Os trabalhos na sala que recebeu a conferência desta terça-feira, num edifício localizado na Foz do Porto, eram evidentes: uns testam as luzes e o som, outros relembram os horários rigorosos para que tudo aconteça no momento certo. No centro, sentado numa cadeira branca, José Neves passou a manhã a falar com jornalistas sobre o seu mais recente projeto: uma fundação que lançou em nome próprio e à qual vai doar dois terços de tudo o que tem.
A Farfetch, plataforma online de moda de luxo que se tornou na primeira empresa portuguesa avaliada em mais de mil milhões de dólares (um unicórnio), já dava “bastante que fazer” ao empreendedor, mas o “ímpeto de alma” e o “sentimento de gratidão” levaram-no a querer fazer algo mais em Portugal. Foi assim que nasceu a Fundação José Neves.
A ideia surgiu quando a Farfetch entrou na bolsa norte-americana, em 2018. José Neves percebeu que “iria ter alguma liquidez e condições para criar o projeto que sempre quis criar” e colocou mãos à obra. Ao empreendedor juntaram-se ainda Carlos Oliveira — ex-secretário de Estado de Empreendedorismo, fundador da MobiComp e atual membro do Conselho Europeu de Inovação — e o investidor em capital de risco António Murta (diretor-geral da Pathena).
Foi daqui que surgiu também o compromisso de investir dois terços da sua fortuna pessoal no projeto. E foi esse compromisso que o tornou também no primeiro português a integrar o The Giving Pledge, um movimento criado pelo fundador da Microsoft, Bill Gates, e pelo multimilionário Warren Buffet, que reúne milionários que decidiram doar pelo menos metade da sua riqueza a projetos sem fins lucrativos.
“No meu caso, é dois terços e esse compromisso está assumido. Vou doar dois terços de tudo o que tenho durante a minha vida e no momento da minha morte”, revela José Neves em entrevista ao Observador, admitindo que será, “possivelmente, o filantropo mais pequeno” a integrar este projeto, mas também “o único português” que, para já, faz parte dele.
Na Fundação José Neves, acrescenta o presidente da Farfetch, o investimento que entra é do património pessoal e será adequado “à medida das necessidades da fundação”, que já tem dois programas em andamento: o ISA FJN, que consiste na atribuição de bolsas reembolsáveis a 1.500 estudantes, e ainda o Brighter Future, uma plataforma de visualização que vai ajudar os portugueses a tomarem as melhores decisões baseadas em dados.
“O sonho é que daqui a cinco, dez anos tenhamos uma geração de portugueses que possa dizer: ‘Eu consegui ter a formação que queria ter, na área que queria e a pós-graduação que precisava graças a esta iniciativa e, com isso, elevar o nível de competências e ajudar o país'”, acrescenta.
Fundação José Neves investe 5 milhões de euros em 1.500 bolsas para estudantes
A pandemia de Covid-19 ainda obrigou a reunir a equipa para perceber se o lançamento da Fundação vinha na altura certa ou se era necessário adiar e adaptar ao momento de crise. Mas a conclusão foi unânime: “Era mais urgente do que nunca”. “Esta vai ser uma ferramenta essencial tanto para as universidades como para os governos, para as pessoas e para as famílias. A questão da pandemia só veio acelerar este esforço da fundação”, refere.
Aos 46 anos, e com um unicórnio e uma fundação em mãos, os planos de José Neves vão, para já, assentar nos dois projetos: “Sinto-me bastante realizado”.
“Assumi o compromisso de doar dois terços de tudo o que tenho durante a minha vida”
Lançou a Farfetch em 2008, dez anos depois a empresa entra na bolsa norte-americana e aos 46 anos acaba de lançar uma fundação em nome próprio, algo que não é habitual nesta idade. Porquê uma fundação e porquê agora?
Na verdade, tive um ímpeto de alma por partilhar a sorte que tive. O sentimento que tenho é de uma gratidão muito grande por trabalhar naquilo que quero e naquilo que gosto, uma vez que tenho uma paixão por tecnologia e sempre quis ter um negócio global. Tive a sorte de o conseguir e tive um ímpeto de partilha dessa sorte.
Fui um dos primeiros signatários da Founders Pledge, uma organização fantástica em que os empreendedores podem participar e começar a aprender sobre filantropia mesmo antes de terem liquidez. Isto foi há cerca de sete anos. Fui o signatário número 10 e, neste momento, eles têm já dois mil milhões de dólares prometidos de todos os signatários que se seguiram e têm uma equipa que ajuda empreendedores, como eu, a desenvolverem e a articularem a sua atividade filantrópica.
A Fundação José Neves, que hoje [terça-feira] lançamos, foi uma ideia que surgiu na altura do IPO [admissão de uma empresa em bolsa] da Farfetch. Sabia que iria ter alguma liquidez e que ia ter condições para criar o projeto que sempre quis criar. Falei com o Carlos Oliveira e com o António Murta, que são os meus parceiros cofundadores, e começamos a trabalhar nisto. A Fundação já tem equipa e já está a trabalhar há um ano mas, sendo nós empreendedores, para lançar é preciso lançar com coisas concretas, que ajudem as pessoas de uma forma muito prática e pragmática.
É por isso que hoje lançamos os ISA, que são bolsas reembolsáveis para pós-graduações, e também o portal Brighter Future, a maior base de dados a nível de educação, competências e empregabilidade em Portugal e que vai permitir a todos os portugueses — sejam eles pais, os filhos, instituições, universidades, Governo, media, etc. — terem insights sobre educação, empregabilidade e sobre competências. Baseados em factos e não em opiniões.
Fundação à qual José Neves “vai doar dois terços de tudo o que tem” apresentada a 17 de setembro
E desde o momento em que pensou na ideia desta Fundação até ao momento em que o projeto foi consolidado, que prioridades é que definiu?
Para mim o mais importante é criar impacto. Filantropia significa partilha, mas significa também um impacto que pode ser medido e que pode ser reportado com transparência para que as decisões sejam certas e para que possamos ajudar as pessoas de uma forma prática, pragmática e efetiva. No caso da Fundação José Neves a nossa missão é ajudar a tornar Portugal numa sociedade do conhecimento. O maior capital de Portugal é o capital humano. Os portugueses têm imenso talento, têm muitas capacidades, dão cartas não só na economia e no digital, mas também no desporto, em atividades culturais, artísticas, entre outras. E nós temos é que apostar no nosso potencial humano.
A Suécia, por exemplo, é um país que tem mais ou menos a mesma população que Portugal, perto dos 10 milhões de habitantes, e também não tem recursos naturais significativos e é periférico. Mas está no topo mundial dos países, não só de desenvolvimento económico mas também a nível de desenvolvimento humano mais abrangente. Tudo isto aconteceu ao tornarem-se numa sociedade de conhecimento.
A propriedade intelectual hoje em dia vale muito mais do que a propriedade física. As grandes empresas mundiais são empresas de propriedade intelectual, são empresas tecnológicas e que vivem da propriedade intelectual. Como é que podemos ajudar a tornar Portugal numa sociedade do conhecimento? É essa a nossa contribuição — com humildade, porque sabemos que somos apenas uma fundação. Queremos trabalhar em parceria com as universidades — temos 22 universidades parceiras e politécnicos já de início –, com as pessoas, com as empresas para contribuirmos todos nesta jornada que, penso, é importante para Portugal.
Já tinha divulgado que iria doar dois terços da sua fortuna, mas isto na prática traduz-se em quê? Quanto é que estima investir nesta fundação?
Assumi o meu compromisso de doar dois terços de tudo o que tenho durante a minha vida e no momento da minha morte. Também fui aceite pela Giving Pledge, a associação do Bill Gates e do Warren Buffet, com os maiores filantropos do mundo, dos quais eu sou possivelmente o mais pequeno e o único português. O que estes filantropos têm em comum é o compromisso de darem pelo menos metade das suas fortunas para fins não lucrativos, fins filantrópicos. No meu caso é dois terços e esse compromisso está assumido.
As dotações da fundação são exclusivamente do meu património pessoal. Não tivemos nenhuma dotação do Estado, nem dotações de nenhum outro indivíduo ou entidade externa. Ao longo da minha vida, e à medida das necessidades da fundação, essas dotações vão acontecer e também medindo o sucesso dos programas. Por exemplo, o ISA começa com cinco milhões de euros e eu espero, e estou confiante, que vá ter muito sucesso. O programa foi aberto na sexta-feira passada e já temos imensas candidaturas — penso que até ao final do dia já vamos ter contratos com alguns estudantes –, e se realmente for o sucesso que estamos a pensar vamos alargar a pós-graduações no estrangeiro, depois alargaremos possivelmente a licenciaturas. O sonho é que daqui a cinco, dez anos tenhamos uma geração de portugueses que possa dizer: “Eu consegui ter a formação que queria ter, na área que queria e a pós-graduação que precisava graças a esta iniciativa e, com isso, elevar o nível de competências e ajudar o país”.
Neste programa do ISA estimam abranger cerca de 1.500 estudantes. Como é que vão escolher estas pessoas? Há fatores de exclusão?
Qualquer pessoa pode candidatar-se, desde que seja portuguesa e, visto que os cursos são de pós-graduação, desde que tenha as condições de elegibilidade de cada um dos cursos. Independentemente da condição económica, da capacidade financeira dos pais. Isto não é um empréstimo, não há aval pessoal nem coisas do género, não há nada disso. Não precisamos de ver a folha do IRS de ninguém. Independentemente de ter emprego ou não, independentemente da idade, é um programa que está aberto a todos os portugueses, desde que tenham as condições de elegibilidade académicas desses cursos de pós-graduação.
As candidaturas são avaliadas por nós e pelas instituições de ensino parceiras. Para as que forem aprovadas nós fazemos o pagamento total das propinas e só há reembolso se e quando a pessoa conseguir um emprego e esse emprego seja acima de um determinado nível salarial. Se for abaixo, também não paga. É uma aposta que fazemos e nós tomamos o risco porque acreditamos no potencial e no talento dos portugueses e acreditamos que vale a pena apostar na formação contínua. Queremos que seja o mais abrangente e o mais fácil possível para as pessoas.
“Sinto-me bastante realizado. Esta fundação é um esforço geracional”
Depois de programa de educação e de uma plataforma de dados, o que se vai seguir? A fundação vai atuar apenas na área da educação?
A missão desta fundação é ajudar a tornar Portugal numa sociedade do conhecimento. O conhecimento é essencial para a felicidade do ser humano. Nós somos seres curiosos, inteligentes, cognitivos, aprendemos toda a vida, mas o conhecimento não é apenas o do mundo exterior. Temos as ciências que estudam o mundo exterior, como por exemplo a Física, a Química, a Engenharia Mecânica, a Termodinâmica, Engenharia eletrotécnica, o digital, as Ciências de Computação, etc., mas há ciências que estudam o mundo interior, como a Psicologia, a Psicoterapia, a Psicanálise e a Neurociência. E isso é muito pouco conhecido. Conseguimos colocar homens na Lua, mas sabemos muito pouco sobre como é que funcionam as emoções humanas, quais são os ingredientes da felicidade, quais são os ingredientes de uma vida com sentido.
Isto é essencial para termos uma sociedade equilibrada. Vemos sociedades com um sucesso económico extraordinário — os Estados Unidos são um exemplo –, mas com muito pouco equilíbrio sob o ponto de vista de valores e sob o ponto de vista humano. Sociedades desequilibradas são sociedades que sob o ponto de visto do desenvolvimento humano, como um todo, não conseguiram esse equilíbrio. A Suécia, mais uma vez, volta como um exemplo desse equilíbrio. E um dos pilares da fundação, o quarto pilar, vai também ter iniciativa de programas relacionados com o conhecimento de nós próprios. Não posso ainda revelar quais são, mas ao longo dos próximos meses e anos vamos ter atividades nessa área.
A pandemia de Covid-19 tem trazido várias mudanças e mudado alguns paradigmas. Nos meses de confinamento as receitas da Farfetch dispararam 74%. Nessa altura disse que nunca imaginou que a plataforma fosse testada numa crise como esta. Qual tem sido o maior desafio destes últimos tempos?
Peço desculpa, mas da Farfetch hoje não vou falar.
Na moda de luxo ou na educação, esta pandemia está a obrigar-nos a todos a fazer uma mudança de paradigma? Qual é a sua visão sobre o que se está a passar? A importância da digitalização tornou-se mais evidente?
Quando a questão da pandemia surgiu na Fundação nós já estávamos com estes programas a serem trabalhados, tanto o ISA como o Brighter Future. Recordo-me perfeitamente que fizemos um conselho de administração de emergência para nos perguntarmos se deveríamos atrasar o lançamento da fundação, se os ISA e o Brighter Future eram o correto para responder à crise e o que poderíamos fazer mais. A conclusão a que chegámos foi que era mais urgente que nunca, que teríamos de lançar mesmo em setembro, como lançámos. O Brighter Future, por exemplo, vai permitir ter uma radiografia de como o mercado de trabalho e as competências que são necessárias estão a mudar radicalmente de um momento para o outro por causa da Covid-19. Esta vai ser uma ferramenta essencial tanto para as universidades como para os governos, para as pessoas e as famílias. A questão da pandemia só veio acelerar este esforço da fundação.
Fundou uma empresa que se tornou no primeiro unicórnio português, criou uma Fundação com o seu nome. O que é que lhe falta fazer?
Sinto-me bastante realizado. Esta fundação é um esforço geracional. Para os próximos cinco, dez, 15, 20 anos vamos tentar criar impacto, medi-lo e ser transparentes sobre esse impacto. A Farfetch também dá-me bastante que fazer, portanto neste momento é tudo.