José Vieira, licenciado em sociologia, anda há muitos anos a filmar a emigração portuguesa, especialmente a dos anos 60 para França, durante a qual mais de um milhão de portugueses saíram do país. Com sete anos, partiu de Oliveira de Frades, em Viseu, para o bairro de lata em Massy, nos arredores de Paris em 1965. O mundo foi avançando, mas o realizador não quis largar estas travessias de quem parte para um lugar que não conhece. Nem o dele, nem o de um crescente número de emigrantes espalhados pelo mundo inteiro. “O problema é que vejo o que se está a passar e não consigo esquecer. Se enterrasse a cabeça, talvez. Por isso é que fiz este filme”. Este filme, “Nós Viemos”, traça um retrato dessa emigração e estabelece pontes com os que vêm de fora, de África e do Médio Oriente, e está a partir desta quinta-feira, 21, até ao dia 27 de abril no cinema Ideal, parte de uma programação associada ao DocLisboa (uma iniciativa chamada 6.Doc).
Balanceando entre testemunhos de portugueses a fugir da ditadura que partiram com pouco mais do que uma mala e a família, e de africanos que atravessam Marrocos e Espanha, José Vieira quis ir à procura do chão comum que pode unir todas estas pessoas. Uma procura pela liberdade, para fugir da guerra, da miséria, da opressão. Entre Portugal e África. Entre Portugal e o Médio Oriente. Imagens de arquivo, fotografias, entrevistas (algumas com mais de 20 anos), filmagens na fronteira de Hendaia (na fronteira entre as zonas francesa e espanhola do País Basco), numa hora de película que afinal, nada mais é do que um documentário sobre uma memória coletiva que José Vieira anda a trabalhar há mais de 20 anos. De quem parte para o desconhecido, de quem regressa por não conseguir ficar e de quem prefere esquecer o passado. “Encontro emigrantes portugueses que não querem falar dessa altura. Dizem-me: que interesse tem de se falar nisso? Já passou! Encontro muito. Se se falar agora, é voltar à miséria”, conta numa longa conversa com o Observador.
[o trailer de “Nós Viemos”:]
Mesmo que nestes encontros entre o realizador português e a comunidade lusófona exista essa vontade de um direito ao esquecimento, José Vieira, que já só sente que Portugal “é o seu país de infância”, quer continuar. Continua a trabalhar muito no interior de Portugal, “um mundo que está a desaparecer”, ao mesmo tempo que, mesmo à distância, mantém um espírito crítico pela terra das suas origens. “A emigração faz parte da cultura portuguesa. Mas às vezes já nem se toma atenção. Começou a haver uma reflexão, mas há problemas que não se debatem em Portugal, a emigração é um deles. Não sei porque não se fala num país de emigrantes”, diz.
Nunca votou na vida. Continua a seguir a vida política do país, mas quase nem vê notícias ou lê jornais portugueses. Só volta às origens se for para trabalhar. Da sua filmografia, já constam “A Fotografia Rasgada” (2002), “Weekend en Tosmanie” (1985) ou “Souvenirs d’un Futur Radieux” (2014). Quando questionado se a sua militância fervorosa em defesa dos emigrantes portugueses não o tem impedido de se tornar mais conhecido em Portugal — contando com apenas uma ou outra retrospetiva do seu trabalho –, resolve responder que não encontra justificação. Já em França, este é um debate vivo, nem que seja por causa das eleições presidenciais que culminam este fim de semana, entre Emannuell Macron e Marine Le Pen. Quem quer que seja o próximo presidente, vai precisar de fazer o que os outros não têm feito: regularizar a emigração em França. Mas o que realmente o vai continuar a preocupar, ou a fascinar, é a poesia das pessoas. “Dou muita importância à palavra, é esse o meu trabalho, essencialmente. Admira-me a capacidade destas pessoas contarem a sua história e de se abrirem. Desta ideia de partir sem desejo nenhum de sair de Portugal”, finaliza.
Trabalhar sobre a emigração portuguesa não é novidade para si. Mas o que pretendia com este “Nós Viemos”?
Tem uma história particular. Ao princípio, até era anedótico. Eu falo mal português, não leve a mal. Aliás, falo português de emigrante…
Não levo nada a mal.
Pronto. Queria fazer uma curta-metragem de uma ideia antiga da nossa viagem até França. Da minha família a falar da viagem. O meu pai, a minha mãe, as pessoas que morreram. Tinha escrito o projeto há mais de dez anos e não avançou. Mas com o êxodo dos sírios por causa da guerra, voltei a ver as imagens de pessoas a assaltarem os comboios. Vieram-me essas memórias há cabeça. Senti que era algo que tínhamos passado. Claro que o que se passou na Síria foi muito mais grave. Mas a partir daí comecei a montar o filme. Depois, a fronteira de Hendaia, que estava um pouco desativada, porque passava pouca gente, quanto muito apareciam alguns africanos. Quando a Itália fechou as fronteiras, as pessoas começaram a passar por Marrocos e Espanha. Aquela fronteira voltou a ter muita gente. Ou seja, quando vi essa realidade, fui lá e filmei. Os jovens africanos que surgem neste filme são de lá. Tive de fazer outra montagem. Queria ter várias nacionalidades. Queria saber o que há de comum quando as pessoas são obrigadas a fugir, a sair do seu país. O filme tenta encontrar esse lugar para todas as emigrações. Cada um tem a sua aventura, que pode ser complicada, mas cada um sente algo diferente na fronteira, quando chegam. Queria esses sentimentos.
Existe algum desses sentimentos que seja transversal a qualquer migrante?
Há 20 anos fiz um filme, o “Fotografia Rasgada”, onde falava da emigração portuguesa e fiz referência ao que se passa hoje. É a nossa história coletiva, perceber porque é que as pessoas saíram: a guerra, a miséria e a ditadura. Queria perceber o que há em comum com as pessoas que fogem hoje. Essa era a minha ideia. É o que dizia um pensador inglês, o John Berger, que “o fugir” é o fenómeno principal destes dois últimos séculos, como no século XIX muitos fugiram para a América. Outra das ideias importantes é a de que emigrar não é só passar as fronteiras. É dar sentido ao mundo. De um momento para o outro, perdemos as referências que temos. Neste filme fala-se disso. Um dos emigrantes diz: “era como se te mandassem para a Lua e depois logo vias quando chegavas”. As pessoas sentem isso. Lembro-me bem de um primo que, não tendo aguentando muito tempo em França, porque há quem não aguente a emigração, dizia sempre que o corpo dele não estava lá. O poeta Ovídio diz: “O exílio é deixar o nosso corpo para trás”. O meu primo diz a mesma coisa. Há quem não se adapte. Esta experiência não é assim tão simples. Para mim foi simples, era miúdo. Era preciso arranjar papéis, passar fronteiras….
O José costuma dizer que há um certo sentimento de culpa nestes emigrantes, preferindo até não recordar esses tempos. E, sendo um pioneiro nesta área, acha que estas pessoas já sentem que essa memória coletiva existe?
Tem evoluído um pouco. Mas ainda encontro gente em sofrimento. Uma miúda portuguesa viu o filme e desatou a chorar. Porquê? Porque a família dela nunca falou nisto. Sentiu que existia uma falta de história, de se falar sobre a emigração. Claro que há uma tomada de consciência. Por exemplo, o meu pai sentiu-se sempre culpado por ter vindo para França. Mas quando as pessoas percebem que esta é uma história política, porque estamos a falar de mais de um milhão de pessoas a emigrar, a tomada de consciência é mais fácil. Mas tenho feito muitos debates e vejo sofrimento. Porque não se falou, não há imagens, os pais não falam. Quando se fala, já há quem fique aliviado. O que também encontro, não sendo a única, é que há quem recuse a vinda de outro tipo de emigrantes. Podem até votar na Le Pen. Se as pessoas tivessem pensado porque é que os seus avós vieram para França, talvez não votassem, talvez não tivessem essa reação. O meu trabalho, que é militante, é dizer às pessoas: quem vem hoje, vem pelas mesmas razões que nós viemos. Não são completamente iguais. Mas a verdade é que a Europa precisa de mão de obra e de malta jovem. Se soubessem da história dos seus avós, não queriam fechar-lhe as portas. Os portugueses têm a mania que só eles é que vieram para trabalhar. É que onde há 40 anos estavam portugueses nas obras, estão africanos.
Essa reação dos emigrantes portugueses em França surge também porque os emigrantes africanos “ocuparam” os mesmos espaços e trabalhos?
Os portugueses que chegaram não ocuparam espaço de ninguém porque ninguém queria aqueles trabalhos. Hoje passa-se a mesma coisa. A construção francesa tem problemas de mão de obra evidente. Também na restauração. É mal pago e ninguém quer lá trabalhar. A diferença é que, nos anos 60 havia mais necessidade desse trabalho. O problema hoje está mais — sobretudo por causa das eleições — em encontrar um bode expiatório. Naquela época, também acontecia outro fenómeno: podíamos vir embora. A partir dos anos 80, surge o Le Pen, torna-se mais complicado. É preciso que exista uma campanha grande de regularização destas pessoas. Há quem trabalhe aqui há mais de dez anos. Politicamente ninguém fez nada. O François Hollande não fez, o Macron também não. Nem vai fazer e é necessário. Porque há quem vá ficar cá, só que sem papéis.
Pegando nesse tema das eleições presidenciais francesas. Esta semana temos a segunda volta. Corre a possibilidade de Le Pen ganhar a Macron. Lemos algumas histórias de que alguns emigrantes portugueses apoiam a candidata de extrema direita. O que é que lhe diz a sua experiência?
Não tenho um ponto de vista. Tenho estado por Lisboa a trabalhar, lidei pouco com as notícias. Não posso fazer essa análise porque não estou em grande contacto com a comunidade portuguesa. Encontro pessoas nos debates, claro. Há portugueses racistas que não querem os outros emigrantes se forem africanos, argelinos. É evidente. Tenho a impressão é que é um pouco exagerado. Quando vou para Portugal, perguntam-me sempre isso. Estamos a falar de quem já é francês há muito tempo. Não sei se houve um verdadeiro estudo sobre o que pensam os emigrantes portugueses cá. Como votam, por exemplo. Por isso não vou estar a dar a minha opinião concreta. Posso dar o exemplo dos meus amigos, mas não é representativo. Claro que quem conheço, está desesperado. É a repetição de algo que já aconteceu há cinco anos. E nem vai haver debate aqui. O único que há é que é preciso votar contra a Le Pen e escolher o Macron. Mas se temos estado contra ele, como vamos fazer? Isto vindo de pessoas que conheço, não é nada representativo. O problema é que estamos mais que fartos dessa merda. Mas mesmo. Já chega. É sempre a imigração, a imigração. O Zemmour até queria fazer um ministério da Remigração. Nos anos 80, lutou-se muito contra o racismo, para termos os mesmos direitos. Já não estamos nessa. Esta reação xenófoba não é normal. Estamos a defender as nossas ideias de tolerância e hospitalidade, acabando com fronteiras fechadas que já fizeram 35 mil mortes no Mediterrâneo. Isso é que nos preocupa. Claro que pode não ter nada a ver com um português a falar na rádio a dizer que não há lugar para ele aqui.
Voltando aqui ao seu filme, “Nós Viemos”. Como chegou a estas pessoas? Guarda alguma história que o tenha surpreendido?
Uma coisa que me admira muito é como é que as pessoas são capazes de, em poucas palavras, dizer porque foram embora. O que sentiram. Temos sempre a impressão de que não refletiram, mas fizeram-no. Há uma senhora no filme que diz que não queria partir de Portugal, porque teve de deixar a filha e não sabia para onde ia. Foi uma entrevista que fiz há mais de dez anos. As que estão no filme foram feitas nos últimos vinte anos. Não foi algo que fiz para este projeto. Parece simples, mas para ter estas frases… Mais um exemplo: quando vemos as fotografias em Hendaya, um senhor conta que recebiam melhor naquela época do que agora. Para mim, é algo maravilhoso. Quer dizer, não é bem esta palavra. Não sei em português.
É fundamental.
Isso. É que ele conta a sua história mas depois fala de hoje. Passou por aquilo mas é solidário com a realidade de agora. Não fecha a porta. Lembro-me de outro, que diz que foi à deriva, sem a ajuda de ninguém. Isto não se encontra todos os dias. Dou muita importância à palavra, é esse o meu trabalho, essencialmente. Admira-me a capacidade de contarem a sua história e de se abrirem, para que também a sua história seja a de toda a gente. O momento das fotografias, de outra senhora que diz que partiam todos cheios de medo, dizendo “ganháramos, não ganháramos”, esta maneira de falar, é essencial. Conta-nos o essencial do que é esta ideia de partir, sem desejo nenhum de sair de Portugal.
Estes testemunhos até nos dizem outra coisa: o Estado Novo achava que quem morava no interior, ou longe de Lisboa, era “primitivo”, que tinha pouca instrução ou noção do que se passava. Afinal, percebiam muito bem o que estava a acontecer. Nada mais errado.
Estava a trabalhar noutro projeto, em que o Estado Novo dizia mesmo isso do primitivo. Como se estivessem a colonizar a serra como se fez em África. Erro completo. Tenho trabalhado muito em Viseu, mas também noutras aldeias que não tinham nada, estavam isoladas. Encontro muita poesia, uma maneira de se exprimirem, fica tudo muito bem dito. Bate certo. Há outro tipo, o Raúl, onde temos imagens de arquivo num bairro de lata. Esse senhor conta que tinha 15 anos e queria mudar de vida, estava farto. Tenho a história dele toda. Fez-me lembrar a mesma história do filme “Padre Padrone”. Ele contou-me a mesma história, do pai dele, como ele vivia descalço no meio da serra como miserável. Tinha 15 ou 16 anos. Só o facto de querer mudar a vida, isso é algo enorme!
E tão novo…
Sim, sim, imagine. Estava na serra e queria outra coisa. É preciso ter uma energia maluca para fazer algo assim. Quando falei com os africanos, também novos, na fronteira, podia estar a dizer a mesma coisa. Acreditam que podem ser mais do que são, no meio daquela miséria. Querem ter um projeto de futuro. Isso pode ser uma razão para emigrar. É um direito que está defendido no filme.
Mas nem sempre esse mundo melhor foi encontrado em França. E outros, por outro lado, que não querem voltar para Portugal.
Esse é outro problema enorme. Há muita gente que não quer regressar, também porque se adaptou. Também encontro muita gente nas aldeias que não se adaptou em França. E tinham vergonha de voltar. E havia gente que voltava e diziam-lhes: então havia tanto dinheiro lá e voltaste? Tinham vergonha de voltar para Portugal. Outra das coisas que também descobri: contaram-me que o pai de um senhor e a mulher tinham sido expulsos de França nos anos 30. Não sabia disso. Havia uma crise, depois da grande crise de 1929, e nessa época metade dos portugueses foram expulsos. Quem estava cá há menos de dois anos, foi mandado embora. Também pesquisei isso para o filme. Cheguei a montar uma sequência só que acabei por retirá-la, precisava que o filme fosse mais curto. Às vezes descubro assim esta coisas. Mas o que descubro mais é mesmo a poesia das pessoas, a forma de se exprimirem.
Porque é que foram expulsos?
Desemprego. Agora também se anda a falar nisso. Sempre se fez isso aqui, pelo menos existir essa ideia. Quando tivemos as primeiras medidas anti-imigração, depois de 74, houve uma lei em que se a pessoa estivesse mais de seis meses sem emprego podia ser expulsa. E isto era para todos os emigrantes. Foi aplicado e tudo.
Fale-me um pouco das partes técnicas. Foi difícil encontrar estas imagens de arquivo? Muitas famílias a despedirem-se, imagens nas estações de comboios, numa altura em que o registo documental estava ainda a dar os primeiros passos.
As imagens são essencialmente da televisão francesa. Tenho imagens de 1946, quando estão a atravessar na neve, são italianos. No filme não se sabe, nem me importa que se saiba. Para mim é importante que não se saiba quem são as pessoas. Estavam a atravessar os Alpes, não importa se são portugueses, italianos e espanhóis. Voltando aos arquivos, também passavam no cinema quando não havia televisão. E depois imagens da Gaumont Pathé e pouco mais. É mais ou menos isso. Há muito pouca coisa sobre o “Salto”, sobre a passagem por Hendaia, não há praticamente nada. É raríssimo. Não existem imagens. Do “Salto” nem vale a pena. Há uma imagem de portugueses a caminhar no meio da serra, aquilo claramente foi reconstituído. Eu utilizei-as, mas percebi logo. Porque não houve reportagens, que se saiba.
Acha que essa falta da memória coletiva, de registo, remete para uma ideia de que Portugal tem tratado mal os seus emigrantes?
Portugal é um país de emigração desde sempre. Há dez anos que vejo uma pequena evolução. Faz parte da cultura portuguesa. Às vezes já nem se toma atenção. Agora sim, por exemplo, começa-se a falar da emigração para França. Há 20 anos fiz um primeiro filme sobre isso, e as pessoas começaram a preocupar-se. É o tal trauma. É a sensação que tenho. Agora, quando os portugueses começaram a receber emigrantes, a história muda de figura. Nos anos 90, começaram a chegar muitos ucranianos, por exemplo. Começou-se a refletir sobre isso. A impressão que me dá é que também é difícil um emigrante falar mal do seu país. É uma relação complicada. Aqui toda a gente fala, há um debate importante. Mesmo que não queiramos, existe. É preciso defender as nossas ideias. Claro que em Portugal também existe por causa do surgimento do Chega. Mas aí há problemas que não se debatem, a emigração é um deles. Não sei porque se fala tão pouco sobre isso num país de emigrantes. Encontro, por vezes, emigrantes portugueses que já não querem falar desse passado. Dizem-me: “que interesse tem de se falar nisso? Já passou!”. Encontro muito. Se se falar agora, é voltar à miséria.
Destapar a ferida.
Pois. Em que medida é que não temos direito ao esquecimento? Eu gostava de esquecer, francamente. Estou farto disso. O William Faulkner é que diz que o passado está no presente. Concordo. O problema é que vejo o que se está a passar e não consigo esquecer. Se enterrasse a cabeça, talvez. Por isso é que fiz este filme. Vejo o que se passa com os africanos ou com os sírios, afegãos, gente do mundo inteiro, como posso esquecer? Os jovens que fugiram da Guerra Colonial, como podem esquecer? Pode-se até estabelecer uma relação entre a falta de debate sobre essa guerra com e a emigração. O problema não será o mesmo? Também se passou em Espanha. Por exemplo, não compreendo como é que pessoas que fizeram parte do regime, como o José Hermano Saraiva, podiam servir de historiadores na televisão. Um dia estava em Lisboa e vi um arquivo dele, era ministro da Educação em 69, de repente, passado uns anos, vejo-o num cartaz. Para mim seria impossível. Aqui ninguém compreende isso. Dizem-me para esquecermos tudo, se não, não nos safávamos. Esquecer? Está bem, pronto…
Sente que existe resistência aos seus filmes em Portugal?
Claramente. Sinto isso. A primeira vez que tive uma projeção foi em Lisboa, em 2005. Passaram três ou quatro. Foram os franceses que o projetaram. Depois só em 2014, em Melgaço, num festival de emigração para França. Passaram seis ou sete, já tinha feito mais. Hoje quem se preocupa mais são alguns cineclubes. Porque se não… puf.
Porquê? Deram-lhe alguma justificação?
Não. Quem encontro com interesse, é quem realmente está interessado. Não sei porque razão…
Tivemos a “Gaiola Dourada”, uma comédia sobre emigrantes em França, foi um grande sucesso.
Eu sei, eu sei. Um milhão de entradas em Portugal, praticamente.
Só que isso é uma versão soft.
Aquela visão completamente cliché do bom português, simpático, epá… quem conheço não gostou. Mas os emigrantes cá gostaram muito. Foi a primeira representação significativa que tiveram. E as pessoas riem-se. Eu, por acaso, nunca me rio. Não tem piada nenhuma. Acho algo perigoso porque se está a dar sempre a mesma imagem do português trabalhador, ao serviço dos franceses. O Paulo Branco é que há três ou quatro anos quis fazer uma retrospetiva. Também vai passar agora no DocLisboa, porque foi selecionado. Não se passa muito mais do que isso. Mas não é um problema só meu. É um problema em Portugal, da difusão do documentário. É complicado. Em França é mais simples, há uma capacidade e diferenciação cultural enorme. Os filmes estão sempre a passar, nos festivais também. Existem possibilidades. Em Portugal não está tão desenvolvido. Quando uma pessoa vai para o interior do país…
Que trabalho tem feito no interior?
Estou a trabalhar numa aldeia, já fiz o “Pão que Diabo Amassou”. E também estou a fazer outro sobre a ocupação do Estado nos baldios nas aldeias. É um mundo que está a desaparecer completamente. Ouço falar, leio jornais portugueses sobre a desertificação do interior, mas está claramente a desaparecer. Conheci-o quando nasci. Vivi sete anos em Portugal. Claro que há alguns esforços, mas o que vejo, e que é perigoso, é o turismo naquelas serras. Vê-se qualquer coisa. Onde filmo, só vejo isso. Mas há quem esteja a fazer outras coisas. Ali não há nada. Aquela serra está a morrer. Os incêndios passaram por lá, em cinco anos, destruíram tudo. Não sei o que será feito ali. Claro que a minha experiência é muito local, não tenho um ponto de vista geral sobre o problema em Portugal. Isso do interior já é a morte de um mundo que conheci. Estou a vê-lo a agonizar. Já tenho 65 anos, tem a ver com o momento da minha vida. Há momentos em que fazemos os filmes, e esse que estou a fazer aparece mais tarde, claro.
Deduzo que se sinta mais francês quando vem cá. O que guarda desse ser português?
Resolvi o problema assim. Quer dizer, não sei se completamente. Mas Portugal é o país da minha infância. Até agora tenho resolvido assim. A minha relação é ir trabalhar lá. Se não estiver, não vou. Pronto, é assim. E pouco mais. É a realidade, não é para dizer mal. Estive em Lisboa dois meses, vivia a hora francesa, ao nível das informações. Houve eleições em Portugal, eu percebo, mas nem abri o envelope para votar. É o país da infância, pronto. Sei que há problemas, que há um partido de extrema direita. Mas para mim fundamentalmente é isso. Não posso fazer tudo ao mesmo tempo. Já temos problemas que cheguem aqui.