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Helmut Gregor, Fausto Rindón, Wolfgang Gerhard — Josef Mengele adotou muitos nomes ao longo da vida. Aquele que se lhe cola melhor, no entanto, é “Anjo da Morte”, alcunha que lhe foi dada devido ao seu papel como médico das SS — o corpo paramilitar de elite do Terceiro Reich — no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, onde conduziu experiências mortais e desumanas sobre prisioneiros e foi responsável por selecionar pessoas para as câmaras de gás. No interior do estado de São Paulo, contudo, Mengele ficou conhecido por outro epíteto, bem mais amistoso, o de “tio Peter”. Foragido desde a queda do regime nazi, Mengele assumiu várias identidades e manteve-se incógnito na América do Sul enquanto a maior parte do mundo esqueceu a sua existência. Chegado ao Brasil, viveu os últimos anos da vida em relativa paz, até 7 de fevereiro de 1979, dia em que sofreu um AVC a nadar numa praia em Bertioga e morreu afogado.
Baviera Tropical, livro de investigação de Betina Anton publicado recentemente em Portugal pela Casa das Letras, surge no âmbito dessa vida quase idílica que Mengele conseguiu ter, apesar dos seus crimes e com a conivência de alguns amigos. Um deles, Lisolette Bossert, foi professora de infância da jornalista brasileira, que falou com o Observador sobre como tomou conhecimento desta história, as motivações e as lições a retirar desta obra. A jornalista traça a vida de Mengele desde o início auspicioso enquanto estudante de medicina até ao momento em que o seu corpo foi exumado perante as câmaras do mundo num cemitério paulistano em 1985. Pelo meio, Anton conta não só o abraçar da ideologia do Terceiro Reich, o desfile de horrores perpetrado por Mengele e os estratagemas que adotou para evadir-se à justiça internacional e aos caçadores de nazis.
A razão pela qual Anton se alonga pela vida de Mengele antes de se instalar na Baviera Tropical onde viria a perecer é simples: “Se eu contasse só a parte da vida dele aqui no Brasil, as pessoas podiam começar até a simpatizar por ele como fez a própria Liselotte”, conta. Ao invés, a sua investigação levou-a ao local dos seus crimes, “para ninguém relativizar o que ele fez”. E se “Anjo da Morte” ajudou a espalhar a infâmia de Mengele, também criou problemas, defende a jornalista, já que o caricatura e transforma-o “num carrasco ou numa aberração, e não num ser humano”. “Se começamos a tratá-lo com adjetivos sensacionalistas, parece que foi uma exceção à regra — e não foi”. Ao longo da conversa, a autora recorda também que “Mengele não era um maluco ou um lunático, era sim um médico muito gabaritado [conceituado] e que estava inserido na ideologia do Terceiro Reich”. Perante a subida da extrema-direita a nível mundial, Anton alerta a possibilidade de “levar os seres humanos a lugares muito escuros”.
Para muitos jornalistas, o desafio da profissão está em encontrar uma história de interesse público. No seu caso, a história aconteceu-lhe a si, já que Liselotte Bossert foi sua professora. Pode explicar como se deu o início deste projeto?
Essa história está na minha mente desde que sou criança. Sempre foi um assunto que me intrigou, porque ouvia os adultos falarem na escola, e na minha casa também, sobre o nome “Mengele”. E eu sabia que tinha acontecido alguma coisa muito errada com ele, que era uma pessoa má e que a minha professora tinha feito alguma coisa muito errada também, mas não conseguia entender a dimensão do que tinha acontecido. Então, essa história sempre ficou na minha cabeça.
Além disso, na minha infância aqui no Brasil, a gente via programas sobre o que o Mengele tinha feito. Eu não sei dizer se foram muitas, mas foram com certeza reportagens marcantes, porque ficaram na minha cabeça, sobre as experiências de Mengele em Auschwitz. Fiquei desde então a pensar porque é que ele tinha feito aquelas coisas, porque é que a minha professora o tinha protegido. Enfim, tinha uma série de perguntas na cabeça e resolvi, escrevendo o livro, respondê-las.
Portanto, a ideia esteve a borbulhar na sua cabeça durante muito tempo. Qual foi o gatilho para pegar neste projeto e escrever o livro?
Sou jornalista há mais de 20 anos, mas também estudei história — fiz um mestrado em história em Londres, na London School of Economics — e sempre tive vontade de pegar temas do jornalismo e aprofundar um pouco mais desse lado. Então, nesse livro, eu juntei essas duas minhas paixões, desvendando uma história muito antiga para mim, que estava na minha cabeça desde a infância, que é a história do Mengele.
Trabalho há muitos anos com histórias muito interessantes e sempre tive vontade de aprofundar algumas delas. Aqui, na América do Sul, temos por exemplo as histórias das FARC [as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], que sempre me fascinaram, houve uma época que teve vários sequestros. Neste caso, em específico, foi por causa da história da infância. Um dia eu estava numa reunião de pauta [agenda] do jornal e o meu chefe estava a contar uma história incrível, de um nazi que tinha fugido e todas as peripécias dele no pós-guerra. Ele disse que tinha visto um filme baseado numa história real de um livro de um jornalista. Eu falei “tá aí, eu tenho uma história real, eu vou contá-la”.
Mengele conseguiu manter-se incógnito durante perto de três décadas desde o fim da II Guerra Mundial. Como foi possível um dos mais infames criminosos do regime nazi conseguir viver assim até à sua morte?
Ele conseguiu fugir e escapar porque era muito precavido, estava sempre um passo à frente dos captores. Dessa forma, conseguiu fugir da Europa, quatro anos depois da guerra. Ele estava na Alemanha e não foi capturado porque não voltou para casa, ele já sabia que isso podia ser um problema. Depois foi para a Argentina, onde chegou com o nome falso e chegou a viver à vontade durante um período. Só que, como a Alemanha emitiu uma ordem de prisão em 1959, ele foi já prevenido. Não continuou em Buenos Aires, porque a Argentina podia extraditá-lo e assim seria preso. Então, o que fez? Foi para o Paraguai, onde achou que estava seguro. Só que, em 1960, sequestram o Eichmann e aí percebe que não só tem de ter medo da extradição, como também de ser raptado pela Mossad. É então aí que ele vem para o Brasil e fica a morar aqui, no interior de São Paulo, num lugar muito difícil de ser encontrado. Ou seja, ele estava sempre um passo à frente dos captores, tanto dos caçadores de nazis, quanto da justiça alemã. Além disso, aqui no Brasil pouquíssimas pessoas conheciam a sua verdadeira identidade. Ele tinha um modus operandi em que só revelava o nome quando já tinha uma convivência de vários meses com a pessoa, que sabia que essa pessoa seria leal e não iria denunciá-lo.
Mas, ao mesmo tempo, ele pôde contar com uma rede de simpatizantes, de admiradores e até de amigos da sua família que o foram auxiliando, não é? Como é que isso se deu?
Quem recebeu o Mengele aqui no Brasil foi Wolfgang Gerhard. Esse, sim, era um “nazi de carteirinha”, um austríaco que veio para o Brasil no pós-guerra. Todas essas famílias vieram para o Brasil nessa altura, mas nem todas eram nazis. A família Stammer, com quem ele morou por 13 anos, era uma família de húngaros e não eram nazis, eram anticomunistas. Tinham fugido da Hungria por causa do regime comunista. Aqui em São Paulo, a gente tem a característica de ter muitos europeus expatriados e no pós-guerra isso era ainda mais acentuado. Então, nessas rodas [nesses círculos] de expatriados, acabavam a conhecer-se uns aos outros. E foi assim que o Wolfgang Gerhard apresentou o Mengele à família Stammer, a primeira a dar-lhe proteção. Depois houve outras duas famílias que acabaram a conhecer a identidade dele também — uma era a família da minha professora, da Liselotte Bosset, que era austríaca.
Não sei dizer se a Liselotte era nazi ou simpatizante, mas o marido dela sim, pelo que dizia e conversava. E ele tornou-se um grande amigo do Mengele — ao contrário da família Stammer. Geza Stammer não era amigo do Mengele, mas o Wolfgang Gerhard e o Wolfram Bosset, sim, tanto é que no livro há uma foto dos três juntos conversando, e eles trocavam cartas, enfim. O Mengele até teve uma zanga com o Wolfgang Gerhard por causa de dinheiro e o Wolfram tentou mediar a situação para eles continuarem juntos, como amigos.
Inclusivamente até refere que, no caso da família Stammer, receberam Mengele sem saber de início quem ele era e depois foram convencidos a não denunciar por medo de represálias — inclusivamente por terem acolhido um foragido. Mas outras pessoas, como o caso da Liselotte Bosset, podiam ter denunciado Mengele por razões morais ou até financeiras, dado o prémio milionário que foi oferecido pela sua captura, mas nunca chegaram a fazê-lo. Porquê?
Para fazer a investigação deste livro, tive acesso a um inquérito policial, que foi a investigação feita em 1985, quando se descobriu que o corpo do Mengele tinha sido enterrado no cemitério do Embu, que é muito perto da minha casa, a menos de 30 quilómetros. Nessa investigação, Liselotte Bosset deu vários depoimentos à Polícia Federal Brasileira, e neles disse que não tinha entregue Mengele porque tinha sofrido ameaças, que não devia fazer denúncias.
Só que ela também reconheceu, quando me deu uma entrevista pessoalmente, que os seus filhos já se tinham afeiçoado a Mengele. Quando ela o conheceu, não sabia quem era, conheceu-o enquanto Peter. Então, quando ela descobriu quem ele era realmente, foi tarde demais, porque ele já tinha virado um membro da família e os filhos dela chamavam-lhe “Titio”. E nas cartas, que é o elemento mais novo deste livro, há muitos detalhes quanto à intimidade do Mengele aqui no Brasil. A gente vê que ele era realmente uma parte da família, ia de viagem com eles, brincava com as crianças, fazia passeios com elas, ia com elas à cachoeira [cascata]. Há fotos no livro que o mostram, ele até construiu um barco para as crianças. Para elas, Mengele era como um tio muito presente. Então tornou-se muito difícil denunciar alguém tão próximo.
Mas a própria Liselotte afeiçoou-se também, não foi? Há um momento no livro em que escreve que quando teve de entregar um envelope com provas sobre a presença de Mengele no Brasil, chegou-o ao peito antes de cedê-lo, como que relativizando quem ele foi e quem ele se tornou para ela naquele momento, não é?
Exatamente, ela relativizou muito quem ele era e defendia que Mengele tinha sido apenas um cientista. Não sei se ela queria acreditar nisso, e ele também negava muito o que tinha feito. Por isso fiz questão absoluta no livro de relembrar todos os crimes que ele cometeu em Auschwitz e também mostrá-lo de uma maneira em que isso fosse inegável. Para tal, fiz uma imagem de 360 graus de Mengele em Auschwitz, dando depoimentos de pessoas de diferentes nacionalidades, níveis sociais e idades para ser inegável o que ele fez. Porque alguém poderia falar assim, “ah, não, essas experiências foram apenas denunciadas por crianças”. Não é verdade. Se eu tenho depoimentos de crianças vítimas dele? Sim, mas também tenho de médicos que trabalharam com ele, de mães, de pessoas adultas, até idosos. Foi uma preocupação muito grande que tive, para ninguém relativizar o que ele fez.
Esse é um tema chave do livro, porque podia ser “apenas” um livro sobre a vida de Mengele no Brasil, mas fez questão de detalhar o que ele fez enquanto médico das SS em Auschwitz, multiplicando-se em relatos, muitos deles tenebrosos, das suas vítimas. Houve esse objetivo de abrir a história também a estes aspetos?
Sim, porque se eu contasse só a parte da vida dele aqui no Brasil, as pessoas podiam começar até a simpatizar por ele como fez a própria Liselotte. Eu não sei se ela acreditava ou se queria acreditar que ele não tinha feito todas aquelas coisas. Porque para ela deve ter sido doloroso pensar que uma pessoa tão próxima da família tinha feito tudo aquilo. É difícil, realmente, acreditar que uma pessoa, qualquer pessoa, fosse capaz de tanta crueldade, ainda mais uma pessoa que estava na casa dela. Então eu acho que ela preferia negar todas essas informações. Daí considerar muito necessário contar essa parte da história também, até para as pessoas conhecerem.
Apresento investigações novas nesta pesquisa, entrei em contacto com investigadores alemães e com o próprio museu de Auschwitz, para tentar entender porque é que o Mengele tinha feito essas experiência. E lá na Alemanha, conheci uma investigadora chamada Carola Sachse, e ela deixou muito claro para mim que existia essa ligação entre o Mengele em Auschwitz e o Instituto Kaiser Wilhelm em Berlim. Outro ponto importante do livro é entender que o Mengele não era um maluco, não era um lunático, era sim um médico muito gabaritado [conceituado] e que estava inserido na ideologia do Terceiro Reich. E que essa ideologia era extremamente perigosa e podia provocar barbaridades, tal como o que aconteceu durante o Holocausto.
Sem querer relativizar os crimes de Mengele, o retrato que faz no livro mostra-nos não um homem propriamente sádico, mas sim extremamente cínico e que queria avançar na carreira a qualquer custo.
Ele tinha ambição muito grande. O pai dele era um empresário e Mengele queria escrever o próprio nome na história. Por isso, esforçou-se muito nos estudos, fez dois doutoramentos em grandes faculdades na Alemanha, na Universidade de Munique e na Universidade de Frankfurt. E ele achou que indo para Auschwitz era uma maneira de avançar também na investigação, porque lá teria acesso a vários tipos de “raças”, como falavam na época: judeus, ciganos e também gémeos.
Porquê os gémeos? De onde vem essa obsessão?
Até chegar a Auschwitz, Mengele nunca tinha feito experiências com gémeos. Mas ao chegar lá, conseguiu reunir um número muito grande de gémeos — refiro mesmo que criou uma espécie de campo de concentração à parte de gémeos, reuniu centenas de pares de irmãos para fazer essas experiências. No livro, eu faço uma comparação com base em dados dos investigadores alemães, de que o tutor dele, Otmar von Verschuer, que era o “papa” desse assunto na Alemanha, demorou anos para reunir a mesma quantidade de gémeos que Mengele conseguiu em poucos meses. Além disso, Mengele não tinha nenhum controlo moral ou legal em Auschwitz. Então, ele podia fazer a pesquisa, como a gente fala aqui no Brasil, “que desse na telha” [“que lhe passasse pela cabeça”].
Porque, no fundo, ele tinha um manancial de cobaias humanas. E, ao mesmo tempo, com total ausência de controlo científico, moral e ético sobre o que estava a fazer.
A moral daquela época permitia fazer coisas absurdas com outros seres humanos, simplesmente pelo facto do racismo dar uma proteção moral a essas pessoas, para acharem que “se for uma pessoa que não é da minha raça, eu posso fazer o que quiser”. Por isso, ele fazia o que quisesse com ciganos e com judeus, e jamais teria feito isso com alguém que ele considerasse ariano, por exemplo. E quando Mengele vem para o Brasil, vemos que ele continua uma pessoa extremamente racista. Só que aqui ele não teve contacto direto com judeus, teve com negros. E demonstra muito claramente esse racismo, ele dizia aos seus funcionários que não deviam relacionar-se com negros.
E que o fim da escravidão tinha sido um erro, como escreve no livro.
O que acho muito irónico e que parece até uma piada é que o Mengele adorava ver as novelas brasileiras. E aqui no Brasil, a gente fala na “novela das seis, novela das sete, novela das oito”, e ele via as três, todos os dias. Além de dizer que gostava de manter a linha, então comia saladas. Então a gente pensa assim: “Um criminoso dessa estatura, preocupado com a forma física e viciado em novelas…”
É interessante abordar isso também, porque não sendo esta uma biografia de Mengele, Baviera Tropical não deixa de apresentar-nos um retrato multifacetado, Desde o homem que quase que pulava de alegria quando encontrava novas cobaias quando as pessoas saíam do comboio para o campo de concentração, até ao pai que mandou cartas a felicitar o filho pelos estudos, ou ao idoso que tentou justificar de forma patética o seu trabalho ao filho quando ele foi visitá-lo ao Brasil. É justo afirmar que não quis apresentar uma ideia unidimensional de Mengele?
Como fiz a investigação baseada em documentos originais, na correspondência de Mengele, essas cartas vão contra os clichês, porque a gente fica esperando uma coisa e encontra outra. Vemos um homem que gostava muito de conversar com os amigos, de falar sobre o mundo, que era muito interessado em manter-se informado e estar atualizado culturalmente. E no Brasil, ele encontrou essa oportunidade, porque tinha uma vasta biblioteca em alemão — aqui perto de onde eu moro, no bairro do Brooklin, há uma livraria alemã que dura até hoje — e ele podia continuar a saciar essa vontade de conhecimento intelectual. Ficamos a conhecer esse outro lado.
Agora, ele também deixou muito claro nas cartas, principalmente depois de morrer o Wolfgang Gerhardt, que era o grande amigo dele, que tinha muito medo de morrer aqui no Brasil sem afeto, esquecido pelos amigos, sem ninguém por perto. Porque ele considerava que os empregados — ele tinha um jardineiro e uma empregada doméstica — eram pessoas que não conheciam a sua verdadeira identidade, eram pessoas com quem ele falava português. Mengele aprendeu português e falava-o com sotaque espanhol, porque morou muitos anos na Argentina, mas o nível de conversa que ele tinha com esses funcionários, com os vizinhos, não era o mesmo que tinha com os seus amigos. Então ele sentia falta desse lado intelectual, desse lado afetivo. Numa das cartas, ele coloca as coisas assim; “tudo bem, eu posso ter alguém aqui para cuidar de mim, cozinhar e tratar da casa, mas sobre o que é que eu vou falar com uma pessoa dessas? Nem sei o que perguntar ou o que conversar”.
É um erro caricaturar estas figuras, apesar de tudo o que fizeram e das ideologias extremas?
Exatamente. É por isso que no livro decidi usar a expressão “Anjo da Morte” apenas uma ou duas vezes. Porque se o fizer continuamente, transformo-o num carrasco ou numa aberração, e não num ser humano. E Mengele não foi uma aberração, foi um homem inserido numa ideologia racista e que permitia este tipo de coisas. Temos de estar alerta face à ideologia de extrema direita porque ela pode levar os seres humanos a lugares muito escuros. Temos de entender que os nazis eram seres humanos fazendo coisas terríveis e cruéis, e tentar entender o que permitiu Mengele fazer coisas destas sem nunca ter sido punido. A reflexão tem de ser por aí. Se começamos a tratá-lo com adjetivos sensacionalistas, parece que foi uma exceção à regra, e ele não foi. Como ele, houve outros médicos que fizeram experiências médicas em seres humanos, que não tinham ética nem moral, porque estavam num regime que permitia isso. E para nosso horror e espanto, essa ideologia não morreu, ela ainda ronda pela Europa. Vemos a Alternative für Deutschland, a AFD, um partido a ganhar força na Alemanha e que é extremamente xenófobo. O antissemitismo também está a voltar agora, com a guerra em Gaza. Estas são questões que não desapareceram e é por isso que temos de ter muito cuidado.
Apesar de haver uma certa banalização e até aproveitamento cultural à volta do Holocausto e de Auschwitz — desde romances a filmes, por exemplo — o que se passou continua a dar-nos pistas sobre a natureza humana. O que é que ainda podemos aprender com histórias como a de Mengele?
Temos muita coisa a aprender, há vários temas que a gente deve levar em conta. Ele foi um criminoso de guerra que acabou morrendo afogado na praia durante o verão no Brasil, nos braços dos amigos, e nunca foi punido. Isso, tanto para as vítimas como para todos nós como civilização, é um sinal muito ruim. Passa a ideia de que um criminoso pode cometer barbaridades, mesmo que seja numa guerra, e nada vai acontecer. Vemos um exemplo disso com Putin, sobre quem o Tribunal Penal Internacional emitiu uma ordem de prisão e parece que nada vai acontecer também, certo? Essa é uma reflexão que tem de ser feita — os criminosos de guerra têm de ser punidos; se não são, quais são as causas?
Outra coisa em que penso também é no tempo todo em que Mengele esteve no Brasil. Porque é que não foi denunciado? As pessoas que o protegeram não tinham consciência de quem ele era, não fizeram uma reflexão do que isso podia impactar nas suas vítimas? Houve filhos que perderam os pais por causa de Mengele, vítimas que sofreram a vida inteira consequências para a sua saúde porque ele injetou-as com doenças só para ver o que acontecia. Nas minhas conversas com os sobreviventes das experiências dele — todas elas pessoas idosas, algumas das quais faleceram durante a escrita do livro — a reclamação é sempre a mesma: sofreram de problemas de saúde até o fim da vida e nem sabiam o que tinham por causa das injeções.
Escreve no livro, a propósito do momento em que se vai exumar o corpo de Mengele no cemitério do Embu, que por vezes ocorrem “grandes momentos históricos em que todas as forças confluem para resolver uma questão latente há décadas, mas que de repente parece urgente, um caso de vida ou morte”. Não obstante os mandados de detenção e as tentativas de alguns caçadores de nazis em apanhá-lo, o mundo pareceu entorpecido quanto a Mengele — aliás, refere como a comunidade internacional despertou para o tema apenas após uma sobrevivente criar um movimento. Porque é que esteve adormecido durante 40 anos?
Aí entramos também noutra reflexão, quanto a estas questões muito fortes que permeiam a nossa sociedade, que estão latentes o tempo todo e que, de repente, precisam de um evento ou de um movimento que as faça explodir e levar a sociedade a olhar para elas. No caso do Mengele, do meu ponto de vista, foi esse julgamento fictício em Jerusalém, em que as próprias vítimas reuniram-se para falar sobre o que lhes tinha acontecido. O Mengele já estava morto, mas as pessoas não sabiam, e o julgamento foi muito importante para mostrar os seus crimes ao mundo, até porque teve transmissão internacional — passou inclusive no Brasil e deve ter passado também em Portugal. A sessão mostrou que as coisas que aconteceram [em Auschwitz] foram tão absurdas que as autoridades finalmente pensaram “não podemos deixar tal criminoso à solta”. E foi então aí que Israel, Alemanha e os EUA uniram esforços para chegar até Mengele. Uma vez que tomaram essa decisão, rapidamente chegaram ao endereço da minha professora Liselotte Bossert aqui no Brasil, e finalmente descobriram a história. O problema aí é que as autoridades demoraram a confiar no resultado da perícia brasileira, havia um preconceito muito grande na época contra os profissionais que fizeram a exumação. Eles demoraram, tanto que o governo de Israel só ficou convencido que aquele era o corpo de Mengele em 1992, quando recebeu o teste de ADN.
Mas uma questão mais nebulosa também é que supostamente houve um certo interesse em colocar em causa a veracidade da descoberta, porque podia não ser propício revelar naquela altura que Mengele já estava morto. O que aconteceu?
Pelo que percebi na minha pesquisa, havia preconceito contra os especialistas brasileiros. Eu vi as fotos e os vídeos da exumação e podemos constatar que havia despreparo — os ossos foram passados por mãos sem luvas e foram colocados numa caixa. Quando chegaram ao IML [Instituto Médico Legal], perceberam que faltavam ossos, tiveram de regressar ao cemitério, etc… Realmente, parece que o trabalho não foi feito de forma muito técnica. Mas a perícia em si foi feita por profissionais muito gabaritados aqui do Brasil. Os estrangeiros não puderam participar no processo, mas puderam observar o que estava a ser feito — e mesmo assim colocou-se muita dúvida. Houve depois pessoas céticas, como, por exemplo, o caçador de nazis Simon Wiesenthal, que não sabiam onde estava o Mengele e durante muito tempo foram dando pistas. Wiesenthal dizia que ele estava no Paraguai, e então fico a imaginar se essas pessoas não ficaram a sentir-se mal por terem passado tantas informações que não batiam certo com a realidade. Então optaram por colocar em dúvida a descoberta.
Um pouco para proteger a sua reputação ao terem falhado na investigação?
Claro, porque diziam que Mengele estava vivo e ainda morava no Paraguai, mencionaram até a cidade. Como é que podiam ter essa certeza se ele já estava morto? Chega a ter graça!
O seu livro foi lançado no mesmo período em que o filme A Zona de Interesse” se estreou nos cinemas. Uma ponte que podemos estabelecer entre as duas obras é a forma como tantas pessoas relativizaram a sua relação com os horrores do regime nazi. Concorda?
Muitas pessoas já vieram falar-me desse filme. Não vi ainda, mas sei que é a história da família do Rudolf Hess, que morava no campo de concentração de Auschwitz. Mas sim, acho que está muito relacionado. Os horrores acontecem e as pessoas fingem que nada acontece. Há uma parte do meu livro em que narro a visita da Irene [Schönbein, casada com Mengele entre 1939 e 1954] a Auschwitz, inclusive o Rolf [Mengele, filho do casal] é concebido em Auschwitz e eles vão passear, colher amoras, nadam no rio como se nada estivesse a acontecer, não é? E aqui também, com os amigos de Mengele no Brasil. Durante a sua exumação, quando a imprensa cai em cima da Liselotte e do Wolfram, eles minimizam o que o Mengele fez. O Wolfram faz questão de dizer que ele era seu amigo. E assim vemos, não sei o que acontece com o ser humano, mas ele tenta negar uma parte monstruosa de alguém que seja seu amigo.
E o próprio Mengele, quando fala com o filho e tenta justificar o que fez como sendo um trabalho científico. Até que ponto é que ele está a mentir e até que ponto é que ele próprio está a querer convencer-se, anos depois, de que isso foi o que fez?
Acho que ele acreditava que estava a fazer um trabalho científico. Mas omitiu a sua crueldade, omitiu que foi muito além do onde deveria ter ido ao fazer experiências sem sentido nenhum — como o que fez à Ruth Elias, a quem mandou amarrar os seios para ver quanto tempo uma bebé conseguia aguentar sem alimentação. Há relatos muito cruéis que vão muito além de qualquer investigação científica, mesmo dentro do contexto científico do regime nazista, que já permitia coisas terríveis.
Grande parte deste caso passa-se literalmente ao lado de sua casa. Os jornalistas são incentivados a reportar de forma objetiva, apesar de este ser um conceito mais tentado que conseguido. Como foi conduzir este processo com uma história a tocar de tão perto naquilo que foi também a sua infância e a sua comunidade?
Essa é uma boa pergunta. Em primeiro lugar, eu mesmo tinha as minhas dúvidas e queria ter a certeza de que a minha escola não tinha sido um lugar que abrigava nazis ou que pudesse permitir esse tipo de coisas. Eu tinha curiosidade em saber o que as pessoas na época pensavam e por isso conversei com o diretor da escola, com várias mães daquela época, com todo o tipo de gente para poder ter essa resposta — muitas pessoas não deram o nome porque ficaram muito receosas de serem ligadas ao caso Mengele. Mas o que me deixou mais tranquila em relação à investigação que fiz sobre a minha própria comunidade foi que encontrei uma mãe que é judia, mas que antes não revelava a ninguém que era judia porque tinha muito medo, os avós tinham morrido em Auschwitz, inclusive pela mão do Mengele. A mãe dessa mulher conheceu o Mengele pessoalmente em Auschwitz e os filhos dela estudavam na escola alemã onde eu estudava e eram também alunos da Liselotte. Quando ficou a saber que Mengele tinha sido protegido por essa professora, ficou apavorada e tinha certeza que ia retirar os filhos da escola. Mas acabou por não precisar de fazer isso, porque a Liselotte foi mandada embora. Ainda assim, perguntei-lhe se sentia que existia antissemitismo na escola ou alguma menção ao nazismo, e ela disse que jamais se sentiu ameaçada, que nunca ouviu nenhum “papo” em relação a isso nem desrespeito em relação a judeus.
Achei isso muito significativo, principalmente vindo de uma pessoa com muita preocupação quanto a esta questão, a ponto de tirar o apelido judeu do nome, a ponto de batizar os filhos quando eles eram muito pequenos, porque tinha muito medo se não tivessem um certificado de batismo. Claro que eram medos infundados, porque no Brasil daquela época, das décadas de 70 e 80, isso já não era uma questão. Esse medo que ela tinha de ter era na Alemanha nazi, entendeu? Mas o medo permaneceu muito forte e com o depoimento dela fiquei tranquila em relação a isso. A minha escola não era um antro de nazis, não existia essa apologia ao nazismo. Mas é claro, houve alguns criminosos nazistas aqui em São Paulo e de alto escalão.
Como por exemplo?
O comandante de Treblinka e Sobibor [campos de extermínio na Polónia ocupada], o Frank Stang, morava a cinco quilómetros da minha casa, no Brooklin também. O Gustav Wagner [oficial austríaco das SS que foi comandante-adjunto de Sobibor] morava aqui em Atibaia, uma cidade do interior, fiquei a saber que ele era caseiro no sítio de uma família alemã da escola. O Herberts Cukurs, que era das SS na Letónia e participou num massacre de judeus, vivia na Represa Billings. Tínhamos criminosos nazis aqui em São Paulo, sim, mas a comunidade alemã não era nazi.
Mas imagino que haja um amargo de boca, devido a ter pessoas ligadas a um regime tão horrível a viverem tão próximo, mesmo que não tenha havido essa contaminação ideológica.
Algumas pessoas da comunidade alemã que conheço perguntaram-me porque é que eu estava a fazer este livro se os alemães já têm esse estigma do nazismo, porque é que eu queria reforçar essa imagem de que a comunidade alemã protegeu um nazi como Mengele? E durante algum tempo andei com isso na cabeça e fiquei com medo também de como ia ser a reação dentro da comunidade alemã, e fora também. Claro que isso era uma preocupação, mas agora que o livro saiu — foi lançado aqui no Brasil em novembro —, estou muito tranquila porque as pessoas na comunidade alemã receberam-no muito bem. Muitas pessoas estão a lê-lo, estão a refletir e gostar do livro.