de Lisboa, numa sessão na Incrível Almadense há 50 anos. “O público não o deixou sair sem cantar.” “Cai-se no exagero de achar que o indivíduo não tem vida própria”, desabafa. “Às vezes perco um bocado a paciência”. José Afonso estava sitiado pelas suas próprias canções, o palco era agora um púlpito, os versos a Escritura. “Normalmente não me sinto embalado quando estou a cantar, principalmente quando tenho pessoas à minha frente”, confessa ao Diário de Lisboa.

José Afonso na capa da Mundo da Canção em 1970. Era o número 12 da revista e foi a primeira com a capa a cores

“O Zeca era um tipo fora do comum”, reflete Manuel Freire, outro camarada da canção de intervenção. “Um tipo muito engraçado porque tinha muitas dúvidas sobre a vida, sobre o ir cantar a um lugar ou não, interrogava-se muito, estava sempre a pôr-se em questão”. Em palco não podiam faltar as “pastilhas” para os nervos, assim como uma transcrição das letras. “Era um tipo um bocado ansioso, em palco queria sempre ter companhia, não sabia as letras todas”. Escreve a Disco, Música & Moda: “Sempre de papel na mão — José Afonso nunca sabe de cor os seus poemas”. E o embaraço não era somente ansiedade, era uma condição de nascença, ou como dizia em criança, para desespero da mãe: “eu sou distraído”. “O Zeca vivia noutro mundo”, concorda Manuel Alegre. “Eu costumava dizer que era um distraído concentrado”. No entanto, por detrás da cortina, prevalecia a camaradagem e boa-disposição. “Era um franciscano, desprendido, e com uma ironia muito fina”, ressalva Francisco Fanhais. “Mas era um bocado nervoso”, consente. “O Zeca tinha certos problemas, não sei se traumas de infância…”

A origem do andarilho, em constante movimento

“José Manuel Cerqueira Afonso nasceu em Aveiro, no dia 2 de agosto de 1929.” Numa entrevista de vida à Flama, em 1971, revela fotografias dos tempos de Coimbra, extremo-direito do Académica, equipa B; e a gandaia no Liceu D. João III, as latadas e serenatas. “As noites passava-as em deambulações secretas pela cidade, acompanhado de meia-dúzia de meliantes da minha idade, amantes inconsequentes da noite”, recorda num texto autobiográfico. E ao mesmo tempo, a milhares de quilómetros, os pais e a irmã de José Afonso estavam cativos num campo de concentração japonês, rodeados de arame farpado. “Meus pais estiveram longo tempo em Timor e voltaram depois da libertação”, revela ao Diário de Lisboa. “Quando voltaram tinha eu catorze anos.” Durante três anos, o jovem estudante não tem qualquer notícia do pai, José Nepomuceno, juiz delegado do Procurador da República, ou da mãe, Maria das Dores, professora primária. E quando finalmente se reencontraram, José Nepomuceno retorna ao Ultramar, a Moçambique, sem José Afonso, definitivamente entregue às noites de Coimbra.

Entre Coimbra e Belmonte, é criado por tios e tias, dedica-se com afinco às noitadas do fado, à cantiga de tradição coimbrense, a Edmundo Bettencourt e Artur Paredes, e mais tarde, acrescenta-lhe música tradicional, adoçada com a canção francesa. Surgem as baladas. “Quando se cantava fado Coimbra, construía-se um determinado décor, preparava-se uma serenata, um estudante de capa e batina, os dois acompanhantes… As serenatas convencionais, com todo esse cenário, começaram a parecer-me um pouco convencionais”, recorda à Capital. Era a origem do andarilho, em constante movimento: “Pensei, pois, que essas canções tinham de se alargar, de se movimentar mais”. O segundo despertar é do cantor político e social. “Casei-me aos vinte e um anos. Andei em bolandas, vivi bastante mal”, revela, a recordar os últimos anos de licenciatura, em aperto financeiro, com dois filhos e um casamento condenado. “Ficou-me conhecimento ao nível humano de coisas que me chocaram. Vivi muito tempo sentindo as carências económicas de várias pessoas de Coimbra”.

“Aqui tem sido tudo proibido exceto os discos”, desabafa José Afonso por carta ao irmão, João Afonso dos Santos, antes do desembarque para Moçambique, retirado do livro Um olhar fraterno. “Todo o trabalho associativo nas coletividades populares e mesmo nas incipientes organizações sindicais em projeto, coartado se não dizimado”.

“Depois de ter saído de Coimbra, em 56, para dar aulas num colégio em Mangualde, andei por vários colégios a ensinar. Até que fui para o Algarve”, continua José Afonso. “Foi um período bom”. Em 1970, uma pequena editora de Tomar edita Cantar de Novo, um livro de poemas de José Afonso. Entre os poemas está “Santa Maria a sem-par”:

“Algarve jardim de rosas vermelhas
Algarve brancura de pedra e cal
Cidade dentro de um pátio sem telhas
Dormindo debaixo dum laranjal”

José Afonso estava apaixonado. E não só com a terra algarvia, sobretudo com uma mulher: Zélia. Outro poema de “Cantar de Novo” é “Lá no Xepangara”, recordação dos anos seguintes em Moçambique, arrebatado pelos ritmos e vocalizações do povo, assim como pela miséria dilacerante do colonialismo — “Se morrer de fome/ Tapa-se com um pano”. No regresso a Portugal, Setúbal é o pouso definitivo do andarilho, embebido numa essência geográfica, de Coimbra a Xepangara, mais do que um percurso pessoal, uma doutrina para a música popular portuguesa.

O livro Cantar de Novo é apreendido dois meses após o lançamento, logo o primeiro poema, o inédito “A Morte Saiu à Rua”, remetia para o artista plástico José Dias Coelho, assassinado à queima-roupa pela própria PIDE. O desaforo permanente de José Afonso é indesculpável. Em 1971, o regime de Marcello Caetano decide operar de forma coordenada: o ministro do Interior escreve um despacho a proibir o cantor de qualquer atuação pública; e o próprio ministro do Ultramar ordena que não deixem José Afonso desembarcar em Moçambique para visitar a família. “Aqui tem sido tudo proibido exceto os discos”, desabafa José Afonso por carta ao irmão, João Afonso dos Santos, antes do desembarque para Moçambique, retirado do livro Um olhar fraterno. “Todo o trabalho associativo nas coletividades populares e mesmo nas incipientes organizações sindicais em projeto, coartado se não dizimado”.

A capa de uma das edições de "Cantar de Novo", livro que reúne poemas de José Afonso

No dia 6 de junho, José Afonso é preso no Aeroporto de Lourenço Marques. Entre os corredores do aeroporto, a PIDE autoriza os pais a um retrato de família, a imagem é constrangedora. No interrogatório, que não haja dúvidas, Zeca sublinha que é avesso ao regime de Marcello Caetano. O ajuste de contas com a história estava para breve, uma sessão de estúdio em Paris.

José Afonso corrompe a tradição e cria música popular

No início de outubro, com o devido atraso, a saber, uma inconveniente prisão, e como um mal nunca vem só, uma repentina falta de fôlego, José Afonso está finalmente a gravar Cantigas do Maio. O diretor musical, José Mário Branco, organiza a empreitada nos estúdios de Château d’Hérouville, um palacete a quarenta quilómetros de Paris, onde recentemente tinha gravado o seu álbum de estreia, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, e Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho. No entanto, desta vez há uma diferença substancial: não eram somente uns maltrapilhos refratários em estúdio, mas um dos músicos que mais vendia LPs em Portugal. “No caso do José Afonso, eu era muito pragmático, sabia que tudo que ele gravava era bom”, fundamenta o editor Arnaldo Trindade, que consente o investimento inaudito em Portugal de mil contos num único LP. “Eu confiava nele, era um génio musical e poético”.

Misteriosos eram os caminhos do génio musical e poético. No princípio, José Afonso cria do céu uma melodia, só depois uma terra onde assentar. Num estado de transe, semiconsciente, compõe dedilhados de viola e vocalizações que seriam o primeiro estádio da canção. “Componho puramente de ouvido, quando falo em composição fico um bocado atrapalhado”, desculpa-se à Capital. “Parto da música para o texto”, explica melhor ao Diário de Lisboa, sendo que, “a canção insere-se, sempre, dentro de um processo” — leia-se o combate à ditadura — “o público, aliás, só adere quando as canções estão dentro do mesmo processo que ele está”. As canções surgiam autónomas, mas sempre interligadas num espaço-tempo particular, absortas pelo ambiente em volta. “Todas as canções deste disco foram feitas há três anos ou mais”.

Há pelo menos duas canções de Cantigas do Maio que conseguimos especificar um espaço-tempo: o Alentejo, em 1964. No 52.º aniversário da Sociedade Fraternidade Operária Grandolense, em Grândola — a “Música Velha” — José Afonso, acompanhado pelo violista Rui Pato, canta pela primeira vez uma nova canção: “Cantar Alentejano”. Escreve José Afonso, numa carta aos pais: “Ofereci-lhes uma canção feita na véspera, uma espécie de evocação da terra alentejana e do seu símbolo ainda vivo na lembrança do homem do povo: a Catarina Eufémia, uma ceifeira de Baleizão morta pela Guarda Republicana em circunstâncias que forneceram matéria para uma canção de gesta”. A gesta é bem sucedida, e impressionado pela camaradagem em Grândola, pelo ajuntamento de operários sem qualquer hierarquia, a caminho de casa, naquele estado de semiconsciência, José Afonso compõe outra canção: “Grândola, Vila Morena”.

50 anos depois, “Grândola, Vila Morena” cravou-se de tamanha intensidade nesta terra que se perdeu o valor enquanto mera canção: o engenho de José Mário Branco, e a assertividade de José Afonso, resultam num entusiasmo instantâneo, um pontapé musical para a frente. “O que se diz é urgente”, analisa Jorge Cordeiro, na Mundo da Canção. “Os passos não são um mero efeito -- são uma determinação, o Alentejo outra vez, amarelo, seco, plano”.

Nos estúdios de Château d’Hérouville, os Strawberry Studios, José Mário Branco é o mandachuva, calendariza à minúcia os mais de 15 dias de gravação, contrata as sessões diretamente com o proprietário, coordena a sessão fotográfica e entrega o trabalho de casa, um arranjo distinto para cada canção. “É a tentativa de superação de deficiências anteriores”, explica José Afonso à Flama, “com a colaboração dum músico que tem comigo algumas afinidades, que se aproxima ao meu gosto e sabe a minha música”. No seu álbum de estreia, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, José Mário Branco desenvolve o conceito de encenações sonoras, de uma sincronia rigorosa de produção e arranjos que destapam o potencial máximo de uma canção. Nas mãos do diretor musical de Cantigas do Maio, “Grândola, Vila Morena” passa de quatro para seis estrofes, à moda alentejana, e acima de tudo, desenha uma cena memorável. “O Zé Mário disse, vamos fazer uma encenação musical, não vamos meter aqui instrumentos, isto é uma música inspirada no cante alentejano, portanto vamos dar-lhe uma encenação alentejana e arrastar os pés como fazem os coros alentejanos”, narra Francisco Fanhais, que a par de José Afonso, José Mário Branco, e o guitarrista Boris (Carlos Correia), pisam a gravilha no jardim de Château d’Hérouville, com o frio de rachar da madrugada, para captar o som límpido da vagarosa passada, que a labuta é dura. “No mesmo dia, ao fim da tarde, fomos para o estúdio com auscultadores, e cantámos sob o som dos passos”.

50 anos depois, “Grândola, Vila Morena” cravou-se de tamanha intensidade nesta terra que se perdeu o valor enquanto mera canção: o engenho de José Mário Branco, e a assertividade de José Afonso, resultam num entusiasmo instantâneo, um pontapé musical para a frente. “O que se diz é urgente”, analisa Jorge Cordeiro, na Mundo da Canção. “Os passos não são um mero efeito — são uma determinação, o Alentejo outra vez, amarelo, seco, plano”. O Alentejo, real ou imaginado, é o cenário de Cantigas do Maio, em linha com a crença de Zeca que se devia resgatar uma pureza do campo, da música tradicional portuguesa. Portugal, do Norte ao Sul, é inteiramente representado pelo campo: os lavradores e as ceifeiras abraçados, de enxada na mão; o canto amargurado da rola; os amores debaixo roseiral; as andorinhas que não param, umas voltam outras não. E no campo há mais de uma estação, não há sombra sem sol, o coro de primavera desperta, ilumina um pensamento, enceta uma revolução:

“Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores”

Ao longo de Cantigas do Maio, o compositor fundamenta a urgência de uma revolução, seja pela morte de Catarina Eufémia, ou pelo trabalho até à exaustão da “Mulher de Erva”, uma vendedora de erva alentejana — “Há quem viva/ Sem dar por nada/ Há quem morra/ Sem tal saber”. Entre os cadáveres, na lua cheia, dançam as bruxas e coveiros da “Ronda das Mafarricas”, um poema diabólico do poeta e pintor António Quadros. Surpreendentemente, a melodia remete ao xaxado brasileiro, do cangaço nordestino, outro universo campestre. “O Zeca era de uma criatividade enorme do ponto de vista musical”, comenta Francisco Fanhais. “Às vezes chegava-se ao pé de mim e começava a trautear uma melodia, ouve lá esta, isto lembra-te alguma coisa?”.

Apontamentos de preparação da ficha técnica para cada uma das canções que compõe o álbum

Uma técnica recorrente de composição era partir de um único refrão tradicional e criar os restantes versos, como em “Cantigas do Maio”:

“Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou”

Ao contrário de Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, que procuravam uma genuinidade intocável nas recolhas de música tradicional, José Afonso espontaneamente corrompe a tradição musical portuguesa e cria nova música popular. O exemplo mais evidente é “Milho Verde”, Zeca troca as voltas aos versos e melodia originais, José Mário escolhe o adufe para marcar o ritmo, como na origem, da Beira Baixa, mas é um percussionista de jazz francês a pegar no instrumento: Michel Delaporte.

O percussionista francês é o jóquer de Cantigas do Maio, a carta fora do baralho que, logo à primeira canção, “Senhor Arcanjo”, sugere uma síncope com o carnavalesco tamborim, e de seguida ataca com uma darbuka, instrumento de batuque médio-oriental, enquanto José Mário impõe a ordem: “un, deux, trois”. “Ó Zé Mário, não se ouve pá”, interrompe o guitarrista Boris, engenheiro recém-formado, devoto da folk anglo-saxónica, outra cartada bem-sucedida — e inevitável, já que o fiel escudeiro Rui Pato estava impedido de viajar pela PIDE. E José Afonso começa a cantar: anjos em alguidar, rãs comem orquídeas nas barbacãs, papaias, repolhos e filhas com patilhas? “José Afonso, naquilo que publicou, acusa por vezes um certo poetismo, um certo hermetismo das letras, que nem sempre favorece a compreensão daquilo que se quer dizer”, critica José Mário Branco ao Comércio do Funchal. Este é o maior contrassenso na obra lírica do autor de “Senhor Arcanjo”: ao mesmo tempo que José Afonso reitera que a canção era somente um fim para atingir um meio — o derrube do regime — os poemas surrealistas provam que a canção era também o próprio fim, com maior longevidade que qualquer ditadura.

Em oposição direta aos seus contemporâneos, baladeiros de palavreado neo-realista e sociopolítico, Zeca compreende que a canção popular é composta do oculto, de elementos inexplicáveis que constituem a argamassa do povo português. “A arte panfletária não é necessariamente revolucionária”, defende à Capital. “Quando se fala de arte popular e se pretende que um cantor traduza de uma forma quase dialética, em termos preciosos, uma situação social, e proponha, através da sua canção, um plano, eu penso que se está a pôr o carro adiante dos bois”.

“O Zeca quando estava cismado com uma ideia teimava como um burro”, garante Francisco Fanhais. “Mas o José Mário era um tipo organizado, falava com muito calma, escalava muito bem as palavras com o silêncio, ia controlando todos os passos que diziam respeito à gravação, estava tudo planificado, e deveu-se à sua capacidade de organização ter conseguido que o Zeca aceita-se propostas de algumas coisas que ao princípio não estava tão de acordo”.

Os poemas de “um certo hermetismo” não era o único ponto de discórdia entre o produtor e compositor de Cantigas do Maio. A ousadia dos arranjos de “Maio Maduro Maio” eram de tal forma que José Afonso, habituado a uma viola e pouco mais, dificilmente aceita aquela encenação: a percussão dispersa, o baixo de Christian Padovan a serpentear, a voz ressonante, nos confins de um vale com flautas aladas, e que atrevimento, um trompete entre linhas. “O Zeca quando estava cismado com uma ideia teimava como um burro”, garante Francisco Fanhais. “Mas o José Mário era um tipo organizado, falava com muito calma, escalava muito bem as palavras com o silêncio, ia controlando todos os passos que diziam respeito à gravação, estava tudo planificado, e deveu-se à sua capacidade de organização ter conseguido que o Zeca aceitasse propostas de algumas coisas que ao princípio não estava tão de acordo”.

O clímax de Cantigas do Maio é “Coro da Primavera”, que abre um novo campo de batalha: um arranjo mais esclarecedor que as próprias palavras. A incitação à rebelião está no arsenal de guerra de tumbas e bongos, a melodia entre o medieval e o progressivo, os gritos de revolta de Francisco Fanhais, o ex-sacerdote que a censura impede de cantar em Portugal. A música de “Coro da Primavera” pega-nos pelo corpo, força de massas que nenhum censor é capaz de dominar.

Mas seria “Cantar Alentejano” a despertar a atenção da PIDE. A gravação de “Cantar Alentejano” é consecutivamente adiada por José Afonso, reticente em abordar a morte de Catarina Eufémia em canção, uma ferida aberta por sarar. E chegámos aos últimos dias de gravações. José Afonso pede para apagarem as luzes do estúdio. Está pronto.

“O ‘Cantar Alentejano’ era uma música muito emblemática para todos nós, no contexto político que estávamos a viver, o drama da Catarina assassinada estava na mente e coração de toda gente. E estava quase tudo pronto, só faltava a Catarina. Estávamos na mesa de gravação quando começou, e o Zé Mário decidiu que seria só viola — o Boris — e voz. A cada estrofe que o Zeca cantava, ficávamos mais ansiosos, tínhamos medo de se engasgar, e o Zeca gravou do princípio ao fim, em um único take. Quando terminou estávamos aos berros a bater palmas. E foi nessa altura que o Zeca abriu a porta do estúdio, meio transtornado, noutro mundo, com a Catarina e o Alentejo dentro do coração, e disse: ‘vou ver as vacas’. Ele estava sozinho de mãos nos bolsos, num terreno lavrado a descomprimir.”

(Francisco Fanhais)

O dinheiro chega em breve, ou vamos bater à porta de outra editora

No final das gravações de Cantigas do Maio, com a conta por pagar, mais de 15 dias de estúdio e estadia, pequeno-almoço incluído, José Mário Branco desespera com o fundador da editora Orfeu, Arnaldo Trindade. Ao telefone, a ameaça é clara: o dinheiro chega em breve, ou vamos bater à porta de outra editora. “Mas nós pagámos”, esclarece hoje o editor. “O Banco de Portugal é que não tinha cambiais, e a transferência tinha que ser feita através do Banco de Portugal”. A solução de emergência foi recorrer aos fundos de emigrantes portugueses nos EUA, reunir a quantia em dólares, e um funcionário da Orfeu embarcou num avião para entregar em mãos o pagamento. No ano seguinte, José Mário Branco continuava a acertar contas com Arnaldo Trindade.

As notas para as sessões de estúdio para a gravação de "Cantigas do Maio"

“O Arnaldo Trindade é um comerciante”, esclarece José Afonso à Capital, a salvaguardar-se de qualquer outra interpretação. “A tarefa que me encomendou subordina-se a objetivos comerciais”. A crítica era recorrente, o compositor de “Os Vampiros” é um vendido, cedeu aos caprichos do capitalismo, é editado por um empresário burguês de eletrodomésticos, representante da Philco em Portugal, proprietário de uma loja de seis andares no Porto. “Não tínhamos grandes interesses comerciais, mas por incrível que pareça até se ganhou muito dinheiro com os discos, como é o caso do Cantigas do Maio”, assegura Arnaldo Trindade. “A Orfeu foi grande porque tinha possibilidades financeiras que as outras editoras não tinham, através dos eletrodomésticos”. José Afonso, um assumido anti-capitalista, responde à defesa: “Tenho a maior liberdade de ação. O patrão, que também é um homem de vistas largas, dá-me carta branca”.

As vistas largas de Arnaldo Trindade eram um contraste com a restante indústria musical portuguesa e seriam fundamentais para o surgimento de uma nova música popular portuguesa: a Orfeu aposta na qualidade dispendiosa dos LPs em oposição aos EPs; monta estratégias de marketing de guerrilha; ambiciosas convenções para revendedores; e a surpreendente golpada de contratar José Afonso e Adriano Correia de Oliveira como assalariados da editora. Porém, um ano antes de Cantigas do Maio, o contrato com a Orfeu de Zeca chegava ao fim. “Ele disse-me que queria gravar com uma editora que fosse mais alinhada com ele”, lembra Arnaldo Trindade, num momento em que surge em cena a Sassetti, do camarada António Marques de Almeida. “Eu disse-lhe que isso era muito bonito, mas ele tinha que receber o dinheiro ao fim do mês, que tinha filhos para sustentar”. “Cantigas do Maio representa a minha sobrevivência e da minha família. É a garantia de trabalho que, obrigatoriamente, tenho de apresentar à casa editora”, confirma o músico, que renovou contrato com a Orfeu em 1970. E o que seria da nossa canção sem esta imposição de, ano após ano, José Afonso revirar a música portuguesa.

Além do salário fixo, agora acrescido a dez contos, uma razão prática mantinha José Afonso na Orfeu: a censura. Nos últimos anos do Estado Novo, o protagonismo da canção de intervenção, banda-sonora da oposição clandestina, das crises académicas, greves e motins, é uma intolerável pedra no sapato. Em 1971, Geraldes Cardoso, diretor da Direcção-Geral de Informação, informa todas as editoras que “deve ser vedada a edição ou radiodifusão de canções” que “pelo seu conteúdo e objectivos”, “possam pôr em causa interesses legalmente protegidos”. No ano seguinte, depois de álbuns de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e José Mário Branco, é uma questão de sobrevivência, impõe-se o “Exame Prévio” e desfaz-se a ilusão da Primavera Marcelista — “Foram transmitidas superiormente instruções às autoridades competentes para perseguir criminalmente os infratores”, ameaça Geraldes Cardoso. E entre os pingos da chuva, a Orfeu edita José Afonso sem maiores sobressaltos. “Éramos uma firma muito considerada na praça e eu nunca me meti em política”, esclarece Arnaldo, que desenvolve contactos estratégicos dentro do regime. “Nós é que andávamos sempre com o problema da censura às costas”.

“Só daqui a alguns anos se poderá saber se valeu a pena”, pondera José Afonso em 1971. “Não se pode medir pela qualidade daquilo que se faz, mas pelo acréscimo e pelo dinamismo que isso provoca ou ajuda a provocar as pessoas independentemente da qualidade daquilo que se canta. Este segundo aspeto é, para mim, bastante mais importante do que o valor da música.”

“Sobre a dificuldade de continuar este artesanato das cantigas, devo dizer que ele se torna cada vez mais difícil”, reflete José Afonso na Convenção Anual e de Catálogo de Natal da Orfeu, “Can-Can 71”, um mimo de copos e mariscada da editora para a imprensa e revendedores. No palco, entre “jogos de luzes”, é anunciado o lançamento de Cantigas do Maio — pelo caminho, um investimento de mil contos, um esgotamento nervoso, e duas prisões. “Posso considerar este trabalho o melhor que fiz, mas creio que não voltarei a fazer outro assim”.

“Enterro o cantigueiro que não acredito”

É Natal. “Dia das compras, de pessoas a entrar nas lojas a deitar contas à vida e a sair delas sobraçando embrulhos”, resume o Diário de Lisboa, que acompanha a azáfama natalícia: a maior drugstore da Europa, o Apolo 70; uma máquina de lavar loiça de brincar, a pilhas, 425 escudos. É um Portugal em mudança, sob um certo progresso económico, um certo individualismo, algum no bolso. Mas é também o mesmo Natal de sempre: a caridadezinha do Natal dos Hospitais; os cabo-verdianos ao frio em Lisboa; um álbum do Movimento Nacional Feminino de apoio à Guerra Colonial, com mensagens de Eusébio e Amália Rodrigues, e a canção “Angola é Nossa” — “Deter, destroçar, vencer, escorraçar, e gritar Angola é nossa”. E nas lojas de discos espalhadas pelo país, qual cântico de Natal, ergue-se um milagre.

“Os Pop Tops, com ‘Mamy Blue’, ‘Ana’ do Paulo de Carvalho, o último do Aznavour, o Zé Mário Branco, o Adriano Correia de Oliveira”. José Alves Pereira, proprietário da Discoteca Universal, em Lisboa, aponta os discos mais vendidos no Natal. “E sobretudo, o José Afonso, que tem tido uma venda espantosa”. No ano seguinte, Cantigas do Maio mantém-se como um dos álbuns mais vendidos em Portugal, um momento de viragem na carreira discográfica de José Afonso, que até então, segundo Mário Correia, era “incrivelmente desconhecido do grande público”, com “maior audiência” na “camada estudantil”. A Discoteca Universal estima, pela primeira vez, um aumento de vendas de 20 a 25 por cento, com três culpados evidentes: José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e José Mário Branco — “três excelentes álbuns que agora saíram e que contribuíram decisivamente para esse aumento de vendas”. Cumpria-se o sonho da música popular portuguesa.

Escreve José Jorge Letria: “Fim de ano sob o signo da renovação: o boom de José Mário Branco, o disco-renovação de Adriano Correia de Oliveira e o disco revolução de José Afonso”. A receção crítica de Cantigas do Maio é unânime — “José Afonso no seu grito mais conseguido a dilacerar toda a sonolência deste país”, analisa a Mundo da Canção. “Cantigas do Maio constitui a forma mais nobre e representativa da canção portuguesa”, observa Jorge Cordeiro, um álbum que, “não é só ideológico”, é “real, palpitante, dramático”, e evidentemente, “o melhor álbum de José Afonso”.

[“Grândola Vila Morena”, José Afonso ao vivo no Coliseu dos Recreios em 1983:]

E o músico, de pés assentes na terra, renega todos os louvores, as análises críticas e intelectuais, as achas para a fogueira do mito José Afonso. “Este ambiente de discussões e verbalismos tem sido muito nocivo para mim”, protesta à Flama. “Não se pode estar à espera do produto, para depois o dividir em bocadinhos e dizer se a letra é válida, ou se o poema tem mensagem. Tudo isto se justifica se as pessoas quiserem vir para junto de nós”. Qual melhor álbum da música portuguesa, o que faz falta é acordar a malta. No ano seguinte, em carta ao irmão, admite atirar a toalha ao chão e voltar ao ensino: “Decidi acabar a última pedagógica e concorrer ao estágio. Desta forma enterro o cantigueiro que não acredito”.

“O José Afonso não era político, era muito mais que isso, da utopia, ele queria um mundo melhor sem governos, sem dinheiro”, reflete Arnaldo Trindade. “O Zeca nunca foi um tipo muito alinhado”, conclui Manuel Alegre. “Era muito despojado, uma espécie de São Francisco de Assis”. A missão evangelizadora de José Afonso não era a obra-prima Cantigas do Maio, o sermão é mais ambicioso, aponta para o céu, e para a terra, é a edificação de um Portugal melhor, de melodia e verso, a pairar entre as ondas de som, entre cada português. E este país, sustentado por canções, permanece indestrutível.

“Só daqui a alguns anos se poderá saber se valeu a pena”, pondera José Afonso em 1971. “Não se pode medir pela qualidade daquilo que se faz, mas pelo acréscimo e pelo dinamismo que isso provoca ou ajuda a provocar as pessoas independentemente da qualidade daquilo que se canta. Este segundo aspeto é, para mim, bastante mais importante do que o valor da música.” E três anos depois, no dia 25 de abril de 1974, a definitiva senha da revolução são quatro amigos abraçados, um frio de rachar, longe de casa, acima da gravilha, a arrastar os pés de madrugada, com o técnico de som agachado para captar o momento. É apenas uma canção, um completo tiro no escuro — quem diria — em cheio na ditadura.

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