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Juan Gabriel Vásquez nasceu em Bogotá em 1973. Jornalista, ensaísta, tradutor e escritor, publicou originalmente o livro que agora é lançado em Portugal em 2020, com o título "Volver la Vista Atrás"
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Juan Gabriel Vásquez nasceu em Bogotá em 1973. Jornalista, ensaísta, tradutor e escritor, publicou originalmente o livro que agora é lançado em Portugal em 2020, com o título "Volver la Vista Atrás"

Juan Gabriel Vásquez nasceu em Bogotá em 1973. Jornalista, ensaísta, tradutor e escritor, publicou originalmente o livro que agora é lançado em Portugal em 2020, com o título "Volver la Vista Atrás"

Juan Gabriel Vásquez. "Se há um talento que vai dividir a humanidade nas próximas décadas, é o de ler correctamente"

Um dos autores fundamentais das letras latino-americanas contemporâneas, Juan Gabriel Vásquez fala-nos sobre a Colômbia, o futuro das relações humanas e o papel vital da literatura.

Juan Gabriel Vásquez (Bogotá, 1973) é um dos mais importantes escritores latino-americanos da actualidade. Em Portugal, tem sido editado pela Alfaguara, que recentemente publicou a obra Olhar Para Trás, um monumental romance em que, partindo da experiência de vida de Sergio Cabrera, cineasta seu amigo, Vásquez olha para as convulsões entre a Europa, a China e a Colômbia no século XX.

Em 2018 foi distinguido com o prémio Casino da Póvoa, das Correntes D’Escritas. Desta vez esteve em Portugal para participar no Fólio (Festival internacional Literário de Óbidos), conversámos com o autor sobre um livro que parte de uma história de vida, sobre “feridas abertas” e silêncios que exigiram “muita responsabilidade” na hora de transformar a matéria prima em romance.

Juan Gabriel Vásquez vence Prémio Literário Casino da Póvoa

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Mas esta foi também uma conversa sobre a Colômbia e as convulsões que o país tem atravessado — país que, em 1996, o autor trocou pela Europa durante 16 anos, para prosseguir os estudos em literatura latino-americana mas também para fugir do caos e da violência; uma conversa sobre o passado e a actualidade de um país e das pessoas que o constroem; e sobre o futuro das relações humanas e o papel que a literatura pode desempenhar numa era em que a comunicação e a informação nunca correram tão depressa e, ao mesmo tempo, nunca despertaram tantas dúvidas.

A capa de "Olhar Para Trás", de Juan Gabriel Vásquez. A edição é da Alfaguara, a tradução é de Vasco Gato

Olhar Para Trás [Alfaguara, 2021] parece a sua narrativa mais complexa. Sentiu uma maior dificuldade ao fazê-lo?
Sim, é o livro mais complexo que fiz, por várias razões. Uma é o material, que é a vida de uma pessoa real e que, ainda por cima, é minha amiga. Dois amigos meus, o Sergio Cabrera [cineasta colombiano] e a sua irmã, contaram-me a história deles para eu escrever o romance, e isso deixou-me com uma grande responsabilidade. Eram memórias difíceis e dolorosas, que deixaram nas suas vidas e nas suas relações de família muitos silêncios e muitas feridas. Escavar isto exigia muito cuidado pela responsabilidade de dar permanência a algo que eles tinham querido esquecer a vida toda.

Também foi difícil porque o romance fala de algo muito controverso na Colômbia. A nossa relação com o nascimento dos movimentos armados dos anos 60 é difícil, tensa, está cheia de dor, e para mim era muito importante conseguir encontrar uma forma de contar a história que não passasse pelas minhas opiniões e pelos meus juízos. Fiz muitos esforços técnicos para construir o livro de uma maneira que me deixasse ausente. Escrevi de forma a entrar nas convicções e na consciência destas personagens, para contar o livro a partir daí, para que não estivessem lá as minhas opiniões nem os meus julgamentos. O objetivo era construir um livro que convidasse o leitor a tentar entender estas personagens.

Quando o Sergio fica estupefacto com a direcção do referendo sobre os acordos de paz, não se sentiu como ele?
Esse episódio é muito problemático na Colômbia e foi traumático para quem apoiava os acordos. Foi marcado pela mentira, pela distorção e pela falta de informação por parte de uma campanha muito organizada pelos inimigos do processo. Sentimos que era uma grande oportunidade perdida para o país, e a vitória foi injusta, porque se sustentou em enganos. Estou completamente de acordo com o Sergio, entendemos esse fenómeno da mesma forma. Como eu não podia estar no livro, tudo o que ali temos são as opiniões e as percepções dele.

Quando se fala do referendo no romance, há que lembrar que faz parte de uma crise vital do Sergio: ao mesmo tempo que a Colômbia acabava de rejeitar os acordos de paz, o pai dele acabava de morrer e o seu casamento estava em crise. Foi um momento triplo de dificuldade para ele, e por isso é que o romance está construído a partir daí. Como todos os seres humanos num momento difícil, o Sergio começa a reconstruir a partir da memória o processo que o levou até ali. E o romance é esse olhar para trás. Trata-se disso: a partir de um momento de crise presente, há que olhar para trás para perceber como se chegou a um ponto.

"O romance tem de contar algo que não possa ser contado de outra forma. Se um romance meu dá algo que possa ser encontrado num livro de História, é uma perda de tempo. Tem de dar algo que não se possa dar noutros géneros. Esse algo é a vida emocional, moral e psicológica das personagens. Por isso é que digo que o romancista é um historiador das emoções."

Senti, ao ler o romance, que a crise pessoal dele ganhava espaço face à crise política. Enquanto escreve, como faz este equilíbrio? É evidente que não tem um intuito didáctico, de doutrinar o leitor. Mas nota-se no seu livro que há muita vida e muito mundo. Ao mesmo tempo, temos esta personagem com a qual sentimos empatia e que funciona como gancho, e de repente estamos na China maoísta. Como vai equilibrando isto?
Descobri que há três momentos na escrita de um livro para mim. Um momento de jornalista, em que saio de casa, faço perguntas, entrevisto as personagens, como entrevistei o Sergio durante sete anos, e faço trabalho de campo.

E conseguiu ir à China?
Sim, duas vezes. Tive de esperar pelo momento em que pudesse ir. E depois há um trabalho de historiador. Procuro documentos, confirmo dados históricos. E aí entra a minha paixão pelos documentos. Documentos como cartas são muito importantes e trato-os como os trataria um historiador. Depois vou à solidão do meu escritório fazer o trabalho de romancista, que é o acto de imaginar a vida alheia e que implica a empatia de que fala.

E é aí que o meu livro dá o que nenhum livro de História pode dar: a exploração das emoções humanas. É quase uma prova de fé: o romance tem de contar algo que não possa ser contado de outra forma. Se um romance meu dá algo que possa ser encontrado num livro de História, é uma perda de tempo. Tem de dar algo que não se possa dar noutros géneros. Esse algo é a vida emocional, moral e psicológica das personagens. Por isso é que digo que o romancista é um historiador das emoções. E o que tenho de dar é isso: a história das emoções ligadas a um momento histórico.

Nunca se sentiu literariamente preso porque a história tinha de estar ligada aos factos?
A ideia é, dentro das regras da realidade, tratar de contar o que não é visível. Não me senti preso aos dados, porque são externos, e eu ia contar o que estava na consciência das personagens, o que exige um acto de interpretação das vidas alheias, em que os únicos limites são os da minha capacidade de entender o que o outro sentiu. Este caso foi especial porque, depois de escrever, tive de dar o texto à minha personagem, que podia dizer que não tinha sido assim. Mas não. Tudo lhe pareceu verdadeiro.

Juan Gabriel Vasquez

"Depois de 16 anos fora, já me tinha convertido numa espécie de estrangeiro no meu país, e foi isso que me permitiu continuar a sentir que o país era misterioso", diz Vásquez sobre a Colômbia

Getty Images

Li uma entrevista em que dizia que, se vivesse na Colômbia, não podia escrever o que escrevia. Entretanto, mudou-se para a Colômbia. Como foi essa relação?
Sempre senti que a distância da Colômbia foi o que me permitiu escrever sobre a Colômbia. Precisava de uma distância geográfica, de vê-la a partir de outro país, mas também cronológica. Quando saí da Colômbia, em 1996, não sabia como escrever sobre o meu país e só o tempo que passei longe da Colômbia é que me aclarou as coisas. Quando voltei, tive muito medo. Achei que ia perder a perspectiva que a distância dá. Mas aconteceu o contrário. Depois de 16 anos fora, já me tinha convertido numa espécie de estrangeiro no meu país, e foi isso que me permitiu continuar a sentir que o país era misterioso. Preciso de sentir o mistério para escrever e que há algo que não entendo. Se achasse que entendia tudo, não escreveria. Ao voltar à Colômbia, os 16 anos já me tinham mudado, e ao país também, já que se transformou num terreno cheio de segredos, misterioso.

Quando o Sergio sai da Colômbia, sentiu alívio. Isso também lhe acontece?
Sempre. A vida na Colômbia, para alguém que, como eu, sente necessidade de dar opinião e de defender um modelo de sociedade, é muito cansativa. A violência da polarização sente-se em tudo. Existe na vida quotidiana, os debates são muito agressivos, pouco civilizados. E isso desgasta muito quem quer entrar no debate por sentir que é um dever, como acontece comigo. Sinto que tenho o dever de aproveitar o lugar que os meus livros me deram para dizer coisas. E por vezes preciso de sair para apanhar ar, e faço-o sempre que posso.

Houve uma parte que achei muito forte no livro, que é a parte em que o Sergio sente que não consegue debater com um taxista, porque ele está imbuído de informação que circula nas redes sociais, e acredita nela. Acha que essas ferramentas de comunicação ainda são recuperáveis para um modelo de comunicação democrático e justo?
Tenho uma relação muito difícil com as redes sociais. Não as uso, porque creio que o modelo de negócios que representam são para os seus donos se alimentarem das nossas piores energias, do confronto, do conflito. Contribuíram para que a conversa entre cidadãos se tivesse rompido e são um espaço onde a mentira cresce naturalmente, o terreno privilegiado das mentiras. Isso é particularmente problemático num país como a Colômbia, em que estamos a tentar contar a história dos últimos 50 ou 60 anos para saber o que se passou. A literatura aí pode ter um papel importante, ser um espaço de uma certa verdade humana, que é íntima, mas também existe num contexto social. Pode enfrentar as distorções e as mentiras das redes sociais.

A Colômbia está a construir um puzzle. E cada livro é uma peça mais que vai iluminando a nossa experiência. Este livro ilumina um pedaço da nossa história de movimentos armados, da nossa relação com as ideias e com as ideias extremas. Os livros que os escritores colombianos vão publicando, tanto em ficção como em não-ficção, vão acrescentando peças ao puzzle. É isso que temos de fazer. Completar o retrato para saber o que aconteceu ao país.

"Vivemos um momento em que os cidadãos perderam a imaginação, a capacidade de imaginar o outro. Habituaram-se ao sofrimento alheio, como vimos durante a pandemia. E perdeu-se a capacidade de imaginar o outro como um ser humano. Posso parecer idealista, mas acho que a literatura pode devolver-nos a capacidade para sofrermos com os outros, compreender com eles, devolvendo-nos a humanidade que temos perdido nos últimos anos."

Porque a literatura também tem a vantagem de pôr o leitor numa situação em vez de estar a opor uma ideologia à outra, não?
Sim, e parte essencial da literatura é essa. Não se convida o leitor a estar em acordo ou desacordo  com ideias. Convida-se o leitor a viver emocionalmente a realidade das personagens. E aí entende a personagem, mesmo que não concorde com ela. A literatura permite a imersão na realidade de outra pessoa. Isso permite-nos conhecê-la de uma forma que não seria possível através da discussão de ideias.

Até porque sentimos empatia com o Sergio naquela situação em que ele, condenando o fanatismo, cede à violência colectiva de um grupo de fanáticos.
Quando o Sergio me contou essa história, percebi que era preciso escrever este livro. Houve uma ou outra história que foram cruciais.

A dos semáforos, imagino.
Exactamente. Abriram-me uma janela para o mundo privado do Sergio, que me pareceu fascinante: a sua consciência das suas contradições, dos seus conflitos como jovem militante comunista, a reflexão que está nessa cena, sobre como seguimos os outros. Tudo isso era uma janela para a sua transformação intelectual, ideológica e emocional que me pareceu muito interessante.

Colômbia selvagem a meus braços

Nessas cenas, notei que estava a mostrar uma situação ridícula, mas de forma honesta, porque não estava a ridicularizá-la. Mostrava e o leitor concluía. Neste momento, temos movimentos de fanatismos até perpetrados pelos Estados em que se cria a figura do outro e se age em prol dessa figura. Como é que olha para isto?
É um momento especial. Associo-o ao novo modelo de sociedade, com as redes sociais, que favorece estes extremistas, para quem passa a ser mais fácil levar uma mensagem e alimentar-se das emoções negativas, dos racismos, dos medos, das vulnerabilidades. Isso sempre existiu: estas carências das nossas sociedades, os racismo, as desigualdades económicas imensas, os ressentimentos. Mas há uns novos populismos que aprenderam a explorar os novos meios de comunicação de uma forma muito eficaz para tirar créditos políticos destas emoções.

Isto é um cliché, mas os clichés têm uma verdade profunda: isto só se compara ao que se passou na Europa nos anos 30. Isso estava ligado ao nascimento de uma nova tecnologia, a rádio, que permitiu a Hitler levar a sua mensagem de uma forma muito mais eficaz do que anteriormente. O discurso ouviu-se traduzido em vários países.

Os extremismos políticos descobriram nas novas tecnologias uma forma de multiplicar a sua mensagem com resultados muito graves. Acho que vivemos um momento em que os cidadãos perderam a imaginação, a capacidade de imaginar o outro. Habituaram-se ao sofrimento alheio, como vimos durante a pandemia. E perdeu-se a capacidade de imaginar o outro como um ser humano. Posso parecer idealista, mas acho que a literatura pode devolver-nos a capacidade para sofrermos com os outros, compreender com eles, devolvendo-nos a humanidade que temos perdido nos últimos anos.

Até porque a leitura também permite ter uma perspectiva sobre o que seria a manipulação de um narrador. Em tempos de fake news, também se percebe a incapacidade de entender um texto ou uma mentira.
Isso é muito preocupante. Já surgiram aulas para identificar mentiras ou um post de Facebook falso. Há uma literacia para os novos media. E estamos a converter-nos em fact-checkers dos nossos meios de comunicação. Quando partilhamos uma notícia, devíamos responsabilizar-nos pelo conteúdo e verificar a sua veracidade. É essencial aprender a identificar o engano e a manipulação. Se há um talento que vai dividir a humanidade nas próximas décadas, é o de ler correctamente. Não sei se a literatura pode servir de algo aqui, mas espero que sim.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

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